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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 42 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

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Livros: Iluminadas - O romance best-seller de Lauren Beukes

Publicado há dez anos, o thriller de ficção científica da escritora sul-africana conquistou vários prêmios literários e foi adaptado para a televisão.

O livro Iluminadas é o terceiro romance de Lauren Beukes e a quarta publicação da escritora sul-africana

No final de semana retrasado, li “Iluminadas” (Intrínseca), o romance de maior sucesso da sul-africana Lauren Beukes. Quem me indicou essa história foi uma velha amiga (que é muito nova ainda, por mais paradoxal que pareça minha frase). Beijo, menina Iris! Obviamente, ela não leu o livro. Coisa de uma advogada (quase saiu advogata – piada de outras épocas que nunca sai da minha cabecinha besta) muito ocupada e que prefere aproveitar as horas de folga na Praia de Botafogo. De qualquer forma, Iris assistiu à série de televisão na Apple TV+, que na gringa é chamada de “Shining Girls” (2022), no final do ano passado e me recomendou. “Você vai gostar tanto do suspense que na certa vai colocar no Bonas Histórias”, foram suas palavras proféticas em dezembro.


Como tenho bastante dificuldade para acompanhar séries televisivas, achei melhor partir logo para a obra original. Ainda mais porque minha velha amiga jovem me presenteou com um exemplar de “Iluminadas” no último Natal. Valeu, menina Iris!!! Posso demorar para ler os romances que recebo, mas eu sempre leio... É só ter um pouco de paciência comigo. E não é que a publicação literária de Beukes é mesmo muito interessante!!! Arrisco a dizer que “Iluminadas” está no patamar de “Suíte Tóquio” (Todavia), tragicomédia de Giovanna Madalosso, “A Contra-História” (Valentina), terceiro volume da pentalogia “A Contrapartida” de Uranio Bonoldi, e “Como Ler Livros” (É Realizações), clássico de Mortimer J. Adler e Charles Van Doren, os melhores livros que li neste ano. Gostei tanto do thriller de ficção científica de Lauren Beukes que resolvi analisá-lo em detalhes no post de hoje da coluna Livros – Crítica Literária.


Publicado em abril de 2013 na África do Sul e na Inglaterra e em junho daquele ano nos Estados Unidos, “Iluminadas” é o quarto título de Lauren Beukes, sendo sua terceira obra ficcional. Antes deste romance, a autora de 46 anos nascida em Joanesburgo lançara: “Maverick – Extraordinary Women From South Africa's Past” (sem edição em português), coletânea de biografias de 2004 que detalha a trajetória de importantes personalidades femininas de seu país; “Moxyland” (não traduzido para nosso idioma), distopia com pegada cyberpunk de 2008; e “Zoo City” (também sem publicação por aqui), ficção científica de 2010. Depois de “Iluminadas”, Beukes produziu mais três livros: os romances “Broken Monsters”, de 2014, e “Afterland”, de 2020, e a coletânea de contos “Slipping”, de 2016. Nenhuma dessas obras foi traduzida para o português ainda.

Lauren Beukes é autora do livro Iluminadas e uma das principais escritoras sul-africanas da atualidade

Roteirista de televisão e jornalista, além de escritora profissional, Lauren Beukes é mestre em Escrita Criativa pela Universidade da Cidade do Cabo. Por dois anos, a sul-africana morou nos Estados Unidos, onde trabalhou como jornalista freelancer em Nova York e Chicago. Atualmente, ela mora na paradisíaca Cidade do Cabo, na minha opinião a mais bonita metrópole da África do Sul (e quiçá do continente), com a filha pequena e uma dupla de gatos. Contudo, a autora continua viajando constantemente para várias partes do mundo (América do Norte, América Central, Europa e Antártida) para embasar seus enredos literários e seus roteiros cinematográficos, ambientados quase sempre no exterior.


