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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 43 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

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Livros: Nada Me Faltará - A novela inusitada de Lourenço Mutarelli


Nada Me Faltará de Lourenço Mutarelli

Nesta semana, li um livro muito interessante e original: “Nada Me Faltará” (Companhia das Letras). Esta novela de Lourenço Mutarelli é um suspense construído exclusivamente com diálogos. Considerando as inovações estéticas propostas pelo escritor paulistano, o resultado é impressionante! Usando apenas as vozes das personagens (e nada mais!), Mutarelli criou uma trama que engloba o mistério das narrativas policiais e a angústia dos dramas psicológicos. Confesso que fiquei encantado com o conteúdo desta obra. Sem dúvida nenhuma, estamos diante de um dos mais versáteis e criativos autores da literatura brasileira contemporânea.


Além de romancista/novelista, Lourenço Mutarelli atua como cartunista (ganhou vários prêmios nacionais por suas histórias em quadrinhos), dramaturgo, ator (ficou conhecido do grande público ao interpretar, no filme “Que Horas Ela Volta?”, o dono da casa onde a personagem de Regina Casé trabalhava como empregada doméstica), pintor, artista plástico (em 2018, muitas de suas criações integraram uma exposição que ficou alguns meses em cartaz no Sesc Pompeia) e professor de oficinas literárias. Aos 56 anos de idade, Mutarelli faz tantas coisas diferentes que às vezes temos a impressão de que seu trabalho de ficcionista acaba ficando em segundo plano. Essa sensação é potencializada pelo fato de o escritor ter lançado apenas dois romances nos últimos dez anos. Um bloqueio criativo que perdurou por muitos anos não o ajudou em nada na confecção de novos textos.


Publicado em 2010, “Nada Me Faltará” é a sexta narrativa literária de Lourenço Mutarelli. Seus livros mais famosos até aqui são “O Cheiro do Ralo” (Devir), lançado em 2002 (e reeditado em 2011 pela Companhia das Letras), “Natimorto” (DBA), lançado em 2004 (e reeditado em 2009 pela Companhia das Letras), e “O Filho Mais Velho de Deus e/ou Livro IV” (Companhia das Letras), de 2018. Os dois primeiros títulos foram adaptados para o cinema com êxito. Já a última obra é considerada por muita gente (eu me incluo nesta lista!) como seu melhor trabalho literário.

Lourenço Mutarelli

Dentro do portfólio bibliográfico de Mutarelli que preza pela qualidade e pela experimentação narrativa, “Nada Me Faltará” se destaca pelo seu caráter inusitado. Afinal, não é todo dia em que podemos acompanhar uma trama ficcional tão enxuta e minimalista. Neste livro, Lourenço Mutarelli optou por simplesmente excluir boa parte dos tradicionais elementos da narrativa (como por exemplo, narrador, descrição de cenário/espaço narrativo, delimitação formal do tempo narrativo e transição de cenas) e se concentrar unicamente no discurso das personagens. Por incrível que pareça, essa estratégia pouco usual não atrapalhou em nada o entendimento da obra por parte do leitor e, ainda por cima, conferiu uma pegada distópica à narrativa. Incrível!


O enredo de “Nada Me Faltará” se passa na cidade de São Paulo. A trama começa com Cris e Carlos, dois amigos de longa data, falando ao celular. Eles tratam do recente reaparecimento de Paulo Maturello, um grande amigo da dupla. Paulo, um analista de sistemas de 36 anos, acabou de chegar à casa da mãe, Dona Inês, depois de um ano sumido. Ele desapareceu em um final de semana. Ao viajar de carro com a esposa, Luci, e a filha de quatro anos, Ingrid, para um sítio de um amigo em Ibiúna, Paulo nunca mais foi visto. Na verdade, não apenas ele sumiu: a família toda (Luci e Ingrid) escafedeu-se misteriosamente. O caso deixou os parentes, os amigos e os colegas dos Maturello transtornados. Passado doze meses do sumiço do trio, a polícia não tinha noção nenhuma do que poderia ter acontecido na fatídica viagem (eles nem sequer chegaram a pôr os pés no sítio).


Aí, quando todos já tinham voltado à vida normal, Paulo retorna surpreendentemente como se nada demais tivesse acontecido. É sobre tal tema que Cris e Carlos conversam ao telefone. O mais estranho da situação é que o amigo deles voltou sozinho (não há sinais de Luci e de Ingrid) e sem se lembrar do que ocorreu no último ano. Para Paulo, o tempo não passou. Ele parece ter acordado normalmente e não se lembra de nada da viagem realizada com a esposa e a filha para o interior de São Paulo. Não é preciso dizer que de tão absurda que é essa história, os amigos, a polícia, os médicos e a família de Paulo começam a duvidar da sanidade mental do rapaz.

