No final do ano passado, fui ao Sesc Pompeia para conferir duas exposições. Em dezembro, comentei na coluna Exposições a mostra “Irreparáveis Reparos”, a primeira individual de Kader Attia apresentada na América Latina. Hoje, vou debater no Bonas Histórias “Farsa: Língua, Fratura, Ficção – Brasil-Portugal”, a outra mostra que está em cartaz no centro cultural da zona Oeste da cidade de São Paulo.
Com curadoria geral de Marta Mestre e curadoria adjunta de Pollyana Quintella, “Farsa” se propõe a investigar os caminhos tortuosos da língua e da linguagem. Nessa trajetória pela comunicação escrita, falada e não-verbal, mais de setenta artistas do Brasil e de Portugal apresentam obras que debatem o poder do discurso, as estratégias para a construção e para a desconstrução da linguagem, a força das variantes linguísticas, o questionamento sobre o mito da lusofonia, os mecanismos corporais da comunicação e o universo da linguagem simbólica. O resultado é uma mostra eloquente, grandiosa, colorida e intensa que enche a área de Convivência do Sesc Pompeia.
Exibido anteriormente em Lisboa, onde ficou em cartaz no ano retrasado, “Farsa” foi montado no começo de 2020 em São Paulo e seria apresentado aos paulistanos durante o primeiro semestre do ano passado (mais precisamente de abril a julho). Com o fechamento dos espaços culturais por causa da pandemia do novo coronavírus, os planos foram alterados radicalmente. A mostra foi aberta somente no finalzinho de outubro e se estenderá até 30 de janeiro. Ou seja, os interessados em conferi-la têm apenas mais duas semanas.
Integram “Farsa” os seguintes artistas e movimentos culturais: Agrippina R. Manhattan, Alberto Álvares, Alexandre Estrela, Aline Motta, Álvaro de Sá, Ana Hatherly, Ana Nossa, Ana Pi, Ana Vieira, Andrea Tonacci, Anitta Boa Vida, Anna Bella Geiger, Anna Maria Maiolino, Carla Filipe, Carmela Gross, Caroline Valansi, Clara Menéres, Clarissa Tossin, Dayana Lucas, Denise Alves-Rodrigues, DJ Pelé, Elvio Becheroni, E. M. de Melo e Castro, Ernesto de Sousa, Eva Rapdiva, Flávio Diniz, Francisca Carvalho, Gal Costa, Gê Viana, Grada Kilomba, Gretta Sarfaty, Helana Almeida, Helena Ignez, João Vieira, Jota Mombaça, Katú Mirim, Linn da Quebrada, Lúcia Prancha, Lygia Pape, Márcia de Aquino, Mariana de Matos, Mariana Portela Echeverri, Mariana Dalgalarrondo, Mira Schendel, Movimento Feminino pela Anistia no Brasil, Mumtazz, Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, Neide Sá, Nelly Gutmacher, Noite & Dia, Olga Futemma, Paula Rego, Paulo Bruscky, Pêdra Costa, Pietrina Checcacci, Pola Ribeiro, Rafael Galente, Regina Silveira, Regina Vater, Renata Lucas, Rita Natálio, Salette Tavares, Sara Nunes Fernandes, Thereza Simões, Titica, Túlia Saldanha, Vera Mantero, Victor Calhau, Unhandeijara Lisboa e Yuli Yamagata.
As obras desta mostra abrangem fotografias, esculturas, músicas, vídeos, arquivos digitais, performances, instalações em tecido, xilogravuras, poesia, pinturas, filmes, depoimentos, entrevistas e manuscritos. Essas criações foram realizadas entre a década de 1960 e os últimos anos de 2010. Portanto, elas englobam as seis últimas décadas de arte no Brasil e em Portugal.
Estruturalmente, “Farsa: Língua, Fratura, Ficção – Brasil-Portugal” está dividido em três partes: “Língua”, “Planetas” e “Política”. Pelo menos foi dessa maneira como os guias do Sesc Pompeia informaram o público no dia da minha visita ao espaço. Curiosamente, essa divisão faz todo o sentido para o visitante, mas não está categorizada dessa forma nos materiais da exposição.
Em “Língua”, a primeira seção da mostra, assistimos aos mecanismos da linguagem e aos detalhes dos instrumentos corporais da comunicação. O enfoque aqui está essencialmente no corpo humano. O passeio é por cada um dos componentes corporais que, individualmente ou conjuntamente, produzirão os atos da fala, da escrita e/ou da comunicação gestual.
A segunda parte da mostra, “Planetas”, apresenta imagens fotográficas feitas por satélites e que retratam a geografia de vários planetas do sistema solar. O registro, portanto, sai do ser humano e avança para o espaço. De um jeito sutil, o visitante deixa de olhar, literalmente, para o próprio umbigo e projeta seu campo de visão para um lugar bem, bem distante. A intensidade da quebra de perspectiva é o que chama mais a atenção dos participantes de “Farsa: Língua, Fratura, Ficção – Brasil-Portugal” nesse momento específico da visitação da exposição.
