Lançado em dezembro nos cinemas brasileiros, O Menu é estrelado por Anya Taylor-Joy, Ralph Fiennes e Nicholas Hoult e apresenta uma história alegórica dos restaurantes sofisticados.
Nesse final de semana de luto futebolístico, fui ao Espaço Itaú de Cinema do Bourbon Shopping Pompeia para assistir a “O Menu” (The Menu: 2022), o thriller de terror que entrou recentemente em cartaz no Brasil. Terror de novo, Ricardo?! Sim, adoro ficção aterrorizante seja nas telonas seja nas páginas dos livros. Sem perceber, os últimos filmes que analisei na coluna Cinema são justamente desse gênero. Em agosto, comentei com os leitores do Bonas Histórias “A Teoria dos Vidros Quebrados” (La Teoria de Los Vidrios Rotos: 2021), produção uruguaia de Diego Fernández. E em outubro, debati no blog “Sorria” (Smile: 2022), o longa-metragem de estreia de Parker Finn. E hoje vamos de “O Menu”! Nada como uma boa ficção de terror para esquecermos os momentos trágicos que vimos nos campos cataris, né?
Lançado no circuito nacional de cinema em 1º de dezembro, “O Menu” foi dirigido por Mark Mylod, britânico mais conhecido pelos trabalhos nos seriados televisivos (“Sucession”, “Game of Thrones” e “Shameless”) do que pelas produções cinematográficas. Nas telonas, seu título mais conhecido é a despretensiosa (e gostosinha) comédia romântica “Qual é o Seu Número” (What´s Your Number?: 2011). Por isso, não é errado enxergarmos “O Menu” como o longa-metragem mais ambicioso do diretor até aqui. Pelo que parece, enfim Mylod começa a transferir algumas fichas da bem-sucedida carreira na TV para o cinema. Com certeza, os apreciadores da sétima arte não vão reclamar da ampliação de foco do seu trabalho.
Orçado em aproximadamente US$ 30 milhões, “O Menu” foi escrito por Seth Reiss e Will Tracy, dupla de roteiristas que também é mais habitual das produções televisivas e que acompanha sempre Mark Mylod nos projetos audiovisuais do britânico. No elenco principal do filme, temos Anya Taylor-Joy, que interpretou brilhantemente Beth Harmon em “O Gambito da Rainha” (The Queen’s Gambit: 2020), Ralph Fiennes, de “O Grande Hotel Budapeste” (The Grand Budapest Hotel: 2014) e “King´s Man – A Origem” (The King´s Man: 2021), e Nicholas Hoult, de “Mad Max – Estrada da Fúria” (Mad Max: Fury Road: 2015) e “Meu Namorado É um Zumbi” (Warm Bodies: 2013). A equipe de atores e atrizes é complementada por Hong Chau, Janet McTeer, Richard Liebbrandt, Judith Light, John Leguizamo, Paul Adelstein, Aimee Carrero, Arturo Castro, Rob Yang, Mark St. Cyr, Rebecca Koon, Christina Brucato e Adam Aalderks.
A ideia do roteiro de “O Menu” surgiu após uma experiência verídica de Mark Mylod na alta gastronomia. Quando estava pesquisando os hábitos dos endinheirados para o seriado “Sucession”, o diretor e o roteirista Will Tracy visitaram o Cornelius Sjømatrestaurant, um renomado e exclusivíssimo restaurante norueguês. O estabelecimento é especializado em frutos do mar e fica em uma ilha ao norte de Bjørøyhamn, cidade às margens do Mar do Norte e distante sete horas de Oslo. Tracy já tinha visitado antes o local quando viajou à Noruega de lua de mel e achou interessante indicá-lo para o diretor. A partir da refinada experiência gastronômica, os cineastas puderam ter vários insights para as tramas de TV que estavam trabalhando e para as histórias de cinema que viriam a produzir mais tarde (“O Menu” entra exatamente nessa segunda categoria).
No Cornelius, os visitantes são recepcionados pela equipe dos chefs desde o momento em que entram na embarcação que ruma para a ilha privativa, que fica mais ou menos a 30 minutos de barco do continente. A proposta da casa é proporcionar aos clientes uma imersão completa na culinária autoral e inovadora (leia-se gastronomia molecular). O restaurante valoriza a pesca da região (ao ponto de dizer que prepara o peixe mais fresco do mundo!) e os produtos cultivados ali mesmo. O estabelecimento serve diariamente cinco tipos de refeições (uma diferente da outra e cada uma para um momento específico do dia) e altera o cardápio (baseado nas variações meteorológicas) quando as estações do ano mudam. Se esse post fosse da coluna Gastronomia, eu gastaria mais algumas linhas falando do Cornelius. Porém, estamos na coluna Cinema, né?