Seus dois primeiros romances ainda se passavam na África do Sul. “Moxyland”, a estreia de Beukes na ficção, é uma distopia aterrorizante que foi ambientada no universo corporativo da Cidade do Cabo. Apesar do enredo original, o livro teve repercussão limitada ao mercado nacional. Foi somente na segunda publicação ficcional, “Zoo City”, thriller futurista que mistura magia, música e crise social em uma caótica Joanesburgo, que Beukes caiu na graça do público e da crítica literária. Essa obra ganhou o Kitschies Red Rentacle de 2010 e o Arthur C. Clarke Award de 2011 como melhor romance. Vale a pena dizer que essas premiações são de âmbito internacional (obras produzidas em língua inglesa) e organizadas no Reino Unido. Na África do Sul, obviamente, o livro foi finalista das principais honrarias da literatura e apresentou boa vendagem nas livrarias. Como consequência, os direitos autorais de “Zoo City” foram adquiridos por uma produtora local e ganhou versão audiovisual. No exterior, o livro foi traduzido para vários idiomas e lançado com êxito em muitos países. Assim, Lauren Beukes se tornava uma romancista internacional.


Quando “Iluminadas”, o terceiro romance da autora, começou a conquistar as principais premiações ficcionais da África do Sul e da Inglaterra e se tornou alvo da disputa intensa de produtoras de televisão dos Estados Unidos que queriam adaptá-lo para as telas, não foi surpresa para quem havia lido e acompanhado o êxito de “Zoo City”. De certa maneira, o sucesso de uma obra foi puxado pela excelência e pelo interesse do público pelos títulos precedentes. É legal dizer que “Iluminadas” marca a estreia das tramas internacionais de Beukes (enredos literários ambientados no exterior). Afinal, temos aqui a narrativa fantástica do serial killer de Chicago que viaja no tempo para matar mulheres que possuem um brilho que só ele vê (daí o nome do título da obra). Isso até uma de suas vítimas sobreviver ao ataque e realizar por conta própria uma investigação para pegá-lo.


Entre os vários prêmios conquistados pelo novo livro, podemos citar o UJ Prize de 2013 (principal honraria literária sul-africana) na categoria livro produzido no idioma inglês, e o British Fantasy Society August Derleth Award de 2014 como melhor romance de terror em língua inglesa (um dos principais prêmios do gênero da Grã-Bretanha). Lançado quase que simultaneamente nas livrarias da África do Sul, Inglaterra e Estados Unidos em meados de 2013, “Iluminadas” começou rapidamente a ser traduzido para outros idiomas e ganhar mais mercados. Rapidamente, ele se tornou um best-seller mundial.

Iluminadas é o livro de maior sucesso de Lauren Beukes e apresenta um serial killer que viaja no tempo para matar mulheres que brilham

No Brasil, o romance policial de Lauren Beukes foi publicado pela Editora Intrínseca em abril de 2014. A tradução para o português brasileiro ficou a cargo de Mauro Pinheiro, tradutor carioca especializado em inglês e francês. No ano passado, a Intrínseca rodou a segunda edição de “Iluminadas”. Na nova capa, o público nacional era informado que se tratava do título que deu origem à série de televisão homônima que está disponível na Apple TV+. Não por acaso, essa é a edição que eu tenho em mãos (e que ganhei de presente).


Querendo ou não, essas artimanhas mercadológicas de incrementar a capa com informações sedutoras ajudam na visibilidade do livro no ponto de venda. Porém, o que contribui mesmo para alavancar a atratividade (e, por consequência, a comercialização) dos exemplares nas livrarias é o lançamento da versão audiovisual do romance. Muitos fãs da série de TV compram a obra literária para saber mais detalhes da história que eles viram nas telas. E muitos leitores que não assistiram à adaptação só se sentem encorajados em adquirir o livro depois que ele virou filme. “Se chegou ao cinema ou se tornou série de TV, a narrativa deve ser boa”, pensam com alguma dose de razão. Isso sem contar as almas com dor na consciência que dão a publicação de presente para os amigos do outro lado da Ponte Aérea, né?!


