O sexto e último entrevistado desta temporada é um dos narradores-protagonistas de Noite na Taverna, a coletânea de contos de Álvares de Azevedo.
[As câmeras ocultas registram a cena. É uma sala fumacenta. Na mesa central, há dois copos e um frasco de vinho espanhol. Uma dupla de homens ébrios está sentada ao redor das bebidas. Os demais revolvem-se no chão. Dormem ali mulheres desgrenhadas, umas lívidas, outras vermelhas. A taverneira cambaleia para lá e para cá enchendo canecas e esvaziando almas. Ela só para o triste bailado para espalhar a sujeira pelo mobiliário do salão. Para tal, usa como ferramenta um pano maltrapido].
Darico Nobar: E tu, Claudius?! Chegou a tua vez. Não vai falar nada, hein? Já evoquei ao cemitério do passado os meus cadáveres. Ergui os sudários para amostrar as nódoas de sangue. Fale um pouco de você, companheiro. O que tem a me dizer?
Claudius Hermann: Pois bem! Se queres respostas, então tragas interrogações. Perguntes ao sepulcro a história do moribundo! Se levarás os segredos ao túmulo seguro, mesmo com o peito sob ameaça do punhal inimigo, não sei. [Apanha o vinho com volúpia, enche o copo e entorna um longo gole]. Desse lado da mesa, meu coração não tem o maldito remorso das revelações dos amigos. [Limpa a boca com a manga da camisa]. Mas sejas breve. O algoz espera a vítima. Até a hiena tem fome de cadáver. Estou pronto! [Abre os braços como se estivesse sendo crucificado].
Darico Nobar: Não tenha medo, por favor. Perguntas, até onde eu saiba, não arrancam pedaços de ninguém nem decretam o mal súbito antes da hora. [Dá um tapinha amigável no ombro do outro]. Você fala como se estivéssemos em um programa de televisão, tal qual o Talk Show Literário. Ou em um interrogatório policialesco. Relaxe! Estamos em uma simples e despretensiosa conversa de velhos confidentes. Nessa taverna escondida do mundo, podemos suscitar nossas lembranças mais góticas.
Claudius Hermann: Mentira!!! Quando me vens falar em literatura, eu te digo – aí há verdades inspiradas pela natureza dos fatos, como naqueles versos cantados por Homero. Com a humanidade inteira ajoelhada sobre os túmulos da dúvida, nunca mais saberemos o que é realidade e o que é ficção. Mas quando me falam em verdades ficcionais, em linhas autobiográficas e nas imaginações de leitores atrevidos, eu te digo – Mentira! Mentira! E Mentira! Três vezes mentira!!! Tudo é verídico e tudo é invenção nas páginas dos livros. Vivemos sob a miragens dos desertos.
Darico Nobar: Na certa, você deve sonhar com alguns dos versos de Charles Baudelaire ou com alguma coletânea de narrativas de José Cadalso! [Solta uma gargalhada]. Voltemos para o nosso mundinho, tá? Começo inquerindo sobre suas finanças. Quando te conheci, você era um rapagão entalado na prata. Não era, Claudius?
Claudius Hermann: Eu era rico, muito rico. Em Londres, ninguém ostentava mais dispendiosas devassidões. Nenhum nabado, numa noite, desperdiçava somas como eu. O suor de três gerações derramei no leito dos prazeres e no chão das orgias. Mas, perdi tudo mesmo num páreo! Um lance malsucedido no turfe levou minha fortuna inteira.
Darico Nobar: Se arrepende do envolvimento com os cavalos?
Claudius Hermann: As amazonas me fizeram mais mal do que qualquer montaria. Meu único arrependimento foi ter conhecido Eleonora, meu anjo demoníaco.
Darico Nobar: Oh, a lindíssima duquesa! Foi amor à primeira vista?
