Livros: Se a Vida Tivesse Receita – A autobiografia de Silvia Leite, a criadora da Torta Holandesa
- Ricardo Bonacorci
- há 14 minutos
- 23 min de leitura
Lançada em julho e com projeto gráfico deslumbrante, esta obra mescla trajetórias pessoais e profissionais da autora paulistana, lições de empreendedorismo, evolução da indústria nacional de sobremesas congeladas, pitadas de autoajuda, paixão pela culinária e várias receitas imperdíveis.

No início de outubro, em meu retorno a São Paulo depois de dois anos morando em Buenos Aires, li um livro que me impactou bastante. “Se a Vida Tivesse Receita” (EV Publicações), a autobiografia de Silvia Leite, está seguramente entre as melhores obras não ficcionais lançadas no Brasil em 2025. E, não por acaso, este título entrou na parte superior da minha lista de leituras preferidas do segundo semestre. Já no meu ranking anual de publicações mais interessantes, ele rivaliza em nível de qualidade com “Como as Democracias Morrem” (Zahar), ensaio político de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, “Copo Vazio” (Todavia), novela dramática de Natalia Timerman, “A Empregada” (Arqueiro), romance de mistério de Freida McFadden, e “Quarto do Despejo” (Ática), diário clássico de Maria Carolina de Jesus. Até agora, essas foram as cinco leituras que mais gostei de ter feito na atual temporada. A maioria já comentei aqui na coluna Livros – Crítica Literária.
Para quem ainda não conhece a autora de “Se a Vida Tivesse Receita”, vale a pena dizer que Silvia foi a criadora da torta holandesa, um ícone da confeitaria brasileira que muita gente pensa se tratar de um doce importado. Falo por mim mesmo. Jurava que essa receita, minha sobremesa gelada favorita juntamente com o creme de mamão papaia, tinha chegado ao nosso país pelas mãos dos imigrantes dos Países Baixos. Na minha cabeça pra lá de avoada, o doce teria vindo na bagagem dos colonizadores que aportaram em Pernambuco no século XVII. Porém, para minha incredulidade (e, creio eu, para espanto de muitos leitores), a torta queridinha de tantos brasileiros foi desenvolvida por uma paulistana no início da década de 1990 em uma minúscula cafeteria no Centro de Campinas. Incrível notar o nosso desconhecimento em relação à história recente de itens famosos de nossa gastronomia, né?!
Essa é apenas uma das muitas surpresas contidas nas páginas desta obra desenvolvida pela EV Publicações. Outros elementos que chamaram minha atenção logo de cara em “Se a Vida Tivesse Receita” são as trajetórias pessoal e profissional de Silvia Leite, que combinam superação às tragédias familiares, dedicação ao trabalho, devoção ao empreendedorismo e paixão pela cozinha. Juro que a vida dela até parece extraída da trama de uma telenovela mexicana ou venezuelana (muito mais emocionantes, vamos combinar, do que as telenovelas brasileiras). Afinal, a quantidade de dramas e reviravoltas desse título biográfico é de tirar o fôlego. Muitas vezes, a realidade supera a ficção na arte de elaborar enredos recheados de conflitos e provações. Exatamente por isso, há biografias que não seriam tão comoventes se fossem produzidas pelos mais criativos romancistas, dramaturgos e cineastas. É o caso deste livro. Gostei tanto dele que me senti na obrigação de produzir um post exclusivo no Bonas Histórias sobre seu conteúdo.
Entre os vários feitos de Silvia que posso adiantar está a construção de uma das principais fábricas de sobremesas congeladas do nosso país, a Holandesa & Cia, entre a segunda metade da década de 1990 e a metade dos anos 2000. A partir de sua paixão pela culinária, ela expandiu a cozinha residencial onde produzia tortas geladas e pães de queijo de maneira amadora e desenvolveu uma moderna linha de montagem industrial com as técnicas mais avançadas da época. Assim, tornou-se uma das empresárias nacionais mais inovadoras e admiradas do setor de doces. Incrível, não é?! Impossível não tirar o chapéu para uma mulher incansável quando o assunto é materializar sonhos grandiosos.

Contudo, antes de detalhar as revelações de “Se a Vida Tivesse Receita” e os principais aspectos da autobiografia de Silvia Leite, as propostas centrais deste post, preciso informar aos leitores da coluna Livros – Crítica Literária que conheci esta obra dois anos antes de seu lançamento. É isso mesmo, senhoras e senhores! Como editor e ghostwriter da EV Publicações, função que exerço há quase cinco anos, tenho às vezes a incumbência de avaliar os originais que a editora recebe. Foi o caso deste título. Em setembro de 2023, li a versão inicial do texto de uma tal de Silvia Maria Espírito Santo. O curioso é que, diferentemente de muitos materiais avaliados, este já chegou redondo, redondinho.