Por falar na série de televisão, “Iluminadas” (Shining Girls: 2022) foi produzido em conjunto pela MRC e Appian Way e roteirizado por Silka Luisa. No elenco da atração, os destaques vão para Elisabeth Moss, de “O Homem Invisível” (The Invisible Man: 2020), Wagner Moura, de “Tropa de Elite” (2007), Jamie Bell, de “Billy Elliot” (2000), e Phillipa Soo, de “Hamilton” (2020). Então quer dizer que Wagner Moura é um dos protagonistas de “Shining Girls”?! Tá explicado porque a menina Iris assistiu ao seriado... Completam o time de atores e atrizes Amy Brenneman, Chris Chalk, Erika Alexander, Alex Goodrich, Sadieh Rifai, Christopher Meister, Jason Wells, Jimmy Carrane e Jack Lancaster.


As filmagens aconteceram entre maio e outubro de 2021 em Chicago e a série foi lançada mundialmente em abril de 2022 no streaming. Curiosamente, as produtoras norte-americanas compraram os direitos do romance de Lauren Beukes em maio de 2013, tão logo ele chegou às livrarias, mas demoraram quase uma década para viabilizá-lo. A primeira (e única) temporada tem oito episódios de cerca de uma hora cada um.


As principais diferenças da versão televisiva de “Shining Girls” para a versão literária de “The Shining Girls” (sim, a distinção começa no título, que tem o “The” no original, mas não tem o “The” na adaptação) estão nas características dos protagonistas. A heroína é arquivista do jornal Chicago Sun-Times no seriado e não mais estagiária da seção de esportes como no livro. E seu par romântico/dupla na investigação criminal é um brasileiro na tela e não um porto-riquenho como nas páginas do romance. Segundo Wagner Moura, essa foi uma solicitação sua para tornar seu personagem mais verossímil.


Veja o trailer legendado de “Shining Girls”:

Por falar na trama de “Iluminadas”, vamos à história do romance. O enredo (agora voltei a tratar exclusivamente da produção literária; portanto, irei ignorar a versão audiovisual até o final do post, tá?!) se passa essencialmente em Chicago. O livro começa em 17 de julho de 1974. Harper Curtis, um sujeito muito estranho que caminha mancando com o auxílio de bengala e usa casaco de tweed fora de moda, encontra Kirby Mazrachi. A menina tem seis anos (quase sete) e brinca sozinha em frente de casa. Na diversão infantil, ela está organizando um espetáculo circense. O misterioso visitante dá de presente para a garotinha um pônei laranja de plástico. Achando esquisito o gesto do desconhecido, Kirby o questiona dos motivos daquele agrado. Harper diz que é para ela guardar o bichinho. No futuro, eles ainda vão se encontrar e ela poderá devolvê-lo. Sem expressar suas reais intenções, o homem não revela para a menina o seu desejo mórbido por trás daquela apresentação. Ele quer matar Kirby quando ela estiver maior, quando já for uma moça.


Nos capítulos seguintes, a narrativa retorna para a noite de 20 de novembro de 1931. Harper Curtis se envolve em mais uma discussão de bar. Enquanto foge de um grupo de homens que tenta pegá-lo, ele mata uma mulher cega e rouba-lhe o casaco. No bolso da vestimenta há dinheiro e uma chave. Após o tal “lance de sorte”, Harper cai em uma vala profunda e machuca seriamente o pé. Se arrastando, ele consegue chegar ao hospital municipal, onde é atendido graças ao dinheiro achado no casaco de sua última vítima. Devido à gravidade da lesão, o assassino fica internado por dois dias. Sem ter lugar para ir e fugindo de perigosos inimigos, o vilão até que vê com bons olhos o fato de poder se esconder entre os doentes da cidade.


Após a alta médica, que não o impedirá de mancar para sempre e exigirá o uso de bengala, Harper revira novamente o bolso do casaco. Ali encontra mais uma vez a chave da mulher cega. Ao tocar no objeto, ele sente algo meio que sobrenatural. É como se a fechadura daquela chave começasse a guiar seus passos trôpegos. Guiado por sensações, luzes, vozes e pressentimentos inexplicáveis, o homem chega à entrada de uma velha casa. Obviamente, a chave encontrada na vestimenta abre a porta e ele adentra na residência. A questão é que a Casa (em letra maiúscula mesmo) é bem apresentável e luxuosa em seu interior, o que contrasta com o tom decrépito da fachada.


