Livros: Copo Vazio – A novela best-seller de Natalia Timerman
- Ricardo Bonacorci

- 15 de set.
- 19 min de leitura
Publicado em fevereiro de 2021, o drama sentimental de uma mulher vítima de ghosting se tornou uma das obras ficcionais mais vendidas no Brasil nos últimos anos e catapultou a carreira literária da psiquiatra paulistana.

No final de semana passado, li um livro que repousava há muito tempo na minha estante. “Copo Vazio” (Todavia) é a novela que alavancou a carreira literária de Natalia Timerman. Até hoje, esta obra é considerada a melhor da escritora paulistana, que também é médica psiquiatra e psicoterapeuta. Depois desse título, é bom que se diga, Timerman não apenas passou a ser vista como uma das principais autoras da literatura brasileira contemporânea como virou best-seller da ficção nacional. Impossível não querer conhecer o trabalho de alguém que conquistou tanto a admiração do público leitor quanto o respeito da crítica literária.
Mesmo sabendo do êxito impressionante de “Copo Vazio”, uma das publicações ficcionais mais vendidas no biênio 2021/2022 no Brasil, adiava, adiava e adiava, não sei o porquê, o mergulho profundo em suas páginas. Para falar a verdade, meu problema nunca foi a indisposição para a literatura. E sim o excesso de livros na fila de leitura. Seja como crítico literário e crítico cultural do Bonas Histórias, seja como ghostwriter e editor da EV Publicações e produtor de conteúdo da Epifania Comunicação Integrada, minha rotina é ler e escrever, ler e escrever, ler e escrever, ler e escrever. Assim, fui preterindo esse exemplar à medida que outros entravam na prateleira de próximas leituras (e furavam descaradamente a ordem de chegada).
Para não cometer o pecado da mentira com a meia dúzia de pessoas que insiste em me acompanhar por aqui, eu já tinha feito a leitura recreativa de “Copo Vazio” há mais ou menos quatro anos. Basicamente, conferi rapidamente sua trama na época do lançamento. A ideia era conhecer sua qualidade narrativa e textual. Contudo, não chamo esse trabalho superficial de leitura analítica, que é o caminhar atento pela obra contemplada e a confecção de uma série de anotações em meu caderno de estudos artístico-culturais. É sobre isso o que estou me referindo, senhoras e senhores. Se não faço o raio-X completo do título ficcional investigado, sinto que não o li direito. Coisa de crítico literário. Coisa da época em que atuava com pesquisa acadêmica na área da teoria literária. Vai entender!
Maluquices à parte, a longa espera acabou no domingo passado. Quando acordei com a boa e velha preguiça matinal de fim de semana, achei por bem ficar largado no sofá residencial do que encarar a friaca do lado de fora do apê. Por falta de venezuelanas ou paraguaias gatinhas como companhia, achei melhor recorrer à literatura e desprezar os encantos do Tinder ou do Happn. Aí ao olhar para a capa de “Copo Vazio” na estante de perfis disponíveis na biblioteca doméstica, dei, enfim, match. Uhu! E como foi prazeroso o date com esta belíssima trama sentimental. Confesso que gostei tanto da experiência que resolvi dar um passo além em nosso incipiente relacionamento e eternizar minhas impressões em um novo post da coluna Livros – Crítica Literária. Portanto, aqui vai a prova cabal (ou seria textual?!) do quão sérias são minhas intenções com a mais recente paixonite ficcional.

Publicado em fevereiro de 2021 pela Editora Todavia, “Copo Vazio” é a terceira obra literária de Natalia Timerman, mas sua primeira novela/romance. O título de estreia foi “Desterro” (Elefante), de 2017, uma coletânea de crônicas de quando a autora trabalhou como médica psiquiatra no hospital do sistema penitenciário de São Paulo. Nessa coleção impactante e visceral de narrativas curtas, assistimos ao drama de presos, carcereiros e médicos obrigados a conviver em um dos ambientes mais atrozes de nossa sociedade. Esse livro foi republicado há poucos meses, em uma nova e mais completa edição pela Editora Todavia.
