Na semana passada, fui ao Sesc Pompeia para conferir “Irreparáveis Reparos”. Essa exposição é a primeira individual de Kader Attia que é exibida na América Latina. O trabalho do artista franco-argelino aborda essencialmente as chagas deixadas pela colonização europeia na África e, principalmente, o processo de descolonização cultural das nações africanas agora independentes (pelo menos do ponto de vista político-institucional). Através de um olhar ao mesmo tempo histórico, social e artístico, Attia apresenta a opressão e a violência dos colonizadores e, como consequência, a busca dos colonizados pela retomada de sua velha identidade cultural. Nesse contexto, surge o conceito de reparação, a principal temática do artista. Para Kader Attia, a reparação é tanto física quanto psicológica e caracteriza-se por um processo de reaproximação e de transformação constante.
A mostra “Irreparáveis Reparos” tem curadoria da historiadora de arte alemã Carolin Köchling e foi viabilizada a partir da parceria cultural com Goethe-Institut São Paulo e com La Colonie. Ocupando sete salas do Galpão do Sesc Pompeia, a exposição traz um panorama geral das principais obras de Kader Attia produzidas nas duas últimas décadas. O público tem acesso a fotografias, esculturas, instalações audiovisuais e intervenções/montagens de Attia. As peças selecionadas para “Irreparáveis Reparos” estão entre as mais marcantes do portfólio do franco-argelino. Não é errado encarar essa individual como um resumo (do tipo melhores momentos) de sua trajetória artística até aqui.
Nascido na França, em 1960, em uma família de imigrantes argelinos, Kader Attia cresceu entre Paris e Argel, a capital da Argélia. Na juventude, ele também viveu no Congo e na América do Sul. Atualmente, o artista mora parte do ano em Berlim e outra parte em Argel. Essa experiência multicultural moldou a identidade de Attia e influenciou substancialmente suas produções. Seus trabalhos artísticos tratam quase sempre das histórias pessoais e coletivas das perdas de identidades provocadas pela violência, pela repressão e pela privação. É o olhar do oprimido e do colonizado diante das mazelas sociais de suas nações. A partir daí, ele reconstrói a memória social de povos que passam pelo que ele chama de fase da retomada.
Nos seis últimos anos, as exposições individuais de Kader Attia foram apresentadas nas principais instituições e galerias de arte do mundo: Kunsthaus Zürich, em 2020; BAMPFA - Berkeley Art Museum and Pacific Film Archive, em 2019; Hayward Gallery (Londres), em 2019; Fundació Joan Miró (Barcelona), em 2018; The Power Plant (Toronto), em 2018; SMAK (Ghent), em 2017; Museum of Contemporary Art Australia (Sydney), em 2017; MMK Museum für Moderne Kunst (Frankfurt), em 2016; Musée Cantonal des Beaux-Arts de Lausanne, em 2015; e Beirut Art Center, em 2014. Em 2016, Attia conquistou o Prêmio Marcel Duchamp (França) e, no ano seguinte, ganhou o Prêmio da Fundação Miró (Espanha) e o Prêmio Yanghyun de Artes (Coreia do Sul).
Na primeira sala de “Irreparáveis Reparos”, assistimos a um ensaio fotográfico do artista. As imagens mostram as influências arquitetônicas da cidade de Argel. Na capital argelina, é possível notar que pouco a pouco as construções passam a valorizar conceitos estéticos dos povos nativos/ancestrais da África e deixam de lado os princípios arquitetônicos trazidos pelos colonizadores (europeus/franceses). Dessa maneira, surge uma nova Argel, onde tradição e modernidade caminham de braços dados.
Em seguida, na segunda sala da mostra, assistimos a “Landing Strip”, um novo conjunto fotográfico de Kader Attia. Nessa seção, ele apresenta, através de imagens nuas e cruas, a rotina de mulheres argelinas trans que se prostituíam em Paris nas décadas de 1980 e 1990. Os cliques para a câmera desnudam o dia a dia, o trabalho, os preconceitos em que eram vítimas e os verdadeiros amores das profissionais do sexo. A maioria dessas imigrantes africanas vivia de maneira ilegal na capital francesa.
Logo depois, vem a videoinstalação “Mimesis as Resistance”. Essa é a parte mais divertida da exposição. Pela televisão, acompanhamos uma cena de um documentário ao estilo National Geographic. Em pouco mais de dois minutos, conhecemos um pássaro capaz de imitar todo tipo de som. Ele não apenas emula o barulho dos demais bichos da floresta como também reproduz o ruído de motosserras que destroem a natureza ao redor. Se por um lado temos uma bela metáfora do conceito de mimesis, por outro lado temos o retrato assustador do extermínio das florestas tropicais.