Prova disso foi o parecer que enviei para Eduardo Villela, o publisher da minha empregadora. Leiam na íntegra o início do meu parecer técnico:
Bom dia, Eduardo. Tudo bem?
Nesta semana, li o livro da Silvia Maria Espírito Santo. Segue, abaixo, minha impressão geral. No arquivo anexo, fiz os comentários no próprio texto:
A obra está espetacular. Parabéns! Você tinha me adiantado que era uma publicação voltada para o empreendedorismo. Concordo. Porém, vou mais a frente: ela serve não apenas para leitores interessados em montar negócios. A história da Silvia é também uma inspiração para pessoas fora do universo empresarial. Falo por mim. Não quero empreender nem trabalhar em empresas como executivo. E mesmo assim, desfrutei da leitura. Eita texto mais delicioso este, meu amigo!!! Não tenho dúvida em dizer que esse título será uma influência muito positiva para muita gente, seja o público feminino, seja o público masculino. As lições de vida da Silvia são abrangentes e universais. Suas palavras, a garra, a sede de conhecimento e a paixão por fazer o que ama são emocionantes (e inspiradores)!
O que mais gostei do livro foi a estrutura dos capítulos e a ordem da narrativa. Confesso que achei sua estrutura perfeita. O relato não perde força em nenhum momento. Para ser sincero, nenhum escritor de ficção ou roteirista de cinema contaria essa trama melhor. Quando achamos que tudo está bem, surge um imprevisto, uma fatalidade e a autora precisa se reinventar, se superar. Maravilhoso!
Gostei também da maneira direta e sincera com que Silvia relata sua vida. Parece que ela está conversando com a gente. Se isso foi proposital, saibam que vocês acertaram na mosca! Juro que me senti na sala da casa dela, comendo um pão de queijo, tomando um cafezinho e ouvindo ela falar. Até consegui visualizar um caderno de receitas enorme aberto em cima da mesa.
Outra questão incrível do livro foi a ideia de colocar as receitas no meio da história. As inserções culinárias dão uma quebrada legal na narrativa, deixando o tom mais leve e corroborando com a paixão da autora. Para ficar perfeito, minha sugestão é colocar no final do livro um índice com cada receita e as páginas onde elas aparecem. Assim, se o leitor depois quiser consultar só as receitas, ele acha mais facilmente. Se for viável do ponto de vista gráfico e financeiro, é legal colocar as imagens de cada receita no livro. Juro que fiquei curioso, durante a leitura, para visualizar as fotos dos pratos. Com imagens atraentes, eu me sentiria mais incentivado a prepará-los.
Como falei, não mexeria em nada na estrutura dos capítulos nem na lógica da narrativa. Como você me conhece, Eduardo, para eu não palpitar sobre isso mostra o quanto gostei do livro. Reafirmo: ele está perfeito sob o ponto de vista da ordem narrativa, da estrutura do relato e do tom da história. Não mexam em nada disso, por favor!
O que quero dizer com estrutura e ordem narrativas perfeitas? Juro que fiquei com o coração na boca quando a autora sofre o acidente e perde o namorado/noivo (e consequentemente a filha/enteada e a escola infantil). E o que dizer quando a fábrica de sobremesas é vendida, hein? A gente se choca e chora junto com a autora (fiquei imaginando o que eu sentiria se alguém quisesse vender o meu blog...). Há muitas e ótimas passagens dramáticas nesse livro: golpe dos funcionários; dificuldade ao se tornar uma empresa maior; morte da mãe; e deixar aquela família no interior da Inglaterra quando as criancinhas gritavam para ela não ir embora. E há também cenas engraçadas (blitz policial na estrada; e proibição de abrir empresa no apartamento residencial) e românticas (encontro com o futuro namorado quando ele matriculou a filha na escola da autora; e acaso/destino de se sentar ao lado do homem que seria seu marido no avião de volta ao Brasil). Reafirmo: essa mistura de diferentes tons está SENSACIONAL!!!

É claro que essas são apenas as primeiras páginas da minha análise do original. O material que enviei para a editora tinha algumas páginas. Lá, detalhei muito mais aspectos do livro, que até aquele momento não tinha nome. O importante a ressaltar é que o texto de Silvia tinha poucos problemas. Talvez seu maior equívoco tenha sido esse que apontei nesse trecho:
(...) O conteúdo do texto está primoroso, mas a estética da linguagem ainda não está perfeita. Há oralidade excessiva em algumas partes, alguns vícios de linguagem e frases mal formuladas em alguns capítulos. Ou seja, é preciso dar aquela boa arrumada no visual das frases para a estética da linguagem ficar compatível à qualidade do conteúdo. É o que eu chamo de dar uma perfumada no texto para ele ficar com uma aparência sedutora.