Não demora para Harper Curtis descobrir que a Casa é um local mágico. No Quarto (também com tal grafia), o cômodo principal da construção, existem nomes de mulheres rabiscados em papéis pendurados na parede. O visitante (no caso, o novíssimo morador da residência – encantado com o que vê, Harper decide instantaneamente que irá morar ali para sempre) reconhece que a letra dos papéis é sua. A Casa quer que ele mate cada uma daquelas mulheres. O assassino reconhecerá as vítimas porque elas possuem um brilho característico que só ele notará. Além disso, essas mulheres vivem em diferentes épocas. Isso não será problema já que a Casa possui uma porta que dá acesso a uma espécie de túnel do tempo, que permitirá a Harper viajar entre as décadas de 1930 e 1990.

Publicado em abril de 2013 e recentemente adaptado para a televisão, o romance Iluminadas é o best-seller de Lauren Beukes

Assim começa a aventura sanguinolenta de Harper Curtis por Chicago. Enquanto trafega tranquilamente por anos distintos do século XX, o sujeito manco mata uma a uma as garotas que brilham e que a Casa indicou. Como os assassinatos acontecem em épocas diferentes, ele não tem qualquer problema com a polícia do Estado de Illinois. Afinal, como será pego se, em um passe de mágica, o assassino escapa por uma passagem no tempo? Para completar, as investigações criminais não conseguem relacionar os casos das mulheres mortas com grande hiato temporal como sendo responsabilidade de um único agressor (serial killer).


O problema de Harper é que, em março de 1989, enfim ele tem o primeiro insucesso. Após matar o cachorro de Kirby Mazrachi, então com vinte e um anos, Harper esfaqueia a nova vítima com perfurações grandes e profundas no tórax e no pescoço. Em um lance de sorte incrível (se sobreviver a um ataque de um serial killer pode ser chamado de sorte!?), Kirby consegue sobreviver, apesar dos traumas físicos e emocionais. O que a moça jamais irá se conformar é que seu algoz jamais foi identificado e preso pela polícia.


Em fevereiro de 1992, Kirby Mazrachi é universitária do curso de Jornalismo e consegue estágio no Chicago Sun-Times. A jovem escolhe a seção de esportes para atuar, apesar de não entender absolutamente nada da área escolhida. Na verdade, ela quer ter contato com Dan Velasquez, o principal repórter de beisebol do veículo e agora seu chefe imediato. Três anos antes, o jornalista de origem porto-riquenha era o responsável pela cobertura policial do Sun-Times e acompanhou de perto o ataque sofrido por Kirby.


Em outras palavras, a nova estagiária do Sun-Times pretende utilizar a biblioteca do jornal e os conhecimentos de Dan Velasquez para realizar uma investigação particular sobre o homem que tentou matá-la em 1989. Apesar do corpo dilacerado com incontáveis e horripilantes cicatrizes que vão do pescoço à barriga, Kirby Mazrachi seguiu em frente e quer Justiça. Ela não irá descansar enquanto não conseguir se vingar de seu agressor.

Terceiro romance de Lauren Beukes, Iluminadas conquistou vários prêmios literários na África do Sul e na Europa

Kirby conseguirá, ajudada por Velasquez, descobrir o que Harper Curtis tem realizado nos últimos 60 anos?! Ela será capaz de desvendar um mistério sobrenatural que envolve viagem no tempo, elementos mágicos e um serial killer que não envelhece? É esse o conflito que move a trama do belíssimo romance de Lauren Beukes.