A segunda publicação de Timerman foi “Rachaduras” (Quelônio), coletânea de contos de 2019 que foi finalista do Prêmio Jabuti – o vencedor daquele ano nessa categoria foi “Urubus” (Confraria do Vento), de Carla Bessa. Em “Rachaduras”, conferimos 22 pequenas histórias ficcionais que retratam dramas bem contemporâneos. Com uma prosa elegante e narrativas sedutoras, a escritora disseca as incongruências da sociedade moderna e lista uma série de medos, traumas, desejos ocultos, impasses, amarguras, doenças físicas e psíquicas, sonhos e absurdos dos cidadãos dos tempos atuais. Vamos combinar que essa é uma leitura reveladora sobre nossas loucuras.
Assim, quando “Copo Vazio” chegou às livrarias brasileiras, Natalia Timerman não era mais uma autora novata, nem na ficção nem na alta literatura. Convenhamos que para ser finalista do Jabuti, a principal premiação literária do país, o artista das letras precisa ter estofo de qualidade. Contudo, o apoio de uma grande editora (com todo o respeito à Editora Elefante e à Editora Quelônio, respectivamente, uma pequena e uma média casas editoriais) e o apelo popular das tramas com maior fôlego (querendo ou não, novelas e romances têm mais aceitação pelo grande público do que os contos e as crônicas) foram decisivos para catapultar a carreira literária de Timerman. Para provar que não estou exagerando, hoje ela é vista como uma escritora que também atua como médica e não mais uma psiquiatra que se dedica à literatura.
Em 2022, a autora paulistana lançou seu quarto livro, o primeiro infantil. “Os Óculos de Lucas” (Brinque-Book) foi publicado por um dos selos da Companhia das Letras direcionado aos leitores mirins e teve como coautora Bel Tatit, psicóloga com mestrado e doutorado em Psicanálise. As ilustrações ficaram à cargo de Veridiana Scarpelli, uma das principais designers de livros infantojuvenis do Brasil. A trama dessa obra gira em torno de um menino que ganhou de presente óculos mágicos. Ao colocá-los, ele vê o mundo por uma perspectiva singular. É como se as lentes lhe dessem a capacidade para enxergar o mundo a partir do ponto de vista onírico, poético e encantado.

“As Pequenas Chances” (Todavia) é o quinto livro de Natalia Timerman e seu primeiro romance (se considerarmos, obviamente, “Copo Vazio” como uma novela). Publicado em agosto de 2023, conforme destaquei no post dos principais lançamentos das livrarias brasileiras daquele bimestre, conteúdo exclusivo da coluna Mercado Editorial, “As Pequenas Chances” é o drama autobiográfico de uma médica que assiste à doença terminal do pai, também médico. Com a volta do câncer agressivo dele, a narradora retrata as tristezas e as dores da família com a chegada da morte iminente e o tom de despedida de uma figura tão querida por todos. Com texto impecável e narrativa poética, Timerman extrai beleza de uma trama profundamente triste. Para quem acha que a moda da autoficção é exclusividade dos autores norte-americanos e europeus, temos aqui um exemplar genuinamente nacional deste gênero.
Por essa rápida passagem pelo seu portfólio, é possível notar que estamos falando de uma escritora beeeeem eclética. Cada um dos seus cinco títulos é de um gênero narrativo distinto: coletânea de crônicas (“Desterro”), coleção de contos (“Rachaduras”), novela (“Copo Vazio”), literatura infantil (“Os Óculos de Lucas”) e romance (“As Pequenas Chances”). O que os une é o retrato original dos relacionamentos humanos, as tramas sensíveis, os conflitos contundentes e as personagens com enorme riqueza psicológica.