Em outras palavras, achei o texto desta obra pouco profissional. Na minha cabeça, o redator ou o ghostwriter escolhido para redigir a história de Silvia Leite era muito fraquinho. Isso é, para não dizer amador. Para quem não conhece a dinâmica do mercado editorial, aviso que poucos autores produzem as próprias narrativas. Eles geralmente contratam alguém para redigir suas ideias. Isso é comum, inclusive, na ficção, acreditem se quiser. O fato é que o único aspecto da versão inicial de “Se a Vida Tivesse Receita” que me desagradou foi a fluidez e a qualidade da estética textual.
Cinco meses depois do envio do meu parecer técnico, no Carnaval de 2024, Eduardo Villela viajou de férias com a família para Buenos Aires (beijo, Adriana, Gui e Larissinha!!!) e aproveitou para me visitar em Saavedra. Nas nossas conversas sobre os vários projetos da EV Publicações para aquele ano, perguntei sobre o livro da Silvia, para mim o melhor título que tinha avaliado pela editora no ano anterior. Foi aí que descobri que não havia um redator/ghostwriter o desenvolvendo. Eduardo me revelou que a própria Silvia estava trabalhando no texto e não aceitava que ninguém mexesse nele. Por isso, a obra demoraria um pouco mais para ser lançada, mas permaneceria totalmente com o DNA da autora.
Juro que fiquei encantado com essa postura da escritora. Silvia Leite mostrava-se realmente como a visualizei nas páginas de sua publicação: uma profissional dedicada, focada na excelência e, principalmente, do tipo que arregaçava as mangas da camisa e colocava a mão na massa. Se fosse para melhorar o original, ela mesma se encarregaria disso, nem que tivesse que aprender novas competências e evoluir em algo até então inédito em seu repertório profissional. É só ler alguns capítulos de sua biografia para imaginá-la cuidando pessoalmente e com o esmero do próprio texto. Tal qual uma receita desenvolvida com todo o cuidado em sua cozinha, ela moldaria o livro de acordo com sua sensibilidade e preferência. Aposto que nunca passou pela mente dela autorizar alguém a mexer em seus ingredientes narrativos. Impossível não ficar fã de alguém assim!

É bom dizer que esse tom pessoal e de pegada artesanal pautou todo o projeto editorial de “Se a Vida Tivesse Receita”, não apenas o texto. Por exemplo, o projeto gráfico, a diagramação e a produção das imagens não foram desenvolvidos pela equipe da EV Publicações e sim por profissionais do círculo íntimo da autora e de sua mais alta confiança. Tendo total controle sobre todas as fases da confecção do livro, Silvia conseguiu deixá-lo do jeitinho que queria. Se essa decisão trouxe alguns problemas (como veremos mais a frente), por outro lado imprimiu as marcas do DNA da empresária em sua publicação.
“Se a Vida Tivesse Receita” surgiu da necessidade de Silvia Leite em contar suas histórias para o grande público. Afinal, poucas pessoas conheciam sua trajetória e seus feitos. Workaholic assumida, nunca teve a preocupação de cuidar da sua imagem nem de se autopromover. Ao invés de perder tempo com publicidade, marketing e assessoria de imprensa, lá estava ela empreendendo ou inventando algo novo. Contudo, há mais ou menos três anos, bateu a vontade de compartilhar os momentos mais marcantes de sua vida com familiares, amigos, conhecidos, funcionários, fornecedores e clientes. Assim, se concedeu algumas semanas de “férias”, comprou uma passagem para um cruzeiro internacional e partiu para seu “retiro”. Ao invés de usufruir do lazer e da diversão do navio, ficou trancada em sua cabine escrevendo sua história. Nada mais Silvia Leite, senhoras e senhores!
Nascida na cidade de São Paulo e residente há muitas décadas em Campinas, Silvia é formada em Educação Física pela PUC-Campinas e em Tecnologia de Alimentos pelo SENAI/ITAL. Também é pós-graduada em Psicomotricidade pela PUC-Campinas e possui MBA em Marketing pela FGV-SP. Sua invenção culinária mais conhecida é, obviamente, a torta holandesa. Contudo, ela desenvolveu outros doces amados pelos brasileiros: torta alemã, gelado inglês e creme holandês. Entre seus empreendimentos comerciais mais vultuosos, o destaque vai para a Holandesa & Cia, a maior empresa de sobremesas congeladas do Brasil até meados dos anos 2000, quando foi vendida para a atual Mr. Bey Alimentos. Hoje em dia, Silvia Leite é uma das principais franqueadas da Kopenhagen, dona da loja mais movimentada desta rede de chocolates.