Claudius Hermann: Ela era bela como tudo quanto passa mais puro a concepção do estatuário. Acho que foi mais obsessão à primeira vista do que amor. Minha fraqueza, sabe Darico, era a covardia. Jurei que uma noite gozaria aquela mulher. Fosse veneno, beberia o mel daquela flor, o licor escarlate daquela taça.
Darico Nobar: Mas a duquesa era casada, não?! [O amigo concorda com o polegar direito erguido]. E o que o duque Maffio achou dessa história de você se engraçar com a mulher dele?
Claudius Hermann: Para um louco, não há prejuízo da honra nem do adultério. Amava e queria. A minha vontade era como a folha de um punhal – ferir ou estalar. E o duque não soube de nada. Até a noite do suborno do lacaio.
Darico Nobar: Ai, ai, ai. Isso não está me cheirando bem.
Claudius Hermann: Cheiro? É como diz aquele velho poema. “Sonho de glórias só me passe a furto/ Qual flor aberta a medo em chão de tumbas/ Abatida e sem cheiro/ O meu amor/ O peito o silencia/ Guardo-o bem fundo/ Em sombras do sacrário”.
Darico Nobar: Esse papo tá ficando sombrio, muito esquisito mesmo...
Claudius Hermann: Temes que eu confesse meus piores crimes e os maiores dos meus pecados. Acreditas que minha língua irá tropeçar num cadáver mais adiante?
Darico Nobar: Vamos mudar de assunto, por favor! Falemos um pouco dos nossos companheiros de farra e de prosa. Pode ser, Claudius?
Claudius Hermann: Bravo! Bravo!
Darico Nobar: Você sabe por onde anda Solfieri?
Claudius Hermann: Solfieri está em Roma, cidade do fanatismo e da perdição. Deve estar perambulando a sós no cemitério de Verano em busca de um anjo cataléptico. Ou está entretido em uma orgia interminável na casa da condessa Bárbara.
Darico Nobar: E de Bertram, você sabe de algo?
Claudius Hermann: Está brigando com o vício no jogo, perdido nas bebidas e embriagado pela adrenalina dos duelos. Ele tornou-se um ladrão de cartas, um homem eclipsado por mulheres e orgias. É agora um espadachim terrível e sem coração. Tudo porque foi abandonado por um mancebo andaluz.
Darico Nobar: Abandonado por um mancebo?! É isso o que você está me dizendo? [O outro homem balança a cabeça para cima e para baixo com a tranquilidade que a convicção lhe traz]. Tem certeza? O Bertram com um rapaz?!
Claudius Hermann: É o que parece, Darico. Dizem que vivia com um moço de traços femininos que bebia como um inglês, fumava como um sultão, montava a cavalo como um árabe e atirava as armas como um espanhol. E à noite, segundo o próprio Bertram, amava como uma dama de lupanar.
Darico Nobar: Estás ébrio, Claudius?!
Claudius Hermann: Sim, mas não é minha culpa. [Pega a caneca e a levanta ferozmente]. Oh, vazio! Meu copo está vazio! Olá, taverneira, não vês que as garrafas estão esgotadas? Não sabes, desgraçada, que os lábios da garrafa são como os das mulheres – só valem beijos enquanto o fogo do vinho ou o fogo do amor os borrifa?
Darico Nobar: Não se preocupe, amigo. Ela já vai trazer mais vinho. [Faz sinal para mais uma rodada]. E o que Gennaro tem feito de bom? Sabe de algo?
Claudius Hermann: Continua com aquela ideia fixa de vingança que tu conheces tão bem. [A taverneira coloca uma nova garrafa na mesa e sai]. Quer matar quem o quisera matar. Quer humilhar quem o humilhara. [Enche o copo e entorna um longo gole, mas estremece]. Miséria! Loucura! Gennaro continua vivendo na total soberba.
Darico Nobar: Aquele lá não tem jeito. [Também se serve de mais vinho. Aproveita e enche a caneca do companheiro de mesa]. E você tem notícias de Johann?