Só faltou mesmo Natalia Timerman entrar na seara da poesia para que adquirisse a pluralidade completa de figuras como Veronica Stigger, autora de “Opsianie Swiata” (Cosac Naify) e “Anões” (Cosac Naify), Fabrício Corsaletti, de "Golpe de Ar" (Editora 34) e “Quadras Paulistanas” (Companhia das Letras), e Carolina Zuppo Abed, de “Passatempoemas – Desafios Verbo-lógico-matemáticos” (Quelônio) e "Tecle 2 para Esquecer" (Patuá). Esses sim são escritores nacionais que navegam com propriedade por todos os tipos textuais. Ainda assim, a literatura praticada pela médica paulistana é de uma diversidade invejável.
Como os fãs de Timerman já perceberam, ela está há pouco mais de dois anos sem lançar nenhuma novidade. Esse longo tempo sem publicações inéditas seria o indicativo que vem por aí um novo romance ou uma nova novela de grande qualidade? Tomara! Os argentinos responderiam a essa pergunta com uma das palavras mais charmosas do espanhol: ojalá. Para aplacar essa longa ausência da autora paulistana, vale a pena avisar que ela escreve frequentemente para duas das melhores revistas literárias do país: a Quatro Cinco Um e a Cult. Ou escrevia, já que faz um tempinho que não a encontro pelas páginas desses periódicos. Pelo visto, o silêncio tem sido maior do que poderíamos supor, né?

Já que o post de hoje do Bonas Histórias é sobre “Copo Vazio”, deixe-me focar nesse livro. Foco, Ricardinho, foco! Tá bom, senhoras e senhores, vou me ater às obrigações da coluna Livros – Crítica Literária. Atendendo aos insistentes pedidos dos leitores imaginários que insistem em rondar minha mente, informo que essa novela é um drama sentimental que flerta o tempo inteiro com o suspense psicológico. Abordando temáticas da rotina moderna das grandes cidades, “Copo Vazio” é protagonizado por uma mulher que tinha uma vida aparentemente ajustada: êxito profissional, independência financeira, rede de amigos saudável, ótimos relacionamentos com os familiares, rotina cultural e intelectual ativa etc. Isso até cometer o erro básico de se apaixonar. Atire a primeira pedra quem nunca escorregou nessa casca de banana. O problema não é ficar de quatro por alguém que não merecia o seu coração. O sufoco é enlouquecer quando o(a) amado(a) vai embora sem qualquer explicação plausível.
Natalia Timerman escreveu “Copo Vazio” quando fazia a pós-graduação de Formação de Escritores no Instituto Vera Cruz. Curiosamente, essa história foi apresentada como trabalho de conclusão de curso. Porém, ela tinha outro título e outra proposta naquela época. Passados vários anos, a escritora resolveu modificar completamente a trama para lançá-la comercialmente. Aí repensou a narrativa inteira, reorganizou a estrutura dos capítulos, coloriu as personagens, cortou frases, acrescentou cenas. Ou seja, a novela foi potencializada a partir da perspectiva de uma escritora não mais iniciante e sim de uma autora com certa rodagem no ofício ficcional.
Obviamente, Timerman usou sua experiência como psiquiatra e psicoterapeuta para a construção das personagens, principalmente da protagonista e do antagonista, que possuem uma grande riqueza psicológica. Além disso, como pesquisadora da teoria literária e amante dos bons livros, ela se inspirou diretamente nos clássicos da literatura universal para confeccionar esse drama. De certa maneira, “Copo Vazio” é a versão contemporânea e abrasileirada de “Razão e Sensibilidade” (Principis), obra-prima de Jane Austen. Antes que considerem um absurdo da minha parte tal comparação, comunico que quem fez essa associação foi a própria escritora paulistana em uma das entrevistas de divulgação da novela. Portanto, como diria o outro, “me inclua fora” dessa polêmica, por favor.
Apresentando com mais detalhes o enredo de “Copo Vazio”, sua história se passa essencialmente na cidade de São Paulo nos dias de hoje. Mirela é uma arquiteta bem-sucedida de 32 anos que vive sozinha em um apartamento confortável no bairro de Higienópolis. Sua vida é tranquila e sem grandes complicações. Após um namorico morno com Fernando, a protagonista desta novela de Natalia Timerman curte a solteirice. Por isso, ela tem tempo para sair com os amigos e visitar a família, aproveita a cena cultural da capital paulista e pode passar um tempo consigo mesma, além de investir na carreira em um respeitado escritório de arquitetura. Diferente da música chiclete de Ana Castela, Mirela não é um(a) solteiro(a) forçado(a) – canção congratulada com o Orelhão de Ouro no Prêmio Melhores Músicas Ruins de 2023. Diria até que ela está sozinha momentaneamente e por vontade própria, o que não a preocupa de forma nenhuma.