Lançado oficialmente em julho deste ano, “Se a Vida Tivesse Receita” é o primeiro livro da autora. As sessões de autógrafos iniciais ocorreram em Campinas e São Paulo. O evento paulistano aconteceu no Casarão da Livraria Cultura, em Higienópolis, bairro central da capital paulista. Além do bate-papo e dos autógrafos, a sessão promoveu a degustação da torta holandesa. A sobremesa foi preparada segundo a receita original por sua própria criadora. Confesso que estava louquinho, louquinho para conhecer essa publicação. Só não fui ao seu lançamento porque não vivia no Brasil naquela época. Contudo, assim que cheguei a São Paulo, tratei de comprar essa obra. Se o original tinha me encantado, fiquei imaginando o resultado do título pronto. E não me enganei. Ele realmente ficou primoroso!
Antes que alguém levante suspeitas sobre um possível conflito de interesses entre meu trabalho de editor e ghostwriter na EV Publicações e meu ofício de crítico literário no Bonas Histórias, aviso desde já que não participei de nenhuma fase do desenvolvimento do livro de Silvia Leite. Apenas fiz um parecer elogioso no segundo semestre de 2023. Naquela oportunidade, falei para a editora que a autobiografia avaliada tinha qualidade muito acima da média (algo que Silvia Leite se recordou mais tarde e, de maneira muito elegante, comentou nos agradecimentos de sua obra).

Por isso, fiquei muito à vontade para, no finalzinho de 2025, produzir essa análise no blog. Reforço que NUNCA comentei um título na coluna Livros – Crítica Literária em que tivesse participado de alguma fase de sua confecção. JAMAIS!!! Ainda que poucos se preocupem com essa mistura de trabalhos, sigo sabendo separá-los muito bem em nome da minha (talvez imaginária) credibilidade nos dois campos.
Voltando ao conteúdo de “Se a Vida Tivesse Receita”, gostaria de dar um apanhado geral em seu enredo. Serei um tanto superficial para não estragar as inúmeras surpresas e reviravoltas do texto original, tá? Até porque, quem ainda não leu esse livro, deveria lê-lo sim ou sim. E não serei eu que vou estragar a narrativa impecável desta obra dando os spoilers!
“Se a Vida Tivesse Receita” respeita a ordem cronológica dos acontecimentos. Silvia começa relatando, no primeiro capítulo, sua infância no bairro da Aclimação, em São Paulo, nos anos 1960. Desde muito criança, o que ela mais gostava de fazer era cozinhar e arrumar a casa para as visitas da família. Sua maior inspiração era a avó materna, que cuidava do lar, já que a mãe, uma executiva de compras, passava o dia fora. Com cinco anos de idade, Silvia Leite já fazia as primeiras receitas no fogão e montava a mesa para os chás da tarde que sua avó promovia para as amigas. De tão precoce, foi natural que, aos 12 anos, a narradora do livro já se sentisse à vontade para cuidar sozinha da cozinha de casa, onde preparava todas as refeições familiares. Sua paixão pela culinária seguiu adolescência adentro, quando fez cursos, participou de concursos gastronômicos e se aventurou para conhecer as melhores confeitarias do bairro.
Quando passou no vestibular de Educação Física na PUC de Campinas, se mudou para o interior. Enquanto fazia aulas, estagiava e se tornou a cozinheira oficial na República estudantil em que vivia. Uma vez formada, foi trabalhar numa creche em Jaguariúna. Em dois meses, assumiu a direção da instituição. Encantada com o universo da educação infantil, fez pós-graduação em Psicomotricidade, uma área até então nova da Psicologia. Com a veia empreendedora aflorada e a ajuda financeira do pai, Silvia criou a Berçarte, em janeiro de 1984, em Campinas. Mistura de berçário e escola infantil, o estabelecimento usava os conceitos mais inovadores da Psicologia da época. Não é preciso dizer que ele rapidamente se tornou um enorme sucesso entre as famílias de classe média alta da cidade.
Foi nesse momento que a autora conheceu Cleiton, jovem viúvo que tinha uma filha de três anos, Mariana, matriculada na Berçarte. Não demorou para a dona do berçário se apaixonar pelo cliente. Em pouco tempo, eles já viviam como um casal e Mariana era a filha (adotiva) que Silvia sempre desejou ter. Contudo, um acidente automobilístico destruiu não apenas o sonho dela de construir uma família como também inviabilizou o desejo de fazer seu primeiro negócio prosperar. Ela tinha 28 anos quando se viu presa à cama de hospital por mais de um ano. A recuperação da fratura nas pernas e na bacia foi longa e dolorosa. Contudo, a dor maior foi a perda definitiva do namorado e o distanciamento da enteada.