Claudius Hermann: Johann voltou para Paris. Continua vagando à noite em busca de duelos pueris. Com ele é assim: insulto por insulto e sangue por sangue. E nada como um bom duelo mortal para lavar a honra de um infante com o coração despedaçado.
Darico Nobar: Nem me diga. Temo pela vida do nosso amigo, o mais espevitado da trupe.
Claudius Hermann: Tu sabes dos perigos que Johann se lança, Darico. [O outro homem abre um sorriso melancólico de concordância]. Com ele, não há meio de paz depois de um trupicão fortuito ou de um leve esbarrão na rua. Sem pestanejar, nosso amigo revida com um bofetão ou uma luva atirada à face do oponente. Daí para a criação de inimigos e o convite para uma disputa do tipo só-um-sai-vivo é um pulo.
Darico Nobar: Claudius, não é um conto isso tudo?
Claudius Hermann: Pelo inferno que não! Recebo regularmente cartas deles todos. Cada um me informa suas últimas sandices. [Desabotoa o sobretudo e mostra o bolso interno da vestimenta. Ali estão guardadas incontáveis correspondências]. Não fico um mês sem receber notícias daquele bando de libertinos.
Darico Nobar: Eu posso ver alguma correspondência?
Claudius Hermann: Senhor, sou um homem de honra. Quando eu morrer, tomais esse casaco e acharás cartas para o deleite até dos mais curiosos. Por ora, peço-te – Deixai-me em paz com meus princípios, minha consciência e minha dignidade!
Darico Nobar: Totalmente compreensível, Claudius. Totalmente compreensível! [Abre um sorriso de felicidade]. E com essa overdose de honestidade moral, vou encerrar a prosa. [Faz novo sinal para a taverneira, que surge prontamente]. Por gentileza, traga a conta. Já encerramos por hoje.
Claudius Hermann: Ainda não! Antes de terminarmos, permita que eu faça uma saúde convosco? [O apresentador concorda e os dois homens enchem as canecas até a borda, enquanto a moça se dirige aos fundos do estabelecimento]. Um brinde à agonia volutuosa do amor, ao nome de todas as prostitutas, ao último crepúsculo da vida, ao inventor do sonífero, à amizade longa e profunda e, sim, a Ele.
Darico Nobar: A quem? A Deus?!
Claudius Hermann: Ao nosso Deus literário. A Lord Byron, o maior de todos!!! [Batem os copos e viram o líquido com entusiasmo].
Taverneira: Aqui está, senhor. [Entrega o papel].
Darico Nobar: Obrigado. [Assim que larga o copo, pega a conta e confere o valor]. Claudius, a despesa desta noite é por minha... [Ao voltar-se para o amigo, o encontra dormindo com os braços e a cabeça em cima da mesa]. Por Deus, ele dormiu. [Fala agora para a mulher de pé ao seu lado, que parece não se impressionar com a cena]. Ou está bêbado ou enlouqueceu de vez. [Pega algumas moedas do bolso e entrega à funcionária da taverna]. Eu preciso ir agora. Tenho um programa para gravar. Por favor, deixe o Sr. Hermann descansar. [Se levanta]. Quando ele acordar, diga que mandei felicitações.
Taverneira: Sim, senhor. Grata!
[Darico Nobar deixa o recinto em passos apressados a caminho dos estúdios do Talk Show Literário. Enquanto isso, Claudius Hermann dorme embebido do último trago de vinho e da fumaça dos cachimbos das mesas vizinhas. As câmeras são desligadas].
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O Talk Show Literário é o programa de televisão fictício que entrevista as mais famosas personagens da literatura. Assim como ocorreu nas cinco primeiras temporadas, neste sexto ano da atração, os convidados de Darico Nobar, personagem criada por Ricardo Bonacorci, são os protagonistas dos clássicos brasileiros. Para acompanhar as demais entrevistas, clique em Talk Show Literário. Este é um quadro exclusivo do Blog Bonas Histórias.
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