O trabalho mais conhecido de Milan Kundera, escritor tcheco analisado no Desafio Literário deste mês, é “A Insustentável Leveza do Ser” (Companhia das Letras). Este romance foi a segunda obra que o autor produziu após se exilar na França. Em 1975, Kundera deixou a Tchecoslováquia, onde sofria a perseguição do governo comunista da União Soviética, e se mudou definitivamente para Paris. A primeira publicação desta nova fase foi o “Livro do Riso e do Esquecimento” (Companhia das Letras), uma mistura ousada de romance, contos, crônicas e ensaios. Esse título foi lançado em 1978. “A Insustentável Leveza do Ser” veio na sequência. Mais uma vez abordando a desilusão amorosa e o cenário opressor da ditadura socialista (os principais temas de sua literatura), Milan Kundera apresenta em “A Insustentável Leveza do Ser” um tratado filosófico sobre a fragilidade e a perenidade da vida humana. O resultado é primoroso. O romance tornou-se um best-seller mundial durante as décadas de 1980 e 1990. Até hoje, o nome de Kundera é associado automaticamente ao seu título mais famoso.
Escrito na língua tcheca durante o ano de 1982, “A Insustentável Leveza do Ser” só chegou às livrarias dois anos mais tarde, quando foi traduzido para o francês. Entre o final da década de 1960 e o final da década de 1980, vale a pena lembrar, Milan Kundera era um autor proibido em seu país natal. Por ter participado da Primavera de Praga, a União Soviética não permitia que os livros do autor anticomunista fossem publicados em seus domínios territoriais. Por isso, muitas das obras de Kundera foram primeiramente lançadas na França e só depois na Tchecoslováquia. “A Insustentável Leveza do Ser” faz parte desta lista de títulos “expatriados”.
Uma versão cinematográfica deste romance foi lançada em 1988 pelo diretor norte-americano Philip Kaufman. O filme recebeu muitos elogios da crítica e do público. Com duas indicações ao Oscar no ano seguinte, o longa-metragem tornou a história do autor tcheco ainda mais conhecida. Contudo, Milan Kundera parece não ter gostado da adaptação de “A Insustentável Leveza do Ser”. Logo depois do lançamento do filme, ele proibiu a venda dos direitos comerciais de seus outros livros para os cineastas. Assim, nunca mais uma obra deste escritor chegou às telonas.
O enredo de “A Insustentável Leveza do Ser” aborda diretamente a união de Tomas e Tereza e indiretamente o relacionamento de Franz e Sabina. Temos, portanto, dois casais em foco. Enquanto o primeiro permaneceu unido a vida inteira, o segundo ficou junto apenas alguns meses. Apesar das diferenças temporais, há várias semelhanças entre esses relacionamentos e entre essas personagens.
Tomas, um cirurgião talentoso de Praga, conheceu Tereza, uma garçonete de uma cidade pequena da Boêmia, em uma viagem pelo interior do país no início dos anos 1960. Após um flerte rápido, o médico retornou para a capital da Tchecoslováquia. Algumas semanas mais tarde, Tereza apareceu na porta de sua casa. O reencontro despertou uma paixão avassaladora entre os dois. O casal fez sexo assim que se viu e passou a morar junto a partir de então. Até aquele momento, Tomas não queria ter um relacionamento sério com nenhuma mulher. Mulherengo, ele mantinha várias amantes. A mais regular delas era Sabina, uma pintora. A paixão pela garçonete fez o doutor mudar em parte seus planos e aceitar o casamento.
A alegria pelo matrimônio e o amor por Tereza não foram capazes de mudar a rotina de conquistador serial de Tomas. Ele permaneceu com seus casos extraconjugais, apesar de voltar todas as noites para a cama da esposa. Para aplacar um pouco os ciúmes de Tereza, o cirurgião lhe deu de presente uma cachorrinha, Karenin. Na ausência dele, a mulher podia ter a companhia do fiel bichinho de estimação. Apesar das traições constantes, Tomas não conseguia viver sem Tereza. Na cabeça dele, uma coisa era o amor conjugal e outra completamente diferente era a prática sexual. Sob essa crença, os dois viveram juntos e sofreram unidos os dissabores provocados pela perseguição imposta a Tomas pelo novo governo soviético que tomou o país a partir de agosto de 1968.