“Iluminadas” possui 400 páginas e está dividido em 69 capítulos. Levei pouco mais de nove horas para concluir integralmente este livro. Claro que não li tudo de uma só vez. Por mais que considere grande meu fôlego literário, confesso que faz um tempinho que não me aventuro a passar o dia inteiro lendo ininterruptamente. Bons tempos aqueles... Para a leitura de “Iluminadas”, usei o final de semana retrasado, o último do mês de abril. Foram dois dias de leitura: sábado e domingo. Nem precisei do feriado de 1º de maio, que caiu na segunda-feira. Posso dizer que foram quatro sessões de leitura de duas horas e vinte minutos cada – sábado de manhã, sábado à tarde, domingo de manhã e domingo à noite.


O primeiro aspecto que chama a atenção em “Iluminadas” é a pluralidade de gêneros narrativos. O livro de Lauren Beukes é uma mistura de romance policial (Kirby Mazrachi investiga por conta própria a agressão quase fatal que sofreu), fantasia (casa com propriedades mágicas), ficção científica (viagem no espaço temporal), thriller com muita ação (o principal mistério é saber se a protagonista conseguirá pegar Harper Curtis), terror (a quantidade de cenas de assassinato e crueldade é extensa), drama histórico (o enredo percorre as décadas de 1930 a 1990), surrealismo (brincadeira com os diferentes planos temporais) e romance noir (o clima sombrio é uma marca desta história). O mais legal é perceber que essa mixagem literária foi muito bem realizada e não soa forçada nem artificial em nenhum momento. Por quaisquer perspectivas que você encare essa publicação (romance policial, trama fantástica, ficção científica, suspense, terror, drama histórico ou narrativa noir), é preciso enaltecê-la. Temos sim que tirar o chapéu para sua qualidade literária! Não à toa, este livro conquistou tantas premiações e foi adaptado para a televisão.


A segunda questão que preciso elogiar é a excelente Ambientação de “Iluminadas”. Saiba que não é fácil construir um enredo ficcional em uma cidade em que a autora não morou por muito tempo e numa época em que ela não viveu. Mesmo assim, a sensação que o leitor tem é de estar percorrendo efetivamente Chicago ao longo de boa parte do século XX. Incrível esse efeito, né? E como Beukes conseguiu essa proeza?! A resposta é um tanto óbvia: com MUITA pesquisa e PROFUNDA imersão no cenário retratado.

Iluminadas é a terceira publicação ficcional de Lauren Beukes, escritora sul-africana especializada em ficção científica, thriller de terror e distopia

Note que o enorme trabalho bibliográfico da escritora sul-africana não aparece de forma chata, excessiva ou artificial no romance, equívocos mais comuns do que poderíamos supor. Não!!! A composição de cenários, situações, personagens reais e clima narrativo é natural, cativante e charmosa. Lauren Beukes dá uma verdadeira aula de como construir uma trama ficcional verossímil, bonita e agradável. Além disso, o breve período em que ela passou na cidade norte-americana (não mais do que um ano e pouco) foram bem aproveitados. Durante a leitura do romance, dá para construirmos mentalmente o clima narrativo da cidade do Illinois e a sua atmosfera.


Ainda falando na Ambientação, o que mais me encheu os olhos em “Iluminadas” foi a reconstrução histórica dos Estados Unidos de 1930 a 1990. Usando um expediente que brinco ser a “técnica Forrest Gump”, a escritora sul-africana pinçou passagens marcantes de cada período para colorir seu romance. Assim, assistimos aos reflexos da crise econômica provocada pela quebra da Bolsa de Nova York em 1929, a implementação do New Deal, a Lei Seca, a proliferação de gângsteres em Chicago (incluindo Al Capone), a Segunda Guerra Mundial, a tensão diplomática com a União Soviética, a Guerra Fria, o Macarthismo, as tensões raciais, a luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, a Guerra no Vietnã, o crescimento das ligas esportivas norte-americanas na virada dos anos 1980 para os 1990 (destaque especial para a NBA e para MLB), o auge da imprensa impressa (e a rivalidade entre os jornais) etc. Por mais que tenhamos nas páginas do enredo ficcional algumas passagens recheadas de clichês históricos, ainda sim os méritos do livro de Beukes são muito maiores do que possíveis falhas isoladas.