Contudo, sua solteirice inquieta Marieta, a irmã dois anos mais nova e que ainda vive com a mãe (o pai delas é falecido). Para a jovem, é um desperdício uma mulher bonita, inteligente e divertida como a mana não ter um namorado fixo. Assim, Marieta insiste que Mirela entre num aplicativo de encontros, tais como Tinder, Happn, Bumble e Hinge. Só a ideia de se expor numa plataforma que cataloga as pessoas por fotos e perfis gera indignação na personagem principal da trama. Mesmo assim, após sucessivas negativas de se cadastrar no app, certa noite ao visitar a casa da mãe e já um tanto embriagada, ela dá o braço a torcer e muda de opinião. Sob a supervisão da irmã, Mirela faz sua conta e dá alguns likes.
Não demora para pintar o primeiro match. O rapaz se chama Pedro e é bonitão. Na conversa inicial, Mirela descobre que ele é mineiro de São João del-Rei e que está em São Paulo por causa do doutorado em Ciências Políticas. O bate-papo flui naturalmente, ainda que a moça permaneça descrente de que aquilo pode dar certo, e eles marcam um encontro num barzinho da Rua Augusta. O date no domingo à noite se sai melhor do que o esperado e termina com a dupla na cama do apartamento dela.
Num piscar de dedos (ou seria de olhos?!), Mirela e Pedro se tornam um casal. No caso, um casal daqueles que não consegue se desgrudar. Eles falam abertamente de todos os assuntos, adoram passar momentos à dois, passam os finais de semana inteiros juntos seja na casa dela, seja na casa dele, compartilham alguns planos e apresentam um ao outro aos amigos, parentes e colegas na capital paulista. Até uma viagem para Minas pensam em fazer. Nesse passeio, ele poderia mostrar Mirela para a avó e alguns familiares. Em outras palavras, a impressão é que os dois estão namorando sério. A química imediata e a fluidez do relacionamento permitem a intimidade quase que instantânea entre eles e a formulação de sonhos futuros em conjunto.
Os três meses de união parecem maravilhosos para Mirela. Por mais que o novo crush fale que seja fechadão, pouco sociável, travado em relação aos sentimentos, atrapalhado no convívio com as outras pessoas e com dificuldade para se envolver emocionalmente, na prática ele se prova de fácil trato e de excelente convívio. Nem mesmo o recente término de namoro de Pedro e o jeitão esquisito do rapaz parecem ser problemões. Afinal, ele raramente fala da ex e não demonstra pensar na antiga paixão. Para completar, aos olhos apaixonados de Mirela, a postura introspectiva dele se torna um charme irresistível. O que mais ela pode desejar da vida, hein? Finalmente, as peças de seu cotidiano se encaixam perfeitamente, tal qual Marieta comentou que deveria ser. Se o copo existencial da moça já estava com bastante volume, agora ele ficou completo.

Até o dia em que Pedro para simplesmente de falar com a nova namorada e nunca mais a visita. Sem qualquer motivo lógico, ele lê as conversas de Mirela no WhatsApp e não as responde. Bloquei as redes sociais dela depois de ignorar por semanas seus chamados. O silêncio do rapaz mexe com a personagem principal, que não aceita o término injustificado do relacionamento e insiste como uma louca em reencontrá-lo. Ela cria perfis falsos nas redes sociais para monitorá-lo. Vai até a casa dele, mas não o encontra. Assim, deixa um bilhete para que ele volte a se contactar. E, o que é pior ainda, Mirela não para de pensar em Pedro: sonha rotineiramente com ele, tem pesadelos malucos, lembra do moço a qualquer instante do cotidiano, se deprime com sua ausência, não quer namorar mais ninguém, se torna uma profissional displicente no escritório de arquitetura, não vê tanta graça em sair com os amigos... Em suma, ela crê na volta de Pedro a qualquer momento, mesmo quando os dias se transformam em semanas, semanas viram meses e meses se constituem em um ou mais anos.