Uma vez recuperada fisicamente do acidente, a narradora se mudou para Londres para fazer intercâmbio. Lá trabalhou como babá e pôde aperfeiçoar o inglês. Na residência em que mais tempo ficou, foi funcionária de um casal formado por um holandês e uma inglesa. Eles tinham duas crianças adoráveis, de 3 anos e de 6 meses, que ficavam sob os cuidados integrais da babá brasileira.
Ao voltar ao Brasil no fim de 1989, Silvia conheceu seu futuro marido, Marcos. Eles decidiram viver em Campinas e se tornaram sócios em uma microempresa de alimentos. Inicialmente, a cozinha da casa era onde ela fazia os doces gelados e os pães de queijo, que eram depois vendidos por ele, usando o carro da família, para restaurantes da região. O empreendimento cresceu até ser preciso alugar um galpão fabril. Grávida do primeiro filho, Silvia ainda teve disposição para abrir um pequeno café chamado Bruges no Centro da cidade. Sim, ela passava parte do dia na fábrica de doces congelados e de pães de queijo, e parte do dia na cafeteria!
O Café Bruges se tornou um enorme sucesso em Campinas ao vender lanches e doces criados por sua proprietária. Entre as invenções mais pedidas estava a torta holandesa, que ganhou esse nome em homenagem à nacionalidade do casal que empregou Silvia na Inglaterra. A partir da receptividade surpreendente do público por seus doces gelados, Silvia começou a desenvolver novas receitas em sua fábrica. Era o início de sua trajetória no mercado de sobremesas congeladas. Após muito estudo e aprimoramento dos processos industriais, ela e Marcos ergueram a Holandesa & Cia, empresa referência no setor de doces gelados do Brasil entre o fim da década de 1990 e meados dos anos 2000.
Contudo, como a vida empreendedora não é nada fácil, a partir do sucesso da Holandesa & Cia vieram novos e maiores problemas: concorrência predatória, golpe de funcionários, elevação das exigências dos clientes, enormes perdas financeiras, necessidade de expansão para as grandes cidades do país etc. Paralelamente, Silvia precisou cuidar de várias complicações no seio familiar: distância do pai que foi morar no Rio de Janeiro, doença da mãe e, o que até então parecia impossível, divergências com o marido (e sócio) em relação ao futuro dos negócios. A partir daí, Marcos e Silvia não se entenderam mais. É justamente nessa parte que começam as passagens mais emocionantes e fortes do livro.
“Se a Vida Tivesse Receita” tem 200 páginas. O livro está dividido em 13 capítulos numerados. Há ainda Prefácio de Conrado Adolpho, escritor, consultor de negócios e mentor de empresários; e Introdução e Conclusão (seção chamada de Palavras Finais) feitas pela própria autora. Como já adiantei, as receitas estão distribuídas ao longo dos capítulos. Entendi que os quitutes (tanto doces quanto salgados) são apresentados aos leitores respeitando a ordem cronológica da biografia de Silvia Leite. Portanto, as receitas estão intimamente integradas à narrativa principal. Gostei desse casamento entre as duas partes da obra.

Levei aproximadamente oito horas para concluir essa leitura no primeiro final de semana de outubro. Basicamente, li metade da publicação no sábado: uma sessão de manhã de cerca de duas horas e outra sessão à tarde de mais duas horas de duração. E concluí a outra metade no domingo: sessões matutina, vespertina e noturna de mais ou menos uma hora e meia cada. Não é errado, portanto, dizer que passei o final de semana com esta publicação em mãos.
A primeira observação que gostaria de fazer é justamente sobre o tempo de leitura. Quando abri esse livro, imaginei que fosse percorrer suas páginas mais rapidamente. Afinal, são apenas duas centenas de páginas com muitas imagens e várias receitas. “Em duas ou três horas leio tudo!”, pensei com certa arrogância de quem devora romances caudalosos com a maior naturalidade do mundo. Contudo, não contava com duas questões que passaram batidas na minha análise preliminar: o formato grandão da obra (que oculta o enorme volume de texto) e a minha análise minuciosa das receitas (um dos charmes desse título de Silvia). Se você gosta de culinária como eu (e minha família!), saiba que não conseguirá passar os olhos velozmente pelas páginas das receitas.
O segundo elemento que me vejo obrigado a comentar é a beleza gráfica desta publicação. Sem dúvida nenhuma, “Se a Vida Tivesse Receita” é a obra mais bonita que li em 2025 (e talvez nos últimos três anos). Seu projeto gráfico é realmente um espetáculo estético. O formato grandão (22,8 centímetros por 29,0 centímetros), o papel especial (mais parecido ao das revistas premium do que ao dos livros comerciais) e as várias páginas coloridas (com imagens deslumbrantes dos pratos preparados pela autora) são um convite irresistível à apreciação visual. O responsável pelo design desta publicação foi Beto Mallmann, artista plástico e diretor de criação campineiro que conhece Silvia Leite há muitos anos. Admitamos que seu trabalho aqui é de tirar o chapéu.