Foi visitando o Cornelius que Mylod e Tracy, duas mentes para lá de criativas, começaram a esboçar a história do que aconteceria se a equipe do restaurante chique estivesse mais propensa a conferir uma experiência sádica e surreal aos visitantes do que uma experiência culinária agradável e pacífica. Afinal, querendo ou não, os clientes estavam presos em uma ilha isolada da civilização e suscetíveis aos caprichos dos cozinheiros e funcionários do estabelecimento, né? Na cabeça da dupla de cineastas, se o chef principal do Cornelius fosse alguém com sede de vingança e traços de psicopatia, na certa aquela noite dos abastados comensais se transformaria em um momento trágico e aterrorizante para eles. A partir dessa proposta narrativa para lá de ousada surgiu a base da história que ancora “O Menu”.
No roteiro de Seth Reiss e Will Tracy, a trama do filme não acontece na Europa e sim nos Estados Unidos. Obviamente, o nome do restaurante e dos chefs também são alterados (sai o norueguês Cornelius Sjømatrestaurant e entra o norte-americano Hawthorne Restaurant; e sai de cena os vários chefs do estabelecimento real e entra em ação o chef ficcional Julian Slowik). E a dupla de protagonistas que visita o tragicômico restaurante não é mais os colegas que trabalham com cinema e sim um jovem casal de namorados que aparentemente está se conhecendo. As filmagens de “O Menu” aconteceram essencialmente em Savannah, Geórgia, entre setembro e outubro de 2021. As cenas do litoral foram captadas na costa da Ilha Jekyll, também na Geórgia.
A estreia comercial de “O Menu” aconteceu em meados do mês passado nos Estados Unidos. Desde então, o filme de Mark Mylod vem sendo lançado nas salas de cinema dos quatro cantos do planeta com boa repercussão da crítica cinematográfica (que entendeu perfeitamente a sátira inteligente e violenta à alta gastronomia) e do público (que embarcou de cabeça na proposta inovadora do longa-metragem). A bilheteria dessa produção nas duas primeiras semanas em cartaz na América do Norte foi de quase US$ 50 milhões. Em alguns dias de novembro, “O Menu” só ficou atrás do blockbuster “Pantera Negra – Wakanda Para Sempre” (Black Panther – Wakanda Forever: 2022) na lista dos mais assistidos nos cinemas norte-americanos e canadenses. Nada mal para um título de um diretor que raramente se volta para os trabalhos nas telonas!
Realmente, o novo filme de Mark Mylod (com roteiro de Seth Reiss e Will Tracy) é incrível e merece ser visto com atenção por quem curte cinema de alta qualidade. Essa produção possui como ingredientes principais o humor fino (tão fino que tenho dificuldade de chamá-la de comédia), várias reviravoltas na trama, cenas com alta tensão dramática e um enredo recheado de suspense. Para completar o prato, foram inseridas generosas doses de violência e foram acrescidas pitadas do melhor do surrealismo. O resultado é espetacular! Confesso que desde “Mãe!” (Mother!: 2017), longa-metragem do excelente Darren Aronofsky, eu não assistia a um filme norte-americano de terror com uma história tão perspicaz e diferenciada. E quem foi que disse que não existe vida inteligente no cinema dos Estados Unidos, hein?!
Falemos agora mais a fundo da trama propriamente dita de “O Menu”. O longa inicia-se com Tyler (interpretado por Nicholas Hoult) e Margot Mills (Anya Taylor-Joy) em um píer. O jovem casal de namorados (namorados?!) está à espera do barco que os levará ao Hawthorne, conceituado restaurante comandado pelo não menos estrelado Chef Julian Slowik (Ralph Fiennes). A embarcação cuja tripulação é formada exclusivamente por funcionários do Hawthorne é necessária pois o estabelecimento fica em uma ilha particular. Ou seja, ele está distante de tudo e todos!
Ao desembarcar na ilhota, os clientes passam por um longo tour turístico-gastronômico. Só depois eles são conduzidos à mesa do restaurante. O tal tour é conduzido por Elsa (Hong Chau), a estranha maitre e braço direito de Julian Slowik. Ela apresenta cada detalhe da produção culinária do Hawthorne. A proposta do restaurante, como qualquer empreendimento sofisticado e voltado para os milionários, é oferecer uma experiência gