Músicas: En La Ciudad De La Furia – Buenos Aires pelo rock do Soda Stereo
- Ricardo Bonacorci
- há 22 minutos
- 22 min de leitura
Lançada em 1988 no álbum Doble Vida, a canção composta por Gustavo Cerati é uma das mais conhecidas do Rock Argentino e retrata com perfeição o cotidiano nos grandes centros urbanos. Não à toa, este título virou um dos apelidos da metrópole portenha, eternamente la ciudad de la furia para os fãs do Soda Stereo.

Hoje é dia de Rock, bebê! No caso, de Rock Argentino. Ou, como los hermanos (estou me referindo aos nossos vizinhos localizados ao Oeste do Rio Grande dos Gaudérios, de Santa Catarina e do Paraná e não à banda carioca de rock alternativo, tá?) gostam de chamar o gênero mais popular em sua terra, de Rock Nacional. É por esses caminhos que vamos seguir neste novíssimo post do Bonas Histórias, senhoras e senhores. Sejam todos muito bem-vindos ao melhor da música argentina!
Por ora, vou deixar de lado os Tangos Clássicos, como “Por Una Cabeza” e “Cambalache”, os encantos do Pop em espanhol, como o recém-lançado “Quiero Mejor” de Kevin Johansen, e a animação contagiante do Reggaeton caribenho, como “Si Antes Te Hubiera Conocido” da Karol G. Convenhamos que esses assuntos já foram discutidos, nos últimos meses, à exaustão na coluna Músicas, né? Por isso, a vontade de mudar de temática. Hemos cambiado, pero no mucho. Seguimos ainda na terra dos melhores vinhos malbec, das empanadas riquíssimas, das carnes suculentas, dos doces de leite imperdíveis, do futebol catimbado, do caos econômico, dos gigantescos protestos de rua e da fervilhante polarização política. E continuamos falando do melhor de suas canções.
Assim, surgiu a ideia de mergulhar à fundo numa das principais criações do Soda Stereo, a banda de rock mais importante da Argentina. Este é um dos meus grupos musicais estrangeiros preferidos e presença rotineira na minha playlist diária. Ou vocês acharam que eu produzo meus textos no silêncio en mi querido departamento en el barrio Saavedra, hein? Nananinanão. Os acordes das guitarras são excelentes estímulos à criatividade e as letras ácidas são motores às longas sessões de escrita criativa. E o que mais tem rolado no meu Spotify recentemente são bandas antigas da América Latina. Y dale Maná, No Te Vá Gustar, Los Fabulosos Cadillacs, Enanitos Verdes, Los Abuelos de La Nada (no caso, André Calamaro), El Mató a un Policía Motorizado, Los Amigos Invisibles, Café Tacvba… Y por supuesto Soda Stereo.
Para ser mais exato em minhas palavras introdutórias (sim, ainda não saímos do preâmbulo deste texto), vou analisar hoje “En La Ciudad de La Furia”, a canção de Gustavo Cerati que virou uma designação icônica de Buenos Aires, a cidade em que sou apaixonado e que escolhi para viver. Por sinal, decisão cada vez mais difícil em tempos de câmbio extremamente desfavorável para os brasileiros que ganham em real. Muchas gracias, Peluca de León!

Em suma, vou debater com os leitores do Bonas Histórias uma de minhas canções favoritas no cenário do Rock em língua espanhola. Assim, não se assustem com minha empolgação com esse assunto nem com os excessos de linhas deste post, por favor. A proposta aqui é conversar sem pressa e sem economia de caracteres sobre os assuntos mais interessantes do universo artístico-cultural. Enquanto a pauta do dia não for totalmente explorada, a prosa não terá fim.
Para começo de conversa, quero explicar que costumo ouvir o termo “En La Ciudad de La Furia” com frequência na capital argentina. Conforme venho relatando em “Tempos Portenhos”, a atual série não ficcional da coluna Contos & Crônicas, moro há quase dois anos em Baires. E desde que me mudei para cá em setembro de 2023, vire e mexe escuto esse apelido carinhoso saindo da boca dos locais. Confesso que no começo ficava bastante confuso. Como assim Buenos Aires, a metrópole líder em qualidade de vida e em segurança na América do Sul, continua sendo chamada de Ciudad de La Furia, tal qual era no fim dos anos 1980, por seus moradores?!! A explicação era óbvia e estava diante de mim o tempo inteiro: a culpa é deste hit de Cerati e da força do Rock do Soda Stereo.