O mais legal é notar que “Se a Vida Tivesse Receita” não é apenas um livro bonito. Por mais impecável que seja seu projeto gráfico, ainda assim o ponto alto desta obra é a narrativa emocionante da vida da empresária paulistana. Quando disse que as trajetórias pessoal e profissional de Silvia parecem extraídas de uma telenovela, não estava exagerando. Há passagens que são fortes e inesquecíveis, capazes de tocar até mesmo as almas mais gélidas. Confesso que me recordava de vários momentos desta autobiografia da primeira leitura. E olha que li o original há mais de dois anos! Isso prova o quão marcante é essa história.
Os instantes que até hoje mexem comigo são: acidente automobilístico que provocou a perda do primeiro amor (Cleiton) e impossibilitou o convívio com a enteada (Mariana), além do fechamento da escola infantil (Berçarte); coragem de fazer intercâmbio na Inglaterra; primeiro empreendimento com o marido Marcos (fabricação de pão de queijo no apartamento residencial); saga de buscar a melhor receita de torta de morango para o tradicional restaurante da cidade; sucesso do Café Bruges e invenção da torta holandesa; mergulho obstinado pelos detalhes técnicos da produção industrial; golpe aplicado pelos funcionários na fábrica; negociação de venda da Holandesa & Cia (na minha visão, o ponto mais dramático da obra); recomeço como franqueada da Kopenhagen; e assassinato da funcionária querida da loja. Ufa!

Vale dizer que Silvia rememora o passado de um jeitão simples, direto e honesto, como parece ser seu perfil pessoal e profissional. Ela não quer se autopromover nem grita ao mundo: “Pessoal, eu sou a inventora da torta holandesa e de outros tantos doces que estão no dia a dia de vocês até hoje! Também sou a empresária que revolucionou o setor de sobremesas no país”. Não! Juro que não vi qualquer resquício de arrogância, superioridade ou ressentimento em suas palavras. Sua narrativa tem o tom de conversa amigável e informal de quem recebe os leitores na sala de casa para um café com pão de queijo e um dedo de prosa. Enquanto troca receitas com os visitantes, que provam as delícias colocadas à mesa, a anfitriã aproveita para compartilhar suas trajetórias pessoais e profissionais de coração aberto.
Confesso que lendo a autobiografia da empresária paulistana, me recordei bastante de Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva, a mãe de Rubens Paiva, autor de “Ainda Estou Aqui” (Alfaguara). Tal qual Eunice Paiva, a famosa protagonista do livro (e não tanto a personagem principal do filme de Walter Salles), Silvia Leite foi uma mulher a frente de seu tempo e sempre se provou destemida e incansável. Ao mesmo tempo, colocou o trabalho e a obstinação profissional como prioridades absolutas de sua existência. Esta é uma característica de muitos empreendedores, que nunca sossegam, não sabem delegar e jamais largam o osso da liderança de suas companhias. Por ter pessoas assim na minha família, consigo entendê-las, apesar de, ainda assim, tecer fortes críticas à falta de outras prioridades em suas vidas além da dedicação ao ofício profissional. Afinal, depois de um tempo, o indivíduo que só pensa em trabalho 24 horas por dia se torna naturalmente entediante e vazio.
Falo isso porque enxerguei Silvia como uma figura redonda (alguém com qualidades e defeitos, que acerta muitas vezes, mas que também erra) e não uma personalidade plana (que só tem virtudes e que está imune às falhas e aos equívocos). Quando temos essa compreensão abrangente da realidade, a história dela se torna ainda mais potente. Afinal, a protagonista é uma pessoa como a gente: real, normal e, por vezes, falha. Mesmo assim, ela foi capaz de feitos grandiosos, o que só eleva seus méritos aos olhos dos leitores.
Uma das passagens mais emblemáticas de “Se a Vida Tivesse Receita” é quando Silvia e Marcos discutem o que fazer com a Holandesa & Cia após a empresa familiar alcançar o posto de líder do segmento de doces congelados e ser cortejada por multinacionais do mercado alimentício. Vendê-la ou seguir trabalhando para fazê-la crescer mais e mais? Note que não há uma resposta certa ou errada para esse delicado questionamento. Apesar de entender a postura do marido da autora (talvez eu seja mais parecido com ele do que com Silvia), admito que doeu em mim o desfecho das negociações. Conseguimos sentir a dor da empresária com os acontecimentos. Esse capítulo é simplesmente incrível, uma lição inigualável de vida e de empreendedorismo.