“Política”, a terceira e última seção de “Farsa”, mostra o uso ideológico e político da linguagem. A partir de imagens, discursos, músicas, expressões linguísticas e símbolos, a comunicação se torna uma arma poderosa para mobilizar multidões. Querendo ou não, somos alvos deste tipo de manipulação em nosso dia a dia, sem que notemos. Muitas vezes, é analisando o que ocorre em outros países que compreendemos o real alcance da língua no contexto político-ideológico.
O principal aspecto positivo de “Farsa: Língua, Fratura, Ficção – Brasil-Portugal” está em sua grande dimensão. Trata-se de uma exposição de tamanho considerável, com muitas criações artísticas. Não é errado dizer que o Sesc Pompeia expõe centenas de obras de figuras de várias vertentes da arte brasileira e portuguesa. Em meio à essa quantidade absurda de materiais, é normal haver itens mais e itens menos interessantes. Não espere, assim, encontrar uma mostra homogênea, como é, por exemplo, “Irreparáveis Reparos”. Há em “Farsa” muitos altos e baixos.
Gostei também do intercâmbio cultural proposto por Marta Mestre e Pollyana Quintella. Os diálogos feitos pelos artistas brasileiros e portugueses, curiosamente, se estendem para além das fronteiras desses países. Notamos uma abordagem sensível e sem preconceitos da multiplicidade cultural das nações lusófonas, inclusive na África lusitana.
Outro elemento incrível é o material impresso da exposição. Ele não é distribuído a todos os visitantes de “Farsa”, mas se você pedir, a equipe do Sesc Pompeia entrega numa boa. O livro da mostra (chamo de livro porque a obra está muito mais para um livro do que para um simples catálogo) é uma publicação completa (são mais de cem páginas), bonita (visual impecável) e cativante (conteúdo excelente). Esse material apresenta detalhadamente os principais aspectos conceituais do evento e as particularidades das principais criações artísticas disponíveis na exposição. Vale a pena lê-lo com atenção.
Um leitor mais atento do Bonas Histórias já deve ter notado o quanto as três partes de “Farsa: Língua, Fratura, Ficção – Brasil-Portugal” são desconexas. Esse ponto é justamente o principal problema da mostra – a falta de coerência em relação à proposta original do evento e em relação à apresentação das seções da exposição. Confesso que fiquei encantado com a maioria das obras expostas em “Farsa”. Porém, qual a relação delas com o conceito da farsa, hein?! Juro que não entendi. Além disso, as três partes da exposição não conversam harmonicamente entre si. Por exemplo, qual a relação dos registros fotográficos dos planetas (conteúdo da segunda seção) com a representatividade e pluralidade da língua portuguesa?! Não há qualquer conexão aparente.
A sensação que tive é que a ideia de “Farsa: Língua, Fratura, Ficção – Brasil-Portugal” é excelente. Contudo, sua execução acabou desandando em algum momento. Ao contemplar dezenas e dezenas de obras, em algum momento a ideia original da exposição foi seriamente deturpada. Se ela fosse fragmentada em duas ou três mostras distintas, o público ganharia em concisão e consistência.
“Farsa: Língua, Fratura, Ficção – Brasil-Portugal” é uma exposição com entrada gratuita. Por causa dos protocolos de segurança para evitar aglomerações, o Sesc institui um sistema eletrônico para a distribuição dos ingressos. Os interessados devem acessar o site do Sesc e fazer a inscrição online, escolhendo o dia e o horário da visitação. O procedimento é simples e não consome mais do que alguns minutinhos.
Por falar em tempo, reserve entre uma hora e uma hora e meia para a visitação completa à “Farsa”. Eu levei aproximadamente uma hora e quinze minutos para percorrer as três partes da exposição. Ela ocupa quase toda a área de Convivência do Sesc Pompeia.
Como já tinha acontecido com “Irreparáveis Reparos”, a instalação com obras de Kader Attia que estão expostas no Galpão desse centro cultural, a quantidade de visitantes no local é ínfima. Infelizmente, o público paulistano abandonou totalmente os espaços culturais da cidade. Para você ter uma ideia da intensidade desse abandono, no dia em que fui conferir “Farsa”, no final de dezembro, não tinha ninguém no local, além de mim. Eu disse NINGUÉM! Incrível, né? Aí você vai me dizer que o povo está se precavendo, evitando aglomerações para não disseminar o coronavírus. Uma olhada para as praias brasileiras nesse Verão derruba essa tese.
O pior (do ponto de vista de quem irá perder um programão desse) é que tanto “Irreparáveis Reparos” quanto “Farsa: Língua, Fratura, Ficção – Brasil-Portugal” são exposições dignas de uma visita. É uma pena que elas vão acabar e muita gente não poderá vê-las.
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