Lembro a primeira vez que ouvi um portenho falar indiretamente desta canção. No caso, uma portenha. Paula (também conhecida como Paola, a Policial de Belgrano – beso, chica hinchapelotas de Villa Crespo!), minha primeira amiga em Buenos Aires nessa nova temporada (também vivi na Argentina entre 2004 e 2005, quando trabalhava como executivo em multinacional), tratou de usar esse termo tão logo nos conhecemos. Horrorizada com meu sotaque e meu péssimo espanhol, a bela moça quis saber de onde vinha. Expliquei que era de São Paulo. Aí quando perguntei se ela era daqui mesmo, ela lançou um encantador: soy de la ciudad de la furia. Na hora pensei: quiero ser amigo de esta chica sagaz.
Esse mesmo episódio ocorreu mais algumas vezes comigo em CABA (Ciudad Autónoma de Buenos Aires). Quando perguntei para uma argentina se ela era da capital (tenho a mania de não conversar com os homens, só com as mulheres – não me olhe assim, por favor!), ouvi como resposta por duas ou três oportunidades: soy de la ciudad de la furia. Foi aí que percebi que o apelido carinhoso que usava para chamar minha nova/velha localidade, Mi Buenos Aires Querido (canção de Carlos Gardel), não era tão usado pela galerinha da minha geração. O povo local com a minha idade recorria mais ao Rock do que ao Tango como referência intertextual. Foi interessante mudar o mindset!

“En La Ciudad de La Furia” foi lançada em julho de 1988 no álbum “Doble Vida”, o quarto disco do Soda Stereo. Naquele momento, a banda formada por Gustavo Cerati (vocalista e guitarrista), Zeta Bosio (baixista) e Charly Alberti (baterista) tinha exatamente cinco anos de vida. Apesar do pouco tempo de estrada, acredite se quiser, o trio já tinha se consolidado como o maior grupo de Rock da Argentina (e provavelmente da América Latina). A trajetória meteórica ao cume da música popular em língua espanhola se deu pelos sucessos dos três discos anteriores: “Soda Stereo”, estreia de 1984, “Nada Personal”, de 1985, e “Signos”, de 1986. Aí “Doble Vida” chegou, no fim dos anos 1980, para consolidar a produção artística dos rapazes que estavam na iminência de virar trintões.
Além de “En La Ciudad de La Furia”, “Doble Vida” traz algumas canções marcantes do Soda Stereo como “Corazón Delator” (Un señuelo/Hay algo oculto en cada sensación/Ella parece sospechar/Parece percibir, en mí, que aquel amor/Es como un océano de fuego) e “Lo que Sangra – La Cúpula” (Te rescataré/Te rescataré/Los guardianes pierden el honor/Mientras desfilan/Hay tanto fraude a nuestro alrededor/Comprenderás). Outros sucessos deste trabalho foram “En El Borde” e “Picnic en el 4ºB”. Completaram o álbum as faixas “Languis”, “Día Comum – Doble Vida”, “En Ritmo de Tus Ojos” e “Terapia de Amor Intensivo”, que confesso não conhecer.
“Doble Vida” marcou a fase de maturidade e experimentalismo do Soda Stereo. Contudo, foi neste álbum que as diferenças e as primeiras brigas entre seus integrantes vieram à tona. Indiferente aos conflitos, o público correu às lojas para adquirir o quarto disco da banda portenha. Mais de um milhão de cópias foram comercializadas mundialmente. Só na Argentina, foram aproximadamente 100 mil unidades vendidas. Em termos de êxito nacional do trio, “Doble Vida” só perde para “Canción Animal” (500 mil cópias vendidas no país, um dos álbuns mais populares da história da música argentina) e “Nada Personal” (com aproximadamente 180 mil discos transacionados en tierras hermanas).
Nenhuma música de “Doble Vida” fez tanto sucesso quanto “En La Ciudad de La Furia”, até hoje referência cultural para os portenhos. É bom que se diga que a canção símbolo de Buenos Aires não é a mais famosa criação do Soda Stereo. Esse posto cabe a “De Música Ligera” (NÃO, essa canção NÃO é do Capital Inicial nem do Paralamas do Sucesso, PELO AMOR DE DEUS!!!), faixa principal de “Canción Animal”, quinto álbum do grupo argentino. Vale a menção de que “De Música Ligeira” não é apenas a composição mais conhecida de Gustavo Cereti (e de Zeta Bosio) e o maior sucesso do Soda Stereo. Ela é um dos ícones do Rock Argentino e do Rock Ibero-americano de todos os tempos. Já vi muita lista com as principais criações das bandas em língua espanhola em que essa faixa figurava nas primeiras posições (às vezes, na primeiríssima colocação). Em termos de fama e prestígio para os argentinos, acredito que Cerati e sua banda só fiquem atrás de Charly Garcia, o roqueiro mais popular das margens do Rio da Prata (e quiçá, do continente).