Outra questão que chama a atenção neste livro é a variedade de gêneros narrativos que ele mesclou. Estamos falando, por supuesto, de uma biografia (no caso, uma autobiografia). Não há dúvida que essa é a parte central da publicação. Contudo, há elementos de autoajuda, lições de empreendedorismo, conselhos de gestão e apresentação do universo corporativo das últimas três décadas em nosso país. Ou seja, a narrativa de “Se a Vida Tivesse Receita” é versátil e plural. Por mais que tenha achado desnecessárias as pílulas de motivação e empoderamento ao leitor (mania de nove entre dez títulos biográficos recentes), respeito a decisão por esse caminho editorial. De qualquer maneira, alerto que a trajetória de Silvia é, por si só, recheio suficiente para um livro apetitoso.

Também adorei o nome desta obra. Acho que não poderia haver título melhor para resumir a vida da autora. Repare que ele é simples, mas possui forte carga poética, o que confere uma belíssima camada intertextual. Conhecendo de perto o trabalho da EV Publicações, imagino que a escolha por essa nomeação tenha partido de Silvia e/ou de sua equipe de designers. Porque essa editora é campeã em escolher os nomes mais esdrúxulos para suas publicações. Admito que não conheço uma casa editorial brasileira tão ruim na arte de dar títulos aos seus livros. Um bom exemplo é “A História da Cachorra que Mudou a Minha Vida e vai Mudar a sua Também”, de Leandro Sosi. Quando o nome é bom, a equipe de divulgação embaralha título, subtítulo e chamada comercial. Aí o melhor exemplo é coleção de romances “A Contrapartida”, de Uranio Bonoldi.
Por mais impactantes e interessantes que sejam o conteúdo e o visual de “Se a Vida Tivesse Receita”, é bom dizer que esta obra pecou em alguns aspectos, algo que não poderia omitir dos leitores do Bonas Histórias. Sei do risco do Eduardo Villela e da própria Silvia Leite ficarem chateados comigo pelas linhas menos elogiosas do meu texto. Contudo, reforço que, em todas as avaliações da coluna Livros – Crítica Literária, há menções positivas e há comentários de pontos a melhorar das publicações analisadas. Trata-se de uma conduta corriqueira de qualquer julgamento imparcial e honesto. Por mais brilhantes que sejam os títulos estudados, ainda assim eles não são perfeitos.
A primeira pisada de bola foi com a diagramação um tanto amadora. Nota-se a total falta de cuidado estético principalmente na seção das receitas. Os textos com o detalhamento dos doces e dos salgados feitos por Silvia não têm espaçamento adequado entre linhas, alinhamento à direita nem espaço de início de parágrafo à esquerda. Parece que o conteúdo foi simplesmente atirado no arquivo sem qualquer zelo. As receitas com mais de uma página possuem duplo título, um disparate que confunde o leitor. Ou seja, essa parte do livro não parece que foi feita com o mesmo primor da narrativa principal (relato da vida da autora). Juro que há muito tempo não via uma publicação com tantos tropeços na diagramação de uma seção. Chega a ser assustador o amadorismo de quem cuidou dessa tarefa. Falo sobre esse problema porque ele afetou a minha experiência de leitura.
Aí está o lado ruim de se abrir mão do trabalho dos profissionais da editora e contratar amigos ou conhecidos para realizar os trabalhos editoriais. Se eles não forem tarimbados e acostumados ao ofício, problemas desse tipo ocorrem mesmo. Foi o caso de “Se a Vida Tivesse Receita”. Por mais compreensível que fosse a vontade de Silvia Leite de manter o controle de todo o processo editorial, arrisco a dizer que quem fez a diagramação dessa obra não tinha qualquer experiência nessa tarefa. Uma coisa é fazer um projeto gráfico deslumbrante e impecável. Outra coisa é realizar a diagramação condizente com padrão de mercado. Se esse livro conseguiu cumprir o primeiro objetivo, ficou longe do segundo.
Na parte da narrativa central, há alguns pequenos escorregões na diagramação: uma frase repetida aqui, algumas linhas sem espaçamento inicial de abertura de parágrafo acolá. Também encontrei um número de capítulo equivocado no sumário e algumas palavrinhas grudadas. Contudo, esses probleminhas são questões normais que ocorrem em muitos projetos editoriais e, creio eu, não afetam em nada a experiência de leitura (diferentemente dos problemões da ala das receitas, que impactaram sim). Por isso, os relevei, algo que não deu para fazer na parte das receitas. Lá os equívocos são imperdoáveis.

Por falar nas receitas, achei até mesmo ruim o texto dessa seção. A impressão é que, além da péssima diagramação, seu conteúdo não recebeu a mesma atenção do restante da publicação. Tive tal percepção porque eu e Marcela, minha irmã, nos lançamos ao desafio de reproduzir alguns dos pratos sugeridos por Silvia. E das seis receitas que já realizamos (torta de morango, torta holandesa, bolo de nozes, torta de limão super fácil, pão de queijo do Benjamin Abrahão e pãozinho minuto), encontramos alguns tropeços textuais. Alguns foram de ordem de interpretação e outros foram de questionamento sobre a receita em si.
