Aproveitei os primeiros dias do ano para ler “Algum Lugar” (7Letras), o romance de estreia de Paloma Vidal. Esta obra não é a primeira da escritora nascida em Buenos Aires, em 1975, e criada desde os dois anos no Brasil. Quando lançou “Algum Lugar” em 2009, Vidal já tinha publicado duas coletâneas de contos: “A Duas Mãos” (7Letras), em 2003, e “Mais ao Sul” (Língua Geral), em 2008. De qualquer forma, quando este romance chegou às livrarias, a autora ainda estava no começo de sua carreira. Hoje, ela possui vários livros editados tanto no Brasil quanto no exterior (Argentina, França e Estados Unidos) e se tornou uma das vozes mais valorizadas da literatura brasileira contemporânea.
Logo de cara, o que mais chama a atenção no portfólio de Paloma Vidal é a pluralidade de gêneros. A escritora navega com desenvoltura pelo conto, pelo romance, pelo ensaio, pela poesia, pelo teatro, pela crônica e pela literatura infantil. Professora universitária de Teoria Literária, tradutora e crítica literária, Vidal mora atualmente na cidade de São Paulo. Sua mais recente publicação é “Pré-história” (7Letras), romance lançado no ano passado. Já sua obra mais famosa é “Mar Azul” (Rocco), romance traduzido para o francês e o espanhol.
“Algum Lugar” é fruto de uma bolsa do Programa Petrobrás Cultural. Em 2007, Paloma Vidal foi contemplada pelo projeto de incentivo à criação literária da estatal brasileira e pôde, assim, desenvolver seu romance. Dois anos depois, o livro estava pronto e era apresentado ao público. O lançamento de “Algum Lugar” aconteceu em dezembro de 2009. Esta publicação possui muitos elementos autobiográficos e contém uma narrativa com altas doses de inovação estética. Por exemplo, esta obra mistura diferentes planos narrativos (realidade, sonhos e lembranças caminham lado a lado) e exibi narração simultânea de vários tipos (os relatos em primeira, segunda e terceira pessoas aparecem misturados no texto). Quem gosta de ler propostas literárias diferenciadas e ousadas, temos aqui um prato cheio!
“Algum Lugar” é um drama psicológico que aborda a perda de identidade de uma mulher que viaja pelo mundo. Sem conseguir construir vínculos com as cidades por onde viveu (Buenos Aires, Rio de Janeiro, Los Angeles...), ela sofre com a falta de relações afetivas mais sólidas. Como consequência, a personagem principal da trama se sente à deriva no mundo. Curiosamente, essa mesma temática seria mais tarde abordada em outras obras por Paloma Vidal.
O enredo de “Algum Lugar” começa com a mudança de um jovem casal do Rio de Janeiro para Los Angeles. A esposa é a protagonista desta história. Ela tem 28 anos, é professora universitária e ganhou uma bolsa de estudo para realizar seu doutorado em literatura no exterior. Sem ter o nome revelado em nenhum momento do romance, a moça nasceu na Argentina e vive desde pequena no Brasil (sendo fluente em português, espanhol e inglês). O marido, chamado simplesmente de M., aceitou acompanhá-la na mudança para o exterior.
Uma vez na nova cidade, o casal sofre com a arquitetura e a dinâmica urbana de Los Angeles. Projetada para deslocamentos de carro (as personagens principais não possuíam um veículo próprio) e segmentada por bolsões sociais (a dupla vinda do Brasil não se encaixava em nenhum grupo), L.A. mostra-se pouco amigável aos novatos. Assim, o casal acaba ficando refém de sua casa (raramente eles põem os pés na rua) e da companhia um do outro (em uma overdose de intimidade à dois). Contudo, ao invés de uni-los, a nova ordem doméstico-matrimonial acentua as diferenças da dupla. Ela quer desbravar o novo território e se integrar à vida social dos Estados Unidos. Ele, por sua vez, aceita o isolamento e cria uma rotina mais introspectiva, solitária e caseira.