Se “De Música Ligera”, lançada em 1990, suplantou “En La Ciudad de La Furia” no coração da maioria dos fãs do Soda Stereo (beijo, Mara, a integrante do Melrose Argentina com o melhor gosto musical!), a canção que fala de Buenos Aires permanece como o melhor videoclipe do trio portenho. Por que falo isso? Porque a produção audiovisual de “En La Ciudad de La Furia” é considerada até hoje pela crítica local como uma obra de arte do Rock Nacional. Muita gente (coloque o dedo aqui, que já vai fechar!) vê esse videoclipe, que foi dirigido por Alfredo Lois, como o melhor de todos os tempos da música argentina. Difícil não concordar com tal avaliação.
Assista com atenção ao vídeo original de “En La Ciudad de La Furia” pelo menos uma vez. Ele é realmente incrível. Além de dialogar com a letra da canção (angústia do eu-lírico por se sentir livre na cidade grande e, ao mesmo tempo, ter a impressão de viver preso à indiferença da multidão) e de possuir vários elementos simbólicos oriundos da letra composta por Gustavo Cerati (o voo tal qual Ícaro da Mitologia Grega e a visão panorâmica da metrópole que um ser alado teria), há uma pegada de filme de Nouvelle Vague, o que confere um charme todo especial. Por isso, o branco e preto, as tomadas oscilantes entre o take geral e o zoom in, o olhar do alto (voo) e a perspectiva de baixo (caminhada pelas ruas) e a câmera inquieta. Toda vez que vejo esse videoclipe, juro que me lembro de “Asas do Desejo” (Der Himmel über Berlin: 1987), primeiro longa-metragem de Wim Wenders que assisti.
Num tempo em que a MTV ainda não tinha chegado à América Latina (só era transmitida nos Estados Unidos em sua versão original), “En La Ciudad de La Furia” foi finalista do MTV Video Music Awards na categoria Melhor Filme Estrangeiro. Para os novinhos que não fazem ideia da força da emissora norte-americana especializada em música nos anos 1980 e 1990, o MTV Video Music Awards era tão relevante quanto o Grammy Awards, principalmente para os artistas das novas gerações. Em outras palavras, esse videoclipe do Soda Stereo concorreu ao Oscar de sua modalidade (sim, o MTV Video Music Awards era o Oscar da música).
De tão famoso que é o vídeo de “En La Ciudad de La Furia”, alguns dos prédios retratados e alguns de seus enquadramentos fotográficos são copiados até hoje pelos argentinos. Em um passeio rápido pelas redes sociais, é possível notar que não estou exagerando. O edifício Bencich, por exemplo, nas esquinas da Avenida Córdoba com a Calle Esmeralda, no Microcentro de Buenos Aires, aparece na capa do disco “Doble Vida” e no videoclipe de sua canção principal. Por isso, até hoje, é citado como o prédio do Soda Stereo e de “En La Ciudad de La Furia”. A esquina da Avenida Hipólito Yrigoyen com a Avenida Presidente Julio Argentino Roca (Diagonal Sur) é, por sua vez, outro pedaço da cidade reverenciado. Afinal, foi ali que o trio de roqueiros foi fotografado para sua imagem mais icônica – a capa do seu quarto álbum, que tem o edifício Bencich ao fundo. Como aconteceu com a esquina da Ipiranga com a São João em São Paulo e com a praia de Ipanema no Rio de Janeiro, a música argentina também tem os seus marcos arquitetônico-urbanísticos.

Sei que sou suspeito para falar, mas acho sensacional esse caminhar simultâneo pela cultura da Argentina por múltiplas vertentes: música, cinema, arquitetura e história. Isso é Buenos Aires, senhoras e senhores. Isso é o melhor da terra de Evita Perón, Diego Armando Maradona, Carlos Gardel, Gabriela Sabatini, Quino, Padre Francisco, Mirtha Legrand, Juan Manuel Fangio, Ricardo Darín e China Soares!
Voltando à discussão principal: por que “Na Cidade da Fúria” (em uma tradução direta do espanhol para o português) para designar Buenos Aires, hein?! A explicação para isso se deve à mescla de três fatores: (1) o contexto econômico-social em que a música foi criada (final dos anos 1980); (2) as características das criações dos roqueiros desta época (canções de protestos e de crítica social); (3) e à própria história da narrativa de Gustavo Cerati (a letra de “En La Ciudad de La Furia” escancara a tensão dramática dos moradores dos grandes centros urbanos, uma temática contemporânea e universal).