Em “Chaos + Repair = Universe”, nos deparamos com uma bola colorida. Apesar de sua beleza impressionante (a iluminação interna e externa é de encher os olhos), notamos que cada gomo foi costurado à mão, em um processo de remendo. A sensação é que a reconstrução da bola foi feita como se ela fosse uma pele humana (os pontos da costura simulam os pontos do tecido corporal). Há quem veja nessas costuras algo parecido às cercas de arame farpado, material típico das cidades do terceiro mundo (ele é usado tanto como segregação quanto como proteção de propriedades). Não se surpreenda se você, de repente, associar essa esfera ao nosso planeta.
A quinta sala do Galpão do Sesc Pompeia reserva um pot-pourri com algumas pequenas e interessantes peças, além de uma nova coletânea de fotografias. A obra que mais gostei dessa parte foi a do espelho que, após quebrado, foi costurado (essa criação não tem título). Trata-se do mesmo processo e da mesma estética utilizados na bola da seção anterior (seriam arames farpados os pontos da costura do espelho?). Confesso que fiquei parado por mais de dois minutos encarando a peça remontada e, principalmente, meu reflexo distorcido. É de assustar!
A penúltima sala apresenta uma coleção de máscaras e de mortalhas esculpida na madeira. A sensação é que esses artefatos são de povos ancestrais da África. Contudo, um detalhe dá o tom horripilante à cena: os totens foram enegrecidos pelo fogo. É como se os colonizadores tivessem queimado as culturas e os povos antigos à medida que conquistavam o mundo. Em uma parede ao lado das máscaras e das mortalhas, há a exibição do vídeo “Reflecting Memory”. As imagens e os sons ajudam a criar o clima de genocídio.
A exposição termina com a instalação “J’acusse”. A última sala de “Irreparáveis Reparos” reúne bustos de madeira que retratam os rostos de soldados que lutaram na Primeira Guerra Mundial. Cada face entalhada na madeira traz cicatrizes e deformidades graves. Para produzir essas obras, Kader Attia utilizou-se de fotografias que revelavam as reais sequelas do conflito bélico. Sem dúvida nenhuma, essa é a parte da mostra mais forte e chocante. Não sei explicar, mas até mesmo o clima dessa seção é mais pesado e sombrio. Imaginar aqueles homens carregando marcas tão feias e profundas em seus rostos é de estremecer qualquer um.
A reparação, como conceito sociocultural, é entendida por Kader Attia como um longo processo de cicatrização e de aperfeiçoamento. Nela, instituições, objetos, tradições e sujeitos são retomados a partir de perdas, quebras ou feridas. Nesse sentido, a reparação é a recuperação ou reapropriação daquilo que ficou ausente por um período. Nem sempre é possível retomar às condições originais, sendo necessário saber lidar com cicatrizes, reparos expostos ou mesmo a perda de partes significativas. As melhores obras que expressam o conceito de reparação attiana são a do espelho quebrado e costurado com pontos e as deformações nos rostos das estátuas de madeira.
“Irreparáveis Reparos” foi montado em março desse ano no Sesc Pompeia e iria estrear no mês seguinte. Na programação original, a mostra iria de abril a julho de 2020. Porém, no meio do caminho tinha uma pandemia e, assim, surgiram medidas de distanciamento social. Graças à Covid-19, que obrigou o fechamento dos centros culturais da cidade (do país e do mundo) por sete meses, a exposição só pôde ser inaugurada em outubro. Após a reformulação do calendário, os trabalhos de Kader Attia ficarão em cartaz até 31 de janeiro de 2021 na capital paulista. A visitação é gratuita e é necessário agendamento prévio no site do Sesc. A inscrição online é uma das medidas de segurança promovida pelo centro cultural – dessa forma, evitam-se aglomerações e filas.
Reserve ao menos 45 minutos para “Irreparáveis Reparos”. Na quarta-feira passada, por exemplo, levei aproximadamente uma hora para percorrer as sete salas da mostra. O que chamou mais minha atenção foi o quão deserto estava o Sesc Pompeia. Simplesmente não vi nenhum visitante perambulando pelo local, nem na exposição nem nas demais alas do espaço. Assim como está acontecendo com os cinemas, parece que as instituições culturais reabriram, mas o público não retornou aos programas artísticos. É uma pena porque “Irreparáveis Reparos” traz instalações riquíssimas de Kader Attia, um dos artistas europeus mais originais e engajados da atualidade. Seu trabalho vale uma visita.
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