Por essa perspectiva mais histórica, a escolha de Chicago como cenário de “Iluminadas” me pareceu perfeita. A Cidade dos Ventos é uma excelente representação das mazelas raciais e das desigualdades sociais dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, ela também possui várias das dúvidas existenciais que a África do Sul viveu (e vive!) desde o Período Colonial (inclusive nos anos do Apartheid). Olhando a metrópole norte-americana de perto, temos os arranha-céus e a arquitetura modernista convivendo lado a lado com os imóveis abandonados e as áreas degradadas. Também vemos negros, brancos, imigrantes latino-americanos, comunidades judaicas e descendentes de asiáticos (cada comunidade devidamente retratada no livro) convivendo ora harmonicamente, ora em ebulição.


Por falar nisso, o racismo, o machismo, a especulação imobiliária, a violência urbana, as injustiças sociais, o peso do dinheiro (leia-se a força das engrenagens do Capitalismo), a incompetência policial, as falhas do sistema judicial e penal, o tráfico de drogas e os preconceitos dos mais diferentes tipos (raciais, religiosos, étnicos, sexuais, sociais, financeiros etc.) quebram qualquer tentativa de integração harmônica da população de Chicago. Independentemente da época retratada, a sensação é de estarmos no meio de uma pequena e velada guerra civil. Dessa maneira, o que era para ser o cenário idílico de integração social se transforma em local de segregação racial.

Iluminadas é o livro de maior sucesso de Lauren Beukes e apresenta um serial killer que viaja no tempo para matar mulheres que brilham

Admito que adorei essa pegada de crítica social do romance. Gostei porque não é comum os autores criticarem cidades e países estrangeiros tão abertamente. Lembremos que Lauren Beukes é sul-africana e coloca o dedo em chagas históricas de Chicago e dos Estados Unidos (locais em que ela viveu por pouco tempo). Além de ser uma atitude extremamente corajosa da escritora, sua visão não soou panfletária, lacradora ou demagógica. Não! Suas críticas sociais surgem naturalmente no meio da trama e elas são descobertas naturalmente pelos leitores. O narrador se mantém imparcial na descrição dos acontecimentos e não faz julgamentos de valores em nenhum momento. Talvez se ele fizesse quaisquer comentários pejorativos mais diretamente ou tecesse reclamações explícitas, o resultado não teria sido tão positivo quanto o alcançado por sua atitude neutra.


Ainda na seara da crítica social, não me parece mera coincidência o fato de o serial killer procurar como vítimas as mulheres que brilhassem. E o que seria alguém que brilha?! Obviamente, é uma pessoa à frente de seu tempo, que cause admiração, imponha suas vontades e/ou promova grandes realizações na sociedade. Repare que todas as moças atacadas por Harper Curtis são figuras marcantes e bastante atuantes. Em um mundo machista, elas podem ser vistas como inimigas imperdoáveis. Daí a sanha criminosa do vilão. E note que quem manda Harper matá-las é a Casa. E o que seria, então, as vontades da Casa no sentido figurado?! Acho que são os preconceitos e os medos da sociedade misógina e conservadora do século XX. Por essa perspectiva, podemos sim ver “Iluminadas” como uma obra feminista. Legal perceber que a trama vai justamente até a metade dos anos 1990. Seria o século XXI um período de maior liberdade para as mulheres?


Outro ponto interessante de “Iluminadas” é o dinamismo do enredo. A sensação que temos é que sempre está acontecendo alguma coisa no livro independentemente do capítulo que você esteja lendo. E não se trata de mera percepção dos leitores: há mesmo muita ação no romance!!! Lauren Beukes conseguiu essa agilidade narrativa pelo uso adequado de alguns receituários literários. Em primeiro lugar, ela optou pelo narrador em terceira pessoa. Contudo, ele não fica preso à nenhuma personagem especificamente. A cada capítulo, o narrador acompanha uma figura diferente. Por isso, ele pode colar tanto em Harper Curtis, Kirby Mazrachi e Dan Velasquez (os protagonistas) quanto nas várias vítimas do serial killer (os coadjuvantes). A mudança constante de perspectiva (Foco Narrativo) deixa tudo mais misterioso e atraente.