Essa é uma história clássica de ghosting (Pedro desaparece da vida de Mirela sem razão aparente e evita a todo custo estabelecer comunicação com ela) e, por que não, de stalker (Mirela não aceita o fim da relação e persegue obsessivamente o antigo namorado). Convenhamos que se trata de uma trama para lá de contemporânea, não é mesmo? Ainda mais porque o relacionamento das personagens principais do livro de Timerman nasceu da interação em aplicativos de namoro, uma praga modernosa, e caminhava a passos de amor líquido, para citar um dos conceitos filosóficos mais famosos de Zygmunt Bauman.
Em um resumo simplório desta trama, vejo o conflito desta novela/romance como o drama de uma mulher que insiste em correr atrás de alguém que foge dela como o diabo da cruz. Ou deveria dizer que o namorado (namorado?!) ignora Mirela ao ponto de seu silêncio e distanciamento representarem um grito desesperado para a mente cada vez mais doentia (e perturbada) da moça, hein?! Pode ser. Fazendo um paralelo com o título da obra, não é errado dizer que, após a partida de Pedro, o copo existencial da protagonista perdeu todo o conteúdo. Se antes de o rapaz aparecer o recipiente figurativo de Mirela estava cheio (ela era feliz), sua saída de cena dragou toda a água (a jovem entrou em depressão profunda).
“Copo Vazio” é uma ficção enxuta. Este livro de Natalia Timerman possui 144 páginas, que estão divididas em 36 capítulos. Por seu tamanho intermediário, o classifiquei como novela (narrativa ficcional de extensão mediana – está entre o conto, história mais curta e simples, e o romance, enredo mais longo e complexo). Apesar disso, é bom dizer que a Editora Todavia, a casa editorial responsável por sua publicação, chama esta obra de romance. Independentemente se é novela ou romance (para mim, é novela), li este título em cerca de duas horas e meia no final de semana passado. Precisei de apenas uma sessão de leitura no domingo pela manhã para ir de uma ponta (capa) à outra (quarta-capa). Para quem não é chegadinho(a) às longas sentadas literárias, acredito que dê para lê-lo em duas ou três imersões, de mais ou menos uma hora, uma hora e meia cada.

A primeira característica de “Copo Vazio” que chama a atenção é o conjunto de temáticas modernas. Estamos falando de um título ficcional que aborda diretamente o ghosting (sumiço da pessoa amada sem motivo aparente), o stalker (perseguição muitas vezes virtual), a solidão contemporânea (tanto Mirela quanto Pedro são almas solitárias dentro de uma metrópole superpovoada), os relacionamentos líquidos (contatos humanos cada vez mais efêmeros, superficiais e remotos); os vícios em jogos eletrônicos (há uma cena divertidíssima da protagonista jogando Candy Crush); a muleta dos aplicativos de namoro (há quem não saiba mais flertar nem azarar fora das telas); e a ânsia por procurar no mundo esotérico evidências do futuro (beijo, Bruxinha!).
Sinceramente, não me recordo de ter lido um drama sentimental que mergulhasse de maneira tão profunda em questões tão atuais. Em outras palavras, o livro de Natalia Timerman oferece um retrato extremamente sagaz dos tempos em que vivemos. Essa história dialoga com nossa realidade e nos faz refletir sobre os acertos e os erros da rotina modernosa. Eu mesmo, por vezes, me vi no papel de Mirela (dilacerado por uma professorinha catarinense que foi embora de Buenos Aires sem ao menos dar um tchau) e, em outras oportunidades, vesti a carapuça de Pedro (fugi do crush que adquiria doses cada vez maiores de loucura e psicopatia). Por isso, é impossível ficarmos indiferentes aos dramas dessa dupla, que parece extraída da vida real.