É bom contar que a Argentina passava por uma grave crise econômica na segunda metade da década de 1980. Se bem que... quando é que nossos vizinhos não estiveram nesta situação no último século, né?! Difícil encontrar um período de bonança. De qualquer maneira, em termos econômicos, políticos e sociais, a realidade deles era muito parecida aquela que vivíamos no Brasil no mesmo momento: fim da Ditadura Militar, retorno da democratização, hiperinflação, estagnação ou mesmo retração do PIB, planos econômicos esdrúxulos, elevado nível de pobreza, gigantesco êxodo do campo para as grandes cidades e inchaço das metrópoles. Assim sendo, “En La Ciudad de La Furia” é o retrato fiel de seu tempo.
Não por acaso, o Rock foi o principal gênero musical desta época. Suas letras de protesto e as fortes críticas sociais se encaixaram como luvas no sentimento de inconformismo e revolta da juventude, que não via perspectiva de crescimento e progresso em países em franco empobrecimento. Isso ocorreu no Brasil – é só ouvir as canções do Legião Urbana, Titãs, Barão Vermelho/Cazuza, Paralamas do Sucesso, Utraje a Rigor etc. –, na América Latina, nos Estados Unidos e na Europa. De certa maneira, o Rock romântico, ingênuo e menos engajado das décadas anteriores (talvez as maiores representações dessa pegada fossem Elvis Presley e os Beatles) ficara para trás. Em seu lugar, surgiram várias ramificações do Rock, algumas mais pesadas: Pós-punk, Thrash Metal (a versão ainda mais rápida e agressiva do Heavy Metal), Glam Metal, Rock Gótico, Rock Alternativo e New Wave. É disso que estamos falando aqui, senhoras e senhores.

A constituição do Soda Stereo está ligada a tal contexto. A banda portenha nasceu sob forte influência do Punk Rock inglês, principalmente do The Police e do The Cure. Essa foi justamente a linha musical de Cerati e de seus colegas nos primeiros quatro álbuns. Eles deram pitadas generosas de argentinidade ao Rock britânico do final da década de 1970 e início da década de 1980. Com o tempo, o grupo portenho foi mudando de proposta. O disco que representou essa virada de chave com mais intensidade foi “Canción Animal”. Por isso, não é errado enxergarmos “Doble Vida” como o término de um ciclo.
“En La Ciudad de La Furia” e as demais faixas de “Doble Vida” foram criadas nos primeiros meses de 1988. Após o breve descanso da longa turnê internacional de “Signos”, que levou o Soda Stereo a se apresentar em boa parte da América Latina (México, Venezuela, Equador, Colômbia, Paraguai, Peru, Bolívia e Chile) e Europa (Espanha), Gustavo Cerati mergulhou novamente no processo criativo. Ele sempre foi o líder do grupo e a engrenagem autoral da sonoridade do trio. Assim, o vocalista e guitarrista compôs as nove canções deste álbum. Em oito faixas, participou da criação tanto da melodia quanto da letra.
Sem estardalhaço, Cerati trabalhou em um estúdio construído em seu apartamento no bairro de Belgrano, na Calle José Hernández. Quando Zeta Bosio e Charly Alberti o visitaram para planejar o que fariam após as férias, o compositor mostrou que os trabalhos estavam avançados. Ele já tinha, por exemplo, as estruturas melódicas de “En La Ciudad de La Furia”, “Lo que Sangra – La Cúpula” e “En El Borde” e os esboços de várias canções. Em outras palavras, as bases do novo álbum já estavam delineadas quando os três integrantes do grupo se reuniram.
Para “En La Ciudad de La Furia”, Gustavo Cerati usou a melodia que criara quando tinha entre 13 e 14 anos. Os acordes com pegada de Pós-Punk e New Wave foram desenvolvidos originalmente para uma canção romântica. Desde a adolescência, o músico argentino tinha a mania de compor faixas para suas namoradas, principalmente quando a relação terminava ou quando estava em crise. Ele simplesmente gravava uma nova música numa fita cassete e enviava para o endereço da amada. A estrutura melódica de “En La Ciudad de La Furia” surgiu das lembranças de Cerati de uma antiga canção feita após um término em 1972 ou 1973. Daí a melancolia do som.