As únicas amigas da protagonista em Los Angeles (que não podemos chamar exatamente de amigas) são uma vizinha colombiana que raramente aparece e uma colega coreana chamada Luci. Luci também atua na universidade e fala espanhol muito bem. A falta de relacionamentos sólidos e sadios angustiam a doutorando argentino-brasileira. Para aplacar um pouco a melancolia e o tédio de sua rotina no exterior, a personagem principal da obra começa a dar aulas de espanhol na universidade para os graduandos.
“Algum Lugar” possui 176 páginas e está dividido em três partes: Los Angeles, Rio de Janeiro e Los Angeles. É possível ler este livro em uma única tarde ou em duas noites consecutivas. Não devo ter levado mais do que seis horas para concluir sua leitura no último final de semana.
O mais interessante deste romance é a forma como sua narrativa foi contada (e não tanto pela a história em si). Nota-se que Paloma Vidal tem total domínio das técnicas literárias e usa e abusa de inovações para construir um romance psicológico extremamente inusitado do ponto de vista estético. Essas características são evidenciadas desde as primeiras páginas da publicação.
Para começo de conversa, não é todo dia em que lemos um livro que mistura o tempo inteiro narração em primeira pessoa (geralmente feita pela perspectiva da protagonista), segunda pessoa (uma raridade na literatura!) e terceira pessoa do singular (narrador colado à personagem principal). A mudança de narração se faz entre os trechos dos capítulos do romance. Incrível! Apesar de inusitado (e muitíssimo arriscado), esse expediente torna a leitura mais dinâmica (em contraste com uma trama com poucas ações e ancorada na rotina entediante da protagonista).
Além disso, Paloma Vidal mistura a todo momento no texto de “Algum Lugar” três planos narrativos distintos: a realidade, os sonhos e as lembranças de sua personagem principal. De certa forma, temos aqui o que Nelson Rodrigues fez na peça “Vestido de Noiva”, de 1943. A diferença é que essa técnica está registrada agora em um romance e não em uma produção cênica. Assim, acabamos mergulhando verdadeiramente no universo psíquico de uma jovem mulher angustiada e perdida. Muitas vezes, para entendermos sua vivência é necessário juntar sua rotina factual, suas divagações oníricas e sua retrospectiva afetivo-familiar. Somente a partir da união desses três vértices é que poderemos começar a fazer ideia dos dramas mais íntimos da protagonista.
Outra peculiaridade de “Algum Lugar” é a junção do discurso (diálogos) à narração. Não há qualquer separação (sinalização específica) que aponte quando uma personagem fala e quando o(a) narrador(a) se manifesta. Esses dois elementos (discurso e narração) estão integrados umbilicalmente no texto. Se em algumas histórias esse expediente pode ser um problema para a leitura – jamais vou me esquecer do sofrimento que foi ler “O Amante do Vulcão” (Companhia das Letras), livro de Susan Sontag –, neste romance de Paloma Vidal não há qualquer problema desta ordem. Os diálogos são tão marcantes que é possível notá-los mesmo sem o uso de travessões ou aspas.
A chave para entender “Algum Lugar” está em notar o quanto a protagonista padece pela falta de uma identidade própria (não à toa, ela não tem o nome revelado). Seria ela uma brasileira nascida na Argentina ou uma argentina que foi criada no Brasil? Quando ela passa a morar nos Estados Unidos, essa angústia se multiplica. Uma vez morando em Los Angeles, seria ela agora uma imigrante sul-americana ao invés de uma brasileira ou de uma argentina?!
Esses choques culturais e a perda de identidade são pontuados no próprio texto do romance. Repare que a obra foi escrita em três idiomas: português, espanhol e inglês. A mistura idiomática configura em parte os dramas que se passam no interior da personagem principal. Obviamente, a preponderância é da língua portuguesa. E sim, é necessário o mínimo de entendimento dos outros dois idiomas para compreender os diálogos.