Por sua vez, Franz era um acadêmico bem-sucedido que morava em Genebra. Casado e com uma filha adolescente, ele se apaixonou por Sabina quando a pintora deixou Praga e se mudou para a Suíça. O exílio foi causado pela invasão soviética após a Primavera de Praga. Inconformada com os desdobramentos políticos em seu país, Sabina preferiu fugir da opressão comunista. O relacionamento com Franz era apenas mais um de Sabina. Ela tinha alguns amantes, entre casos fixos e eventuais. Porém, o acadêmico ficou realmente apaixonado pela artista tcheca, sua amante.
Após oito meses de encontros às escondidas, Franz decidiu abrir o jogo para a esposa. A revelação da traição fez, obviamente, o casamento terminar. Empolgado com a possibilidade de viver com Sabina para sempre, ele revela a sua separação para a amante. Assustada, a pintora foge dele, se mudando ocultamente para Paris. Assim, do dia para a noite, Franz fica sem a esposa e sem a amante. Apesar de seguir sua vida, o acadêmico nunca mais se esqueceu da moça com quem manteve um breve relacionamento e que foi o grande amor de sua vida.
“A Insustentável Leveza do Ser” é um romance de 344 páginas. Seus 142 capítulos estão divididos em sete partes: “A Leveza e o Peso”, “A Alma e Corpo”, “As Palavras Incompreendidas”, “A Alma e o Corpo”, “A Leveza e o Corpo”, “A Grande Marcha” e “O Sorriso de Karenin” (sim, algumas partes são homônimas!). Precisei de três noites para concluir esta obra. Inicie a leitura na terça-feira desta semana e a encerrei na última quinta-feira.
A temática principal de “A Insustentável Leveza do Ser” está na representação ácida dos relacionamentos conjugais. Milan Kundera mergulha nas mentes e nos corações de suas personagens para construir um raio-X poético dos medos, das alegrias, das incongruências, das privações e dos prazeres sentimentais dos casais modernos. Dessa forma, assistimos a várias dicotomias: prisão versus liberdade, dependência versus independência, individualidade versus coletivismo, monogamia versus poligamia, amor versus paixão e prazeres afetivos versus prazeres carnais. Esqueça a visão romântica dos matrimônios e dos namoros. O autor tcheco prefere a abordagem realista e nem um pouco politicamente correta para desenvolver suas tramas sentimentais.
Curiosamente, “A Insustentável Leveza do Ser” é narrado em primeira pessoa (uma escolha acertada, mas que não deixou de ser arriscada). O narrador é alguém misterioso, que não é identificado claramente nas páginas do livro e que apenas observa as ações, os pensamentos e as emoções dos protagonistas do romance. Em muitos momentos, temos a impressão de que o narrador seria o próprio autor e que as pessoas retratadas seriam suas personagens literárias. Ou seja, há um forte componente metalinguístico nesta narrativa. Esse detalhe confere ainda mais graça e beleza à obra.
Por falar em narração, esta história avança e retrocede constantemente no tempo. É um interminável ir-e-vir. Muitas vezes, há a repetição de cenas e de relatos. Ao invés desse recurso tornar o texto repetitivo e cansativo, ele o deixa ainda mais rico e polissêmico. Afinal, sempre há a retomada da trama com um enfoque de outra personagem. Assim, apesar de já sabermos o que vai acontecer, acabamos mergulhando nos dramas interiores dos casais de protagonistas.