Por falar na construção das figuras ficcionais de “Copo Vazio”, podemos classificá-las como personagens redondas. Não à toa, esse é um dos elementos mais interessantes desta trama. Mirela não é a heroína clássica à prova de falhas nem está imune aos erros. Por vezes, ela se torna amalucada, obsessiva e egoísta. De tão preocupada com o próprio umbigo, toma decisões eticamente questionáveis. Assim, está longe de ser a moça equilibrada, independente, segura e ajuizada que conhecemos nas primeiras páginas do livro. Quanto mais a história avança, mais Mirela adquire a personalidade de anti-heroína, o que literariamente falando é excelente. Juro que vejo paralelo entre esta criação ficcional de Natalia Timerman e as características de Luiza Martins Couto, a anti-heroína de “1+1=2 2-1=0” (CEPE Editora), romance da genial Fernanda Caleffi Barbetta, e Maria Júlia, a protagonista de índole para lá de questionável de “Suíte Tóquio” (Todavia), uma das melhores obras de Giovana Madalosso.
Mesmo Pedro está looonge de ser o mocinho tradicional que estamos acostumados a encontrar na literatura (no cinema, na televisão, no teatro etc.). Ele é inseguro, dúbio, imaturo, travado no quesito sentimental e, quase sempre, frio com as pessoas. Como consequência, foge o tempo inteiro dos amigos, dos familiares e das mulheres por quem se apaixona. O medo de se envolver o torna bastante arredio e pouquíssimo confiável. Na primeira metade do livro, confesso que fiquei com raiva dele – Freud explicaria minha reação de um jeito que eu não iria gostar! Curiosamente, na segunda metade da novela, minha impressão mudou consideravelmente. Aí fiquei mais assustado com os comportamentos e as decisões de Mirela do que a postura (ou não postura) de Pedro. Legal notar essa transmutação de nossos sentimentos e avaliações durante a leitura, né?

Do ponto de vista estético, “Copo Vazio” exibe uma prosa muito elegante e tece uma narrativa com profundidade dramática. Quem gosta de boa ficção, certamente curtirá a literatura de Natalia Timerman. A autora paulistana sabe como poucos contar boas histórias. Ela constrói normalmente excelentes personagens e, principalmente, consegue mergulhar nas dores íntimas das pessoas comuns. Por isso, me identifiquei de imediato com seu texto e seu estilo.
Dos elementos da narrativa ficcional utilizados pela autora, o que mais gostei foi do tipo de narrador. A trama é narrada em terceira pessoa. Até aí nada demais. Porém, o narrador está extremamente próximo da protagonista e das principais personagens. Ele tem livre acesso aos sentimentos, pensamentos, medos, comportamentos e históricos de vida das figuras retratadas. Inclusive, tem a propriedade de recuar e avançar no tempo de maneira indiscriminada. Dessa forma, para o leitor pouco atento, a sensação é que o texto de “Copo Vazio” está na primeira pessoa do singular e não na terceira pessoa. Sempre acho incrível esse efeito, mesmo não sendo tão original! Nesse sentido, o narrador de Timerman se parece bastante com os narradores de J. M. Coetzee, autor de clássicos contemporâneos como “Desonra” (Companhia das Letras), “Vida e Época de Michael K” (Companhia das Letras) e “À Espera dos Bárbaros” (Companhia das Letras).
Outro componente ficcional que potencializa a experiência literária (e dá maior dimensão à qualidade dessa novela/romance) é a mescla de realidades. Segundo a teoria literária, estamos falando aqui da realidade ficcional. Digo isso porque temos dúvidas se a narrativa bebe ou não dos transtornos psicológicos da protagonista. Até onde o que Mirela vê, sente e entende é mesmo real ou é mero reflexo de sonhos/pesadelos, desejos e alucinações? Não sabemos exatamente.