Livro Nada Me Faltará de Lourenço Mutarelli

Por mais que Paulo Maturello insista em dizer que não há nada de errado com ele, investigações são realizadas. Primeiramente é a polícia que começa a interrogar o analista de sistemas. Para o investigador Braga, responsável pelo caso, Paulo estaria envolvido no assassinato de Luci e Ingrid e estaria posando de vítima da situação. Depois é o Dr. Leopoldo que passa a estudar a mente do paciente (Paulo inicia terapia com o psicólogo). Por fim, os familiares (Dona Inês, a mãe de Paulo, não acredita na versão contada pelo filho; e Seu Olímpio, o sogro, acredita que a filha e a neta irão voltar em breve já que o genro retornou) e os amigos (Cris e Carlos tentam dar apoio ao protagonista; e Johnny, colega de Paulo, não acredita na versão dada pelo recém-aparecido) também começam a tentar entender o que se passou.


O suspense que roda a trama de “Nada Me Faltará” é: o que aconteceu efetivamente para Paulo ficar um ano sumido e voltar para casa sem memória e sem a esposa e a filha pequena? Aparentemente há duas hipóteses iniciais para este caso: ou ele aprontou algo cruel com Luci e Ingrid e está tentando despistar a polícia e os familiares; ou um evento extraordinário apagou as lembranças do rapaz a ponto de ele não se lembrar de nada. De qualquer forma, um grande mistério suscita uma série de questionamentos e de intepretações por parte das personagens ficcionais da narrativa e dos leitores da publicação.


“Nada Me Faltará” é um livro curtinho (uma das características das novelas). Suas 144 páginas estão divididas em 19 capítulos. É possível ler esta obra em uma batida só. Foi o que fiz na última terça-feira à noite. Precisei de pouco mais de duas horas para percorrer todo o seu conteúdo. Essa é uma das vantagens das novelas – elas permitem uma imersão literária de média duração.

Livro Nada Me Faltará de Lourenço Mutarelli

O que chama mais a atenção do leitor nesta narrativa de Lourenço Mutarelli é, obviamente, a estrutura dialógica do texto. A história inteira de “Nada Me Faltará” é construída em diálogos. E quando digo que o livro é 100% o discurso das personagens, não estou exagerando. Não há nada mais do que as vozes das pessoas que protagonizam essa história nas páginas da obra. Não temos, por exemplo, as indicações de quem fala ou os detalhamentos das expressões e dos gestos dos falantes, algo que normalmente acompanha os diálogos na literatura. Também não temos narração (você já leu um livro sem narrador? Agora posso dizer que eu já li!). Esqueça a descrição dos cenários, os pensamentos dos protagonistas... Em “Nada Me Faltará”, temos apenas as conversas das várias personagens desta trama e nada mais!


Além disso, não há a preocupação de sinalizar quando uma conversa termina e quando um novo diálogo começa. O autor simplesmente juntou todas as vozes em um mesmo plano e as colocou em um texto corrido. Assim, ao pular de linha, o leitor pode continuar acompanhando uma discussão já iniciada ou simplesmente avançar para outra cena totalmente distinta (com novas personagens, em um novo cenário e em um tempo narrativo diferente). É preciso atenção e disposição do leitor para interpretar o que está se passando na novela.


Então deve ser difícil pra caramba para entender o que está acontecendo nesta narrativa, certo? Aí surge uma das questões mais curiosas de “Nada Me Faltará”. Apesar das conversas não terem indicação de quem está falando nem a sinalização de que houve mudança de cenário, de tempo e de personagens, conseguimos precisar exatamente essas mudanças. É incrível perceber como a história é fluída e instigante, mesmo sem qualquer sinalização prévia do que está acontecendo em cena. De uma linha para outra pode se alterar tudo (ambientes, situações, cenas, personagens e planos narrativos) e ainda assim o leitor consegue entender plenamente o que está se passando na história. Com um texto minimalista ao extremo, Lourenço Mutarelli constrói uma trama saborosa, capaz de prender o leitor em um suspense de tirar o fôlego. Não deixe de notar a técnica refinada do escritor paulistano.

Livro Nada Me Faltará de Lourenço Mutarelli

Os diálogos são tão bons, mas tão bons, que em muitos momentos não seria necessário nem apresentar as personagens aos leitores (mesmo assim, elas são apresentadas ora mais, ora menos sutilmente). Conseguimos pescar sozinhos quem é quem apenas pela contextualização (prova da excelência dos discursos). Dois bons exemplos disso são Seu Olímpio (pai de Luci) e Humberto (o cunhado de Paulo). Dá para sacar logo de cara que Seu Olímpio é o sogro de Paulo e que Humberto é o marido de Fernanda, a irmã do protagonista. Não precisaria o texto sinalizar explicitamente isso. Ainda assim, nota-se a preocupação de Mutarelli para escancarar quem é quem em sua história (dessa forma, nenhum leitor fica com dúvida).