Na torta de limão, por exemplo, está escrito nos ingredientes: “três claras de ovo e mesma medida de açúcar”. Como assim?! Quanto tem de medida três claras de ovo?! Ficamos em dúvida. Na torta de morango, a explicação começa: “separe metade da massa e, com pequenos pedaços, vá moldando toda a lateral da forma”. Beleza, fizemos isso. Porém, em nenhuma parte das instruções fala o que fazer com a outra metade da massa que foi separada inicialmente. Ou foi erro nosso de interpretação ou o texto está um tanto dúbio. No bolo de nozes, ficamos com a sensação de que está faltando algo para dar sustentação à massa. Afinal, nas duas vezes que tentamos fazer o bolo, ele se desmanchou.
Claro que a culpa pode ser da dupla de confeiteiros amadores que se aventuraram por caminhos nunca dantes navegados. Até acho que esse tenha sido o principal motivo das receitas que não deram certo em casa. Ainda assim, confesso que eu e Marcelinha tivemos a impressão de que o texto dessa parte do livro não foi tão didático com os leitores com pouca prática na confeitaria. Pelo menos, eles geraram algumas dúvidas em nossas cabecinhas.
Por fim, tenho que tratar da questão da precificação, aspecto que certamente incomodará boa parte dos consumidores que vão às livrarias para adquirir o livro de Silvia Leite neste fim de ano. Infelizmente, “Se a Vida Tivesse Receita” não é uma obra barata. Diria até que seu valor é beeem salgadinho (desculpe-me o trocadilho involuntário). Paguei R$ 199,00 (fora o frete) por sua compra na Amazon. Vamos combinar que não é um preço nem um pouco acessível, né? Para comparação, o ticket médio dos livros novos no Brasil está atualmente entre R$ 60,00 e R$ 70,00. Em outras palavras, com o dinheiro de um exemplar de “Se a Vida Tivesse Receita” dá para comprarmos três títulos recém-lançados.
Antes que alguém acuse a editora e a escritora de praticar preço abusivo, sinto-me na obrigação de esclarecer o possível mal-entendido. Essa publicação tem um custo mais elevado exatamente pelas escolhas do projeto gráfico. O tamanho diferenciado, as várias páginas coloridas e o tipo de folha com qualidade e espessura maior cobram (literalmente) seu preço. É aquele negócio: não dá para entregar um produto com maior requinte e sofisticação sem onerá-lo.

Portanto, sei que esse livro é caro. Ao mesmo tempo, não dá para dizer que ele não entrega conteúdo (textual e visual) a altura do valor superior. Muitas vezes, vale a pena pagar mais e ter uma excelente experiência literária do que pagar barato e se decepcionar. A prova maior do forte apelo desta publicação foi a reação da minha família. Logo depois que li “Se a Vida Tivesse Receita”, Marcela, que além de minha irmã é colunista da seção Dança aqui do blog, o roubou de mim. Ela ficou curiosa pela história do “livrão bonito” que seu mano tinha comprado e pelas “receitas de fotos maravilhosas” que a obra apresentava. Assim, o livro de Silvia foi parar na cozinha da casa de hermanita. Com ele em mãos, Marcelinha fez várias receitas deliciosas, que chamaram a atenção da minha mãe. Hoje, “Se a Vida Tivesse Receita” está na cozinha do apartamento materno.
Curiosamente, tanto minha irmã quanto minha mãe não ficaram presas apenas às receitas. Pelo que percebi, elas começaram a ler a história de Silvia. Sei disso porque ambas comentaram, por acaso, aspectos da trajetória da autora. Marcela me perguntou: “Será que minha torta holandesa está tão boa quanto a do Café Bruges?”. E minha mãe soltou na semana passada: “Ricardo, vamos fazer qualquer dia desses a pizza que a Silvia aprendeu no curso do Benjamin Abraão?”. Vamos combinar que elas não fariam tais questionamentos (não dessa maneira, né?) sem ter lido a parte biográfica de “Se a Vida Tivesse Receita”.
Por isso, digo sem medo de que esse é um livrão. Ele é aquele título que irá passar de mão e mão em sua família. E vai agradar em cheio aos leitores que curtem belas histórias, lições sagazes de empreendedorismo e boas receitas. Se vocês me permitem a sugestão, diria até mesmo que se trata de um excelente presente de final de ano. Ele é caro? É muito. Porém, compensa cada real investido, seja para ter na biblioteca residencial, seja para agraciar alguém querido.
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