Por exemplo, os textos do primeiro e do último capítulos estão no futuro – e não no presente, a base dos tempos verbais da maior parte da publicação. Quer dizer, então, que os fatos narrados acontecerão de fato (certeza) ou que a protagonista gostaria que acontecesse (suposição)? Não sabemos. Há outros capítulos que estão na condicional e com verbos no subjuntivo, o que potencializa ainda mais a desconfiança no leitor mais atento de que saímos da esfera real e adentramos na imaginação e nos desejos da personagem principal.

Depois de confundir várias vezes Pedro com outros homens pela cidade, será que Mirela o encontrou efetivamente? Ou, mais uma vez, o projetou em outra pessoa?! Como disse: não dá para precisarmos. Exatamente por isso, classifiquei o desfecho de “Copo Vazio” como aberto. Aberto, Ricardo? Sim! Por mais que ele indique um caminho aparentemente óbvio nas últimas cenas – fique tranquilo(a), não damos os spoilers das obras analisadas no Bonas Histórias –, ainda assim fiquei com um pé atrás quanto à exatidão do local de chegada desta trama. Será mesmo que depois de tantas camadas de subjetividade, o desenlace seria com um ponto final tão contundente como os leitores mais desavisados poderiam supor?! Acho que não. No meu ponto de vista, não é maluquice acreditar que Mirela enlouqueceu e criou uma história com final fantasioso para encaixá-lo dentro de sua fixação doentia por Pedro.
Por falar no fim da novela/romance, preciso dizer que os três últimos capítulos são surpreendentes. É justamente aí que notamos a genialidade da autora e o primor desta obra ficcional. Com o eletrizante e inusitado desfecho, todas as peças do quebra-cabeça narrativo se encaixam perfeitamente. Ao fechar o livro de Natalia Timerman, a impressão que temos é parecida ao de contemplar um jogo de quebra-cabeça recém-finalizado: o cenário geral forma uma imagem bonita e impactante. Em outras palavras, as várias pecinhas que isoladamente não tinham efeito ou razão óbvia se provam fundamentais para a composição do retrato visual global. Incrível!
Outro elogio que “Copo Vazio” merece é por embaralhar o tempo narrativo capítulo a capítulo. Basicamente, o livro mistura passado, presente e futuro (além do que já tratamos neste post da coluna Livros – Crítica Literária que é a mescla de realidades ficcionais distintas). Repare que este é um dos recursos narrativos mais fortes dessa obra. A publicação começa com um capítulo no futuro. Em seguida, surge um texto no passado. A terceira seção está ancorada no presente. Os capítulos 4 e 5 são novamente de eventos antigos. O capítulo 6 é outra cena da atualidade. Logo depois, vem um capítulo no passado e um capítulo no presente. Esse vai e volta no espaço temporal dá à tônica da narrativa e apresenta as peças do quebra-cabeça ficcional que citei há pouco.
Admito que adoro ler novelas/romances que brincam com a linha cronológica e não se preocupam em apresentar a trama de maneira tão ordenada. Quem faz isso geralmente é o(a) escritor(a) que valoriza a inteligência de seus leitores. A pessoa que encara o desafio de percorrer as páginas de um livro ficcional tem normalmente competência para ligar os pontos deixados soltos (propositadamente) ao longo da contação da história. Assim, não é preciso excesso de didática nem muita organização temporal, um erro que a maioria dos autores comete e que, felizmente, Natalia Timerman passa longe de fazer.

Para encerrar essa seção do post com os aspectos positivos da experiência de leitura de “Copo Vazio”, não posso me esquecer de comentar o agradável passeio por São Paulo, minha cidade natal. Ou, conforme a teoria literária prefere nomear, curti o espaço narrativo dessa novela. As cenas se passam em avenidas e bairros muito conhecidos por mim: Higienópolis, Paulista, Pacaembu, Augusta, Consolação, Sumaré/Sumarezinho e Vila Mariana. De certa maneira, a rotina das personagens deste livro é parecida com aquela que tinha quando morava na capital paulista. Só faltou uma voltinha pela Pompeia, Perdizes, Vila Madalena, Lapa e Parque São Domingos, né? Aí poderia dizer que me senti de volta à casa.