Ao mesmo tempo em que assistimos à ebulição interior destas personagens, também vemos o rebuliço macropolítico da sociedade tcheca entre o final da década de 1960 e o início da década de 1970. O comunismo imposto ao país do leste europeu após a Segunda Guerra Mundial e, principalmente, a invasão russa depois da Primavera de Praga tornaram a Tchecoslováquia uma ditadura repressiva e violenta. Após a queda de Dubcek, o ambiente no país se tornou extremamente opressor e perigoso para os cidadãos. Nesse sentido, o caos de “A Insustentável Leveza do Ser” não é apenas sentimental e interno dos protagonistas. Ele é geral, coletivo, da nação inteira. Essa junção entre caos interno e externo transforma o ambiente do romance de Kundera em um elemento potente e importantíssimo da obra.
É impossível falar de “A Insustentável Leveza do Ser” sem citar sua pegada filosófica. As narrativas de Milan Kundera possuem invariavelmente um tom existencialista do tipo niilista. Este romance não foge à regra. O autor cita diretamente Nietsche, Heráclito, Sócrates, Platão, Descartes, Kant, Parmênides e Freud. Nesta narrativa, temos o debate analítico e, por que não, prático de alguns conceitos: a ideia do eterno retorno, o mundo da contradição, a proposta do amor nascido como metáfora, o desafio da monogamia, a dualidade entre compaixão e liberdade, a conceitualização da revolta, a força da insignificância, o papel do acaso na vida das pessoas, as particularidades do amor e do sexo, o sentimento de culpa, a importância da beleza (e a tristeza do envelhecimento), a busca pela eterna juventude, a psicanálise dos sonhos, o suicídio como escapismo, a violência individual e coletiva, a diferença entre os otimistas (os bem-humorados) e os pessimistas (os mal-humorados), as consequências do kitsch etc.
Juntamente com o texto filosófico, as páginas de “A Insustentável Leveza do Ser” possuem uma grande intertextualidade musical e literária. Desfilam pela história de Kundera os quartetos e sonatas de Beethoven, os pianos e as percussões de Bartok, as canções dos Beatles e as criações de Mozart e de Bach. Também temos a menção às personagens e às obras de Dostoievski, Swift, Stendhal, Kafka, Prochazka, Sófocles, Verne etc.
As personagens deste romance são muito parecidas às das demais obras de Milan Kundera. O que vemos em “A Insustentável Leveza do Ser” é uma coletânea de figuras melancólicas, tristes, desorientadas, egoístas, narcisistas, hedonistas e incompletas. De certa maneira, o autor tcheco exemplifica na ficção o que mais tarde Zygmunt Bauman iria discorrer sobre o homem pós-moderno.
Enfim, adorei “A Insustentável Leveza do Ser”. Eu já o tinha lido na minha adolescência e, naquela época, admito não ter gostado nem um pouco dessa narrativa. Achei o livro lento e entediante. Acredito que eu não estava maduro o suficiente para aproveitar a riqueza e a complexidade da literatura de Kundera. Agora a coisa foi totalmente diferente. O romance mais famoso do tcheco me encantou da primeira à última página. Incrível! Esta obra vale a pena ser lida (ou relida) por quem aprecia trabalhos ficcionais de qualidade e de profundidade.
O Desafio Literário de setembro terá sequência na próxima quarta-feira, dia 18, com a análise de “A Arte do Romance” (Companhia das Letras), publicação de 1986. Este será o quarto livro de Milan Kundera que comentaremos neste mês no Bonas Histórias. Diferentemente de “A Brincadeira” (Companhia de Bolso) e de “A Insustentável Leveza do Ser”, ambos romances, e de “Risíveis Amores” (Companhia de Bolso), uma coletânea de contos, “A Arte do Romance” é um ensaio literário. Nesse título, Kundera aborda as particularidades do ofício de escritor e apresenta detalhes de seu estilo narrativo. Trata-se de um texto imperdível para quem está curtindo o estudo sobre o autor tcheco mais famoso da literatura contemporânea.
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