A letra, por sua vez, foi elaborada a partir de uma personagem que o compositor inventara na adolescência. Além de se dedicar desde cedo à música, vale a contextualização, Gustavo Cerati adorava desenhar e criar histórias em quadrinho. Em uma de suas narrativas juvenis mais saudosas, o líder do Soda Stereo criou um ser alado que sobrevoava Buenos Aires. A figura ficcional era uma espécie de Ícaro rio-platense, famoso personagem da Mitologia Grega que conseguiu voar por Creta a partir de um invento paterno. Contudo, ao se aproximar do sol, as asas feitas de cera que usava derreteram e Ícaro desabou. O protagonista da música, o eu-lírico de “En La Ciudad de La Furia”, é justamente este jovem (talvez o alter ego do líder do Soda Stereo) que alimentava o desejo de liberdade e queria encarar a metrópole pelo alto.
Curiosamente, “En La Ciudad de La Furia” possui várias versões. A original é a que ouvimos em “Doble Vida” e que assistimos no famoso videoclipe dirigido por Lois. Para mim, esta é a melhor opção sem nenhuma dúvida. Ela é perfeita e não precisava de reparos ou tentativas de alteração.
Em 1996, pouco antes da banda se separar, o Soda Stereo deu uma nova roupagem para este hino informal da cidade de Buenos Aires. Isso ocorreu na gravação do álbum “Comfort y Música Para Volar”, no Acústico MTV. Nela, a cantora colombiana Andrea Echeverri, da banda Aterciopelados, divide a interpretação com Gustavo Cerati. Por causa dos acordes estridentes e do ritmo mais lento, essa é a versão que menos gosto. E aí não é purismo ou saudosismo da minha parte, não. É que ficou ruim mesmo!
Talvez incomodado com a repercussão negativa do acústico, o Soda Stereo lançou uma nova releitura de “En La Ciudad de La Furia” já no ano seguinte, na sua turnê de despedida. A terceira versão de 1997 possui um tom mais erudito, com acréscimo de instrumentos como violino e acordeão. Sua introdução também é mais longa e com a intensificação do solo de guitarra – que ficou SENSACIONAL! Outro acerto inegável foi a abolição da lentidão enervante da primeira releitura. Assim, Cerati voltou ao ritmo da interpretação original. Admito que gostei dessa proposta, ainda que siga preferindo a de 1988.
Com o fim do Soda Stereo em 1997 (eles voltariam pontualmente em uma turnê especial em 2007 e em shows de 2020 a 2022 já sem Gustavo Cerati, falecido em setembro de 2014, após ficar quatro anos em coma, vítima de um AVC), novas variações de “En La Ciudad de La Furia” foram lançadas por outros cantores e bandas. Conheço as releituras em Dance Mix e em Cyber Punk. São divertidas, mas longe de serem vistas como exemplares dignos de elogios.
Veja, a seguir, a letra completa de “En La Ciudad de La Furia”. Logo depois, apresento o videoclipe original dessa faixa que foi lançada em 1989, um ano depois da música chegar às rádios argentinas:

En La Ciudad de La Furia – Gustavo Cerati (1988)
Me verás volar
Por la ciudad de la furia
Donde nadie sabe de mí
Y yo soy parte de todos
Nada cambiará
Con un aviso de curva
En sus caras, veo el temor
Ya no hay fábulas
En la ciudad de la furia
Me verás caer
Como un ave de presa
Me verás caer
Sobre terrazas desiertas
Te desnudaré
Por las calles azules
Me refugiaré
Antes que todos despierten
¿Me dejarás
Dormir al amanecer
Entre tus piernas?
Entre tus piernas
¿Sabrás ocultarme bien
Y desaparecer
Entre la niebla?
Entre la niebla
Un hombre alado extraña la tierra
Me verás volar
Por la ciudad de la furia
Donde nadie sabe de mí
Y yo soy parte de todos
Con la luz del Sol
Se derriten mis alas
Solo encuentro en la oscuridad
Lo que me une
Con la ciudad de la furia
Me verás caer
Como una flecha salvaje
Me verás caer
Entre vuelos fugaces
Buenos Aires se ve
Tan susceptible
Ese destino de furia es
Lo que, en sus caras, persiste
¿Me dejarás
Dormir al amanecer
Entre tus piernas?
Entre tus piernas
¿Sabrás ocultarme bien
Y desaparecer
Entre la niebla?
Entre la niebla
Un hombre alado prefiere la noche
Me verás volver
Me verás volver
A la ciudad de la furia
O que vocês acharam? Incrível, né?
Comecemos a análise desta canção, a principal proposta da coluna Músicas, por sua melodia. Do início ao fim, o tom de “En La Ciudad de La Furia” é de melancolia, mistério e, por que não, urgência. A reação normal do ouvinte é ficar, ao mesmo tempo, muito atento e um pouco incomodado. Algo de sério vai acontecer a qualquer momento. Este é o pensamento ou o pressentimento que temos. Sim, senhoras e senhores, estamos numa criação essencialmente gótica de Gustavo Cerati. O compositor argentino conseguiu esses efeitos a partir de bases harmônicas que oscilam entre acordes maiores e menores, sem que a música se tornasse monótona e enfadonha (um dos efeitos colaterais desse recurso). O resultado é, além da potencialização da tensão dramática, uma perspectiva de intenso movimento – tudo a ver com sua letra, conforme veremos daqui a pouco.