Por mais que essa obra tenha me impressionado positivamente e tenha conquistado o posto de melhor leitura do mês (daí sua análise em setembro na coluna Livros – Crítica Literária), vale a pena dizer que ela não está imune às críticas negativas ou aos questionamentos. É sobre esses aspectos que tomarei a liberdade de comentar nos próximos parágrafos.
Um dos pontos que não gostei em “Copo Vazio” foi da utilização conjunta do discurso indireto livre – expediente à la José Saramago, autor de “Ensaio Sobre a Cegueira” (Companhia das Letras), “Memorial do Convento” (Companhia das Letras) e “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (Companhia das Letras), que mescla a fala das personagens à narrativa, sem qualquer recurso gráfico de separação entre as duas partes – e do discurso direto – o tradicional, com travessão e a reprodução literal da fala da pessoa. Por que às vezes a autora optou por um tipo de discurso e outras vezes por outro? Juro que não entendi. Para mim, pareceu falta de padronização ou de definição estilística. Ou, o que é mais provável, o uso de um recurso de produção de diálogo desnecessário para esta proposta literária.
Outro ligeiro tropeço foi a nomeação dos capítulos indicando quando a ação acontecia: passado, presente e futuro (ou mesmo no subjuntivo). Será mesmo que era necessário esse apontamento temporal nos títulos das seções? Talvez não. O leitor consegue sozinho e sem muito esforço fazer a composição da ordem narrativa. Não precisa que o nome do capítulo indique previamente o que vai encontrar no texto principal. Se por um lado achei que Natalia Timerman valorizou a inteligência do público leitor na maior parte de sua construção narrativa, nesse quesito especificamente ela escorregou no didatismo e na antecipação das surpresas.

O maior vacilo, ao menos para o meu gosto, foi a inconsistência do ritmo narrativo. Infelizmente, o livro oscilou bastante, mesmo se tratando de uma trama enxuta. Considerei o primeiro quarto de “Copo Vazio” (primeiras 36 páginas) excelente: rápido, preciso e instigante. No segundo quarto (da página 37 à página 72), a velocidade caiu um pouco e as novidades se tornaram mais raras. Ainda assim, a narrativa esteve razoável.
O problemão surgiu particularmente no terceiro quarto (entre as páginas 73 e 108), quando a história se tornou bastante arrastada, repetitiva e sem NENHUM grande acontecimento. A impressão é que somos tragados ao vazio existencial de Mirela (talvez fosse esse mesmo o intuito de Natalia Timerman). De qualquer maneira, a leitura se tornou chatérrima nessa altura. Quando já começava a desgostar do livro, entrei no trecho derradeiro. O quarto final (página 109 à página 144) é ESPETACULAR, como já disse alguns parágrafos acima. Aí me esqueci totalmente das páginas enfadonhas percorridas pouco antes e enxerguei a complexidade desta narrativa.
Em suma, entre os incontáveis acertos e um tropeço aqui e outro acolá, “Copo Vazio” é um livrão e pode ser ranqueado como a melhor leitura que fiz até agora neste segundo semestre. Para quem se amarra nas listas do blog, é bom dizer que faz algumas semanas que divulguei, na coluna Recomendações, o ranking das cinco melhores obras literárias do primeiro semestre de 2025. Tem cada leitura imperdível lá.
Voltando ao assunto de hoje, confesso que, ao fechar as páginas de “Copo Vazio” na hora do almoço no domingão passado, já tinha virado fãnzaço da literatura de Natalia Timerman. Ela é realmente uma das melhores escritoras da ficção em língua portuguesa na atualidade. Como escreve bem e de forma profunda, Santo Deus! Impossível não ficarmos admirados com a beleza de seus textos e com o encanto de suas tramas. Juro que minha vontade é (re)ler de uma vez seus outros títulos, principalmente “Rachaduras” e “As Pequenas Chances”. Quem sabe não volte logo ao Bonas Histórias para comentá-los, hein?
Portanto, não se surpreenda se pintar novas análises desta excelente autora no blog, senhoras e senhores. E até a próxima!
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