Além do tipo de narrador (que chamo de “narrador pula-pula”), outro aspecto que dá dinamismo ao livro é o registro não linear dos acontecimentos. A ordem dos capítulos em “Iluminadas” desrespeita totalmente a continuidade temporal da trama. Assim, podemos acompanhar uma cena que ocorreu em 17 de julho de 1974 e, logo em seguida, vamos para um episódio em 20 de novembro de 1931. Mais à frente, vemos algo que se passou em 9 de setembro de 1980 e, algumas páginas depois, vamos diretamente para um fato de 3 de janeiro de 1992. Para quem cogite que esse embaralhamento de cenas de diferentes épocas possa tumultuar a experiência de leitura, eu garanto que não há confusão. Todo capítulo inicia-se com a informação de qual personagem o narrador está acompanhando e em que período a trama acontece. Ou seja, o leitor se situa tranquilamente ao longo do enredo, uma vez que tenha concentrado a atenção na leitura e coletado corretamente as informações recebidas na abertura dos capítulos.

Publicado em abril de 2013 e recentemente adaptado para a televisão, o romance Iluminadas é o best-seller de Lauren Beukes

Confesso que não sei qual é a parte mais legal de “Iluminadas”: se o início, o meio ou o final. Essas três seções estão ótimas e, por isso, quero comentá-las individualmente neste post da coluna Livros – Crítica Literária. Comecemos, claro, pelos primeiros capítulos. A cena inicial que abre o romance é o primeiro encontro efetivo de Kirby Mazrachi com Harper Curtis (em julho de 1974, quando ela tem apenas seis anos e ele está no início de sua trajetória assassina). A escolha pela apresentação imediata da heroína e do vilão é acertadíssima, pois demorará alguns capítulos até os dois voltarem a ficar cara a cara (no fatídico 23 de março de 1989, quando a moça será brutalmente atacada no meio do parque pelo psicopata).


Adorei a escolha dessa cena para abrir a publicação ficcional de Beukes por dois motivos principais. O primeiro é que esse encontro dos protagonistas vem recheado de tensão dramática. Já sabemos o que virá mais para frente em “Iluminadas”, mesmo assim é profundamente incômodo assistir à aproximação de um serial killer de uma menina indefesa. Impossível ficarmos indiferentes aos instintos assassinos de Harper Curtis sendo aflorados e ele reconhecendo a futura vítima.


Além disso, é impossível não relacionarmos esse trecho do romance contemporâneo à cena inicial de um clássico da literatura em língua inglesa. Estou me referindo à abertura de “Grandes Esperanças” (Penguin Companhia), uma das mais renomadas obras de Charles Dickens. Acredito que Kirby Mazrachi seria a versão feminina, norte-americana, azarada e atual de Philip Pirrip. Ainda nessa linha, Harper Curtis seria uma espécie de encarnação sanguinolenta, impiedosa e desumana de Abel Magwitch. Pelo menos, as interações entre as duplas de protagonistas de “Iluminadas” e “Grandes Esperanças” são parecidíssimas nas primeiras páginas.


Se você achar mera coincidência as conversas dos homens mal-encarados com as crianças ingênuas nos comecinhos de ambos os livros, é porque está subestimando a capacidade ficcional de Lauren Beukes. A escritora sul-africana tem muitas referências literárias e não foi por acaso as semelhanças de sua publicação com o clássico inglês. Ela inclusive cita diretamente Dickens (e outros escritores famosos) no meio de sua narrativa. Por isso, não tenho pudores em reconhecer: estamos diante de uma artista das letras espetacular!!! Além de sua enorme capacidade criativa e da grande habilidade na contação de histórias, Beukes dialoga direta e indiretamente com as principais publicações da literatura. Incrível, né?