O drama de “Algum Lugar” me parece bastante legítimo, principalmente em uma época em que as migrações internacionais são tão frequentes. Recordo, por exemplo, que Fernando Meligeni, tenista brasileiro que nasceu na Argentina e foi criado no Brasil, padeceu desse mesmo problema em sua infância e adolescência, conforme relatado em seus dois primeiros livros, “Aqui Tem” (Ediouro), de 2008, e “6/0 Dicas do Fino” (Generale), de 2016.
Essa angústia existencial da personagem de Paloma Vidal continua até o final do romance. Apesar de mudarem cenários, pessoas e dinâmicas familiares, a questão mal resolvida permanece intacta ou até mesmo se intensifica. Nesse sentido, o desfecho da narrativa é brilhante. Seria a perda/falta de identidade uma característica transmitida geneticamente?! Ou uma criança já poderia sentir algo desse tipo logo após deixar o ventre materno? Essas são as perguntas que me fiz ao chegar à última página desta leitura.
Como é possível reparar, temos em “Algum Lugar” uma trama extremamente introspectiva (seu conflito é de natureza psicológica). Esse tipo de história pode não agradar a todos os tipos de leitores. Certamente, aqueles mais ansiosos por ações vertiginosas e pouco inclinados aos nuances da psique humana vão torcer o nariz para o ritmo narrativo desta obra de Paloma Vidal. É uma pena, porque se trata de um romance excelente que guarda muitas surpresas aos leitores mais perspicazes.
Por exemplo, quem seria o vilão dessa história? Para mim, é Los Angeles (colocar um lugar como antagonista é uma sacada genial!). A mais populosa cidade da Califórnia é a responsável por desumanizar as relações humanas, aprisionar seus moradores e segregar seus habitantes. Paradoxalmente, essa mesma localidade é a capital mundial do cinema (Hollywood vende sonhos e ilusões). No caso do casal de protagonistas do livro, pouco a pouco o sonho americano foi se despedaçando com a rotina entediante e solitária em L.A. O lazer deles era assistir filmes em casa, ler livros e ver imagens da Guerra do Iraque na TV. Assim, o relato da cidade norte-americana tem menos o glamour de uma viagem turística e mais o drama de imigrantes apartados social e economicamente.
Já que citei Nelson Rodrigues e Fernando Meligeni, confesso que “Algum Lugar” me lembrou um pouco (eu usei o termo “um pouco”!) “Golpe de Ar” (Editora 34), a novela semi-biográfica de Fabrício Corsaletti, e “Cidades Invisíveis” (Companhia das Letras), clássico de Italo Calvino. Se Paloma Vidal usou parte de sua realidade para construir um romance denso e vertiginoso, Corsaletti também baseou sua estada real em Buenos Aires para compor sua trama ficcional (mais leve e juvenil). A comparação com a obra do italiano deve-se ao fato de que tanto Italo Calvino quanto Paloma Vidal relacionaram os cenários/cidades como metáforas da angústia das pessoas/personagens.
Gostei muitíssimo de “Algum Lugar”. Pode parecer um clichê (e é!), mas acho que comecei as leituras deste ano do Bonas Histórias com o pé direito. Se nesse romance de estreia Paloma Vidal já mostrava tanta maturidade literária e tantas ousadias estéticas, fiquei imaginando o que ela não apresentou nos seus romances seguintes: "Ensaio de Voo" (Quelônio), de 2017, e "Mar Azul" (Rocco), de 2012. Como não sou de ficar na curiosidade, não se surpreenda se nos próximos meses eu postar novas análises desta autora aqui no blog. De qualquer maneira, só por essa pequena amostra de seu trabalho ficcional, Paloma Vidal merece nossos elogios e nossa admiração.
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