Acho um charme a progressão de acordes tão contraditórios – maior e menor. Na versão original, temos apenas guitarra, baixo, teclado e bateria. Nas muitas releituras, há o acréscimo de outros instrumentos musicais como sintetizadores, viola, violoncelo, fagote, acordeão etc. Ainda assim, é bom destacar, a guitarra de Cerati reina quase que absoluta em todas as versões, roubando o protagonismo. Não por acaso, o solo de guitarra de “En La Ciudad de La Furia” é um dos mais famosos da música argentina. Em poucos segundos de audição, já conseguimos reconhecer essa canção do Soda Stereo e o DNA melódico da primeira fase musical de Gustavo Cerati – o do Rock com pegada de Pós-Punk e New Wave.
Por mais que a faixa toda seja brilhante, confesso que considero seu início e seu fechamento simplesmente geniais. Repare nisso, por favor. Veja (no caso, ouça!), como é feita a abertura. Em apenas dois ou três segundos, o guitarrista consegue criar a tensão dramática e, simultaneamente, lançar as marcas estilísticas dessa canção – que permanecerá na mesma batida dali pra frente.
E o final dessa composição é de um lirismo e de uma criatividade ímpares. Porque quando pensamos que a música vai acabar, ela dá uma espécie de looping e volta à intensidade do começo. Ela só acaba porque o volume é abaixado – como se alguém tirasse progressivamente o som do aparelho responsável por sua execução. Esse expediente musical fica mais evidente no videoclipe (e em alguns shows da década de 1990). É como se estivéssemos em um labirinto (Labirinto de Creta?!) e pensássemos ter encontrado a porta de saída. Porém, logo depois da euforia da descoberta, somos golpeados pela realidade. Na nossa frente há uma parede. Aí é hora de voltarmos correndo atrás de um novo caminho porque o fim ainda está longe.

Em suma, a melodia é essencial para criar a atmosfera da música. O que salta aos nossos olhos (tá bom, tá bom, aos nossos ouvidos!) é a harmonia estética e conceitual do som instrumental com a letra da canção. Por falar nisso, vamos ao debate sobre os versos de “En La Ciudad de La Furia”. Como sou apenas um rapaz (latino-americano sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo de São Paulo) do mundo da literatura, admito que entramos na seara em que tenho mais familiaridade. Por mais que me esforce para discutir com alguma profundidade os aspectos técnicos das músicas analisadas no Bonas Histórias, ainda assim sou leigo quanto aos acordes e às melodias.
O que mais gosto desta letra de Gustavo Cerati é o seu tom atemporal e universal. Curiosamente, por mais que cite Buenos Aires e retrate o sentimento da juventude no final dos anos 1980, “En La Ciudad de La Furia” trata do eterno sentimento dos moradores dos grandes centros urbanos. Portanto, seu drama é parecido ao que os habitantes de São Paulo, Rio de Janeiro, Santiago do Chile, Cidade do México, Nova York, Los Angeles, Madrid, Londres, Paris, Joanesburgo, Lagos, Seul, Tóquio e Sidney viveram nas décadas de 1970, 1980, 1990, 2000 e 2010 e padecem nos anos 2020.
E o que seria exatamente esse sentimento, hein?! É a dicotomia de estarmos cotidianamente no meio de multidões e, ao mesmo tempo, passarmos indiferentes aos olhares das pessoas que caminham apressadas ao nosso lado pelas ruas e avenidas. Quem morou ou mora numa metrópole sabe do que estou falando. Por ter nascido em São Paulo, vivencio tal impressão desde pequeno. A grande cidade é um deserto de afeição e solidariedade. Os rostos e os olhos que nos miram possuem indiferença, desconfiança e, às vezes, medo. Daí o termo: En La Ciudad de La Furia.