Terceiro romance de Lauren Beukes, Iluminadas conquistou vários prêmios literários na África do Sul e na Europa

Bem no meio do livro, mais especificamente nos capítulos das páginas 195 (Kirby – 22 de novembro de 1931) e 199 (Harper – 22 de novembro de 1931), “Iluminadas” tem sua maior reviravolta. Para não estragar a experiência de leitura dos leitores do Bonas Histórias, o que posso dizer é que a viagem no tempo realizada pelo vilão será mais abrangente do que poderíamos supor. E, em algum momento da trama, a heroína conseguirá chegar perto de Harper, em um local e em uma data que até então duvidávamos ser possível. Espetacular!!! A injeção de adrenalina desses dois capítulos deu mais brilho (desculpe-me pelo trocadilho involuntário) ao livro e tornou sua leitura imperdível até o desfecho.


Por falar em reviravoltas, notei certo padrão de Lauren Beukes em “Iluminadas”. A cada cem páginas mais ou menos, temos uma surpresa que mexe substancialmente com a história (e, como consequência, com as emoções e com a perspectiva dos leitores). Adorei esse efeito! Muitas vezes, os autores de thriller de terror e de romance policial investem quase que exclusivamente no impacto das primeiras páginas. E o restante da obra é para sustentar o mistério inicial. Com Beukes, o lance é diferente. Ela não tem pressa para nos surpreender. E faz isso com uma sistemática digna de elogio. A isca narrativa capaz de fisgar o público não precisa ficar necessariamente nas primeiras páginas. Ela pode, por exemplo, ficar bem no meio da publicação.


Em relação ao desfecho do romance, o que posso dizer, hein? “Iluminadas” tem um final sem grandes inovações. Assistimos ao embate previsível entre a heroína e o vilão e ponto. Não há, portanto, novas surpresas nem grandes reviravoltas nas páginas derradeiras do livro. E, por mais paradoxais que possam soar minhas palavras, isso é algo positivo. Depois de tanta criatividade do enredo, achei que o desenlace mais conservador caiu muitíssimo bem. Sabe quando você coloca uma camisa muito chamativa e aí precisa colocar uma calça e/ou um calçado mais comportados para combinar (ou para não estragar o visual)?! Foi mais ou menos a mesma impressão que tive com a escolha dos capítulos finais desta publicação. Para não cairmos nos excessos narrativos, um final quadradinho comportou-se perfeitamente, realçando a elegância estética desta história (com início e miolo mais chamativos).


O único aspecto negativo que achei em “Iluminadas” foi alguns equívocos de revisão do texto em português. Infelizmente, a equipe técnica da Editora Intrínseca cometeu deslizes que comumente não encontramos nos trabalhos das principais companhias do mercado editorial brasileiro. Assim, a narrativa de Lauren Beukes em nosso idioma possui certos errinhos de digitação: falta de uma palavra em uma frase aqui e troca de letras que eram para ser em maiúsculas e vieram em minúsculas em uma frase acolá. Repare que se trata de problemas de revisão ortográfica e não de tradução. Achei o trabalho de Mauro Pinheiro impecável. De qualquer maneira, esses equívocos textuais não atrapalham em nada a experiência de leitura. Na certa, a maioria dos leitores recreativos não deverá percebê-los.

Lauren Beukes é autora do livro Iluminadas e uma das principais escritoras sul-africanas da atualidade

Em relação à narrativa em si de Lauren Beukes, não tenho o que falar mal. Achei seu livro impecável. De tão bom, me pareceu um desperdício descobrir que “Iluminadas” é o único título da autora sul-africana que foi traduzido para o português. Diante de tantos sucessos, como “Moxyland” e “Zoo City”, acredito que exista potencial de mercado para a chegada nas livrarias brasileiras das demais obras de Beukes. Muitas vezes, não é preciso esperar a gravação da série de televisão de um livro para lançá-lo, né?! Pior é que nem em Portugal, os demais romances ganharam versões em nosso idioma. O máximo que podemos encontrar na FNAC lusitana é um ou outro livro de Lauren Beukes em espanhol. É pouco para uma escritora tão talentosa. Vamos torcer para que a Editora Intrínseca invista em novas traduções o quanto antes.


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