Em conjunto com o tom dialógico, “Nada Me Faltará” possui uma forte pegada de oralidade. Grande parte do charme desta narrativa está nas vozes das personagens. Por isso, nada mais natural do que explorar ao máximo a linguagem falada em detrimento à linguagem escrita. A veracidade e a verossimilhança desta trama de Lourenço Mutarelli passam diretamente pela reprodução da oratória das personagens. Quanto mais fiel à comunicação oral, melhor este livro fica.


Por falar em personagens, fiquei positivamente impressionado com a quantidade de figuras que participam desta novela. São 16 personagens interagindo com o protagonista (Paulo Maturello) ou que são citadas nominalmente por ele (Carlos, Cris, Dona Inês, Luci, Ingrid, Johnny, Rodríguez, Seu Olímpio, Fernanda, Humberto, Braga, Dr. Leopoldo, Dr. Ademar, Alice, Bia e Ivan). E para espanto de quem possa achar esse número inviável ou que possa gerar certa confusão na cabeça do leitor (ainda mais por causa da característica do texto, feito inteiramente em diálogos), informo que isso não acontece. Apesar das várias personagens (número maior do que normalmente encontramos em uma novela), o leitor não fica perdido em nenhum momento. Repare como cada personagem é marcante e essencial para a trama. “Nada Me Faltará” é uma aula prática de como construir personagens e de como inseri-los em um enredo ficcional.

Livro Nada Me Faltará de Lourenço Mutarelli

Não é preciso dizer que este livro tem uma forte dinâmica teatral. O texto construído inteiramente em diálogos, a forte oralidade e as várias personagens que entram e saem o tempo todo de cena escancaram essa característica. Apesar de lembrar muito um roteiro teatral, não confunda – temos aqui uma narrativa literária.


Outro aspecto elogiável de “Nada Me Faltará” é o humor. Em contradição ao suspense (ao melhor estilo romance policial noir), temos muitas cenas, pessoas e situações engraçadas. Na maioria das vezes o humor é sutil e inteligente – a parte em que Paulo faz terapia me pareceu uma versão mais comportada de “O Complexo de Portnoy” (Companhia das Letras), um dos romances mais polêmicos de Philip Roth. Porém, há também momentos de humor mais pastelão – a cena em que o cunhado metido a brother cogita que Paulo foi abduzido por extraterrestres é hilária! De qualquer maneira, essa veia mais cômica ajuda a diminuir um pouco o tom sombrio e pesado da narrativa.


Gostei bastante do tom crescente do suspense. O livro começa com um mistério: o que aconteceu com Paulo para ele ter desaparecido por um ano? Essa questão permeia a narrativa até o final e intriga a família, os amigos, a polícia, os psicólogos, os leitores e até mesmo o próprio protagonista. A resposta para essa complicada pergunta embala o drama psicológico do começo ao fim, sem que a tensão dramática esmoreça. Nos capítulos finais, o leitor já está com o coração na mão para saber o que se passou efetivamente com a personagem principal de “Nada Me Faltará”.

Lourenço Mutarelli

Por falar em desfecho, o desenlace desta novela é aberto. Sim, caro leitor do Bonas Histórias, você ouviu/leu corretamente: não temos aqui um final fechado (a trama não é resolvida de maneira definitiva e clara). Você precisará chegar ao seu próprio veredito para o que aconteceu com Paulo e sua família. Talvez esse recurso narrativo frustre muitos leitores mais conservadores (ávidos por uma explicação mais mastigadinha). Na minha opinião, a escolha de Lourenço Muteralli para encerrar sua obra é perfeita! Afinal, quem foi que disse que temos uma resposta concreta e objetiva para tudo nessa vida, hein? Há muitos episódios que carecem de desfechos fechados, por mais que queiramos chegar ao fim dos mistérios.


Sei que “Nada Me Faltará” não é o livro mais famoso de Lourenço Mutarelli. Mesmo assim, este título merece ser conhecido pelos aficionados da boa literatura brasileira. Se eu já era fã do escritor paulistano, agora sou ainda mais. E se você achou esta obra uma aula de como produzir ficção literária (e ela é mesmo!), saiba que Mutarelli também ministra oficinas literárias. Inclusive, seu próximo curso abriu há pouco inscrições na Balada Literária e será voltado para quem deseja se aperfeiçoar na escrita de romances e novelas. Para os jovens escritores, este é um programão imperdível! Assim como “Nada Me Faltará”, obviamente.


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