Tal retrato ácido da realidade fica evidente logo no comecinho da canção do Soda Stereo. Repare nos versos das duas primeiras estrofes. A seguir, apresento tanto o texto original em espanhol quanto a tradução direta para o português feita por esse humilde escriba:

Me verás volar/Você me verá voar
Por la ciudad de la furia/Pela cidade da fúria
Donde nadie sabe de mí/Onde ninguém sabe de mim
Y yo soy parte de todos/E sou parte de todos
Nada cambiará/Nada mudará
Con un aviso de curva/Apesar dos riscos e dificuldades
En sus caras, veo el temor/Em seus rostos, vejo o medo
Ya no hay fábulas/Já não há fábulas
En la ciudad de la furia/Na cidade da fúria
Um episódio que vivenciei há mais de uma década representa muito bem a alienação dos habitantes dos grandes centros urbanos. No meio de uma tarde qualquer, estava indo para uma reunião em Guarulhos no carro da diretora da empresa de consultoria em que trabalhava. Na época, ainda morava em São Paulo. Pegamos um trânsito infernal na Marginal do Pinheiros e, depois, na Marginal do Tietê. Coisa normal da capital paulista. Aí a minha chefe, despreocupada com nosso atraso (ela sempre se achou mais importante do que os clientes atendidos), começou a questionar o quanto as pessoas a nossa volta eram indiferentes às nossas presenças e angústias.
– Você sabia, Ricardo, que se a gente começar a gritar agora, ninguém virá nos socorrer? – disse a diretora de Marketing e Vendas atrás do volante, parada no trânsito na altura da Ponte das Bandeiras – É impressionante o quanto somos invisíveis numa cidade grande.
Não acreditei em suas palavras e expressei a minha discordância. É claro que seríamos amparados em caso grave. Por mais apressada que fosse a rotina das pessoas e por mais impessoais que fossem as relações humanas no dia a dia contemporâneo, ainda assim a solidariedade, a atenção e olhar atento dos cidadãos urbanos seguiam imperando. Mesmo na Selva de Pedra. Mesmo em pleno século XXI.

Querendo provar que estava certa, ela propôs:
– Vou te mostrar o quão assustador é viver nesse hospício – Abaixou totalmente o volume do rádio que escutávamos – Vamos gritar! Mas é para gritar o mais forte que pudermos, tá? Você verá que ninguém nos ajudará.
Achei aquela proposta inusitada e divertida. Por que não berrar como loucos dentro de um automóvel no meio do trânsito vespertino de São Paulo? Dessa maneira, nós dois começamos a gritar. Para meu espanto, os motoristas e os passageiros dos outros carros sequer nos olhavam. Seguiam parados com cara de paisagem e indiferentes ao que acontecia nos veículos ao redor. Querendo chamar a atenção daquele povo frio e insensível, propus abrirmos totalmente os vidros das janelas. E aumentamos os decibéis da gritaria. E nada. ABSOLUTAMENTE NADA! Ninguém se preocupou conosco. Incrível, né?
Esse é o comportamento padrão em um conglomerado urbano. O excesso de pessoas provoca o efeito de insensibilidade na multidão. A população parece anestesiada quanto aos sentimentos e às emoções dos outros. Nadie sabe de mí/Y yo soy parte de todos. En sus caras, veo el temor/Ya no hay fábulas. Por isso, os versos de Gustavo Cerati são atemporais e universais.
Outra temática onipresente em “En La Ciudad de La Furia” (que seu videoclipe explorou magnificamente bem) é o quão pequenos nos sentimos nas dimensões exageradas das torres urbanas, das antenas e dos arranha-céus. Diante da grandiosidade das construções metropolitanas, temos a vontade de sair voando. Daí as referências ao ser alado que teima, tal qual um Ícaro contemporâneo, em fugir do labirinto de ruas e avenidas pelo alto. Nesse sentido, a citação direta à Buenos Aires (a cidade de bons ares) ganha maior poesia.

¿Sabrás ocultarme bien/Você saberá se ocultar bem
Y desaparecer/E desaparecerá
Entre la niebla?/Entre a neblina?
Entre la niebla/Entre a neblina
Un hombre alado extraña la tierra/Um homem alado tem saudades do chão
E tem esse quarteto de versos também:
Buenos Aires se ve/Buenos Aires se parece
Tan susceptible/tão suscetível
Ese destino de furia es/O destino de fúria é
Lo que, en sus caras, persiste/o que, em suas faces, persiste
Se pensarmos bem, viver numa grande cidade é voar um pouco todo dia. Por exemplo, estou fazendo esse texto do oitavo andar de um prédio residencial de Saavedra, bairro da Zona Norte da capital argentina. Da vista da minha mesa de trabalho, tenho as árvores do Parque de Saavedra, vários prédios da Avenida García del Rio, as casinhas que fazem fronteira com a cidade de Vicente López, o shopping Dots e um pedaço do estádio do Platense. Em um sentido mais poético, sou um anjo que está no céu contemplando o cenário urbano, né?
Esse caminhar frenético pelo alto (topos dos prédios) e por baixo (pelas calçadas e ruas) de Buenos Aires compõe o cotidiano do eu-lírico de “En La Ciudad de La Furia”. Ao se lembrar da Mitologia Grega, essa figura ficcional teme o dia e valoriza a noite. Afinal, o sol pode derreter suas asas, enquanto o brilho da lua ilumina o cenário e não infringe mal aos seus adereços. Será por isso que os portenhos gostam tanto das noites e das madrugadas, hein?! Eita povo mais noturno este, senhoras e senhores.

Me verás caer/Você me verá cair
Como un ave de presa/Como uma ave de rapina
Me verás caer/Você me verá cair
Sobre terrazas desiertas/Sobre varandas desertas
Te desnudaré/Tirarei suas roupas
Por las calles azules/Por ruas azuis
Me refugiaré/Vou me esconder
Antes que todos despierten/Antes que todos acordem
A queda é uma referência direta ao mito de Ícaro, o ser alado que despencou após ter problemas com o voo diurno. E o termo “ruas azuis” é uma maneira metafórica de chamar o céu. A personagem central de “En La Ciudad de La Furia” procura a noite, porque é o período mais tranquilo para ela circular. Além disso, evita as pessoas durante o dia, pois teme a incompreensão da multidão cada vez mais impaciente e desumana. Isso fica evidente nesse outro trecho:
Con la luz del Sol/Com a luz do Sol
Se derriten mis alas/Minhas asas se derretem
Solo encuentro en la oscuridad/Apenas encontro a escuridão
Lo que me une/O que nos une
Con la ciudad de la furia/Com a cidade da fúria
Me verás caer/Você me verá cair
Como una flecha salvaje/Como uma fecha selvagem
Me verás caer/ Você me verá cair
Entre vuelos fugaces/Entre voos curtos
Com o entendimento das referências a Ícaro e da vista de cima da cidade pelo eu-lírico, compreendemos alguns versos que poderiam ter uma interpretação equivocada. Por exemplo, essa parte possui uma dupla perspectiva:
¿Me dejarás/Você me deixará
Dormir al amanecer/Dormir ao amanhecer
Entre tus piernas?/Entre as suas pernas?
Entre tus piernas/Entre as suas pernas

A primeira reação é achar que o protagonista da música está relatando que dormirá, ao amanhecer, com uma mulher. Depois de passar a noite se divertindo pela cidade, ele voltou para casa bem acompanhado e aproveitará para ir para cama com sua nova companhia. Contudo, não é essa a leitura que faço desses versos. Para mim, o “entre as pernas” é o conjunto de colunas dos prédios de Buenos Aires. Lembremos que o ser alado caiu do céu. Ele agora é um zé ninguém aos olhos dos demais moradores da metrópole. E precisa dormir embaixo das estruturas dos edifícios portenhos. Portanto, esse trecho de “En La Ciudad de La Furia” possui conotação mais de crítica social do que de erotismo/sensualidade.
Por mais incríveis que sejam individualmente a melodia e a letra dessa canção de Cerati, só quando unimos as duas partes que entendemos a sua beleza musical e a sua grandiosidade artística. “En La Ciudad de La Furia” não é apenas o hino informal de Buenos Aires. Essa canção é o hit que retrata com brilhantismo a angústia, a solidão e as contradições dos moradores das metrópoles nos séculos XX e XXI. O cidadão urbano até pode voar (os elevadores nos levam para cima e para baixo o tempo todo), mas seus voos são perigosos. Ele pode caminhar livremente pelas ruas e avenidas, mas jamais se sentirá seguro e acolhido nelas. O sujeito moderno pode ver uma multidão diariamente, mas terá a impressão de não ser visto e ouvido por ninguém.
Por tudo isso, considero “En La Ciudad de La Furia” a melhor criação de Gustavo Cerati e a melhor faixa do portfólio do Soda Stereo. Admito que sou fã incondicional da fase inicial da banda argentina, quando ela trazia poesia e irreverência em forma de músicas ácidas e incômodas. Essa é a linha, por exemplo, de “Corazón Delator” (um dos hits românticos mais antirromânticos que conheço), “Nada Personal” (por mais que seus acordes iniciais me lembrem assustadoramente “Another One Bites The Dust”, do Queen, que fora composta cinco anos antes), “Lo Que Sangra – La Cúpula” e “Ella Usó Mi Cabeza Como Un Revólver (se bem que essa faixa é de 1995, já na etapa final do Soda Stereo). Contudo, reconheço o maior apelo popular de “De Música Ligera” e me curvo às preferências das massas. Realmente, andar no meio da multidão não é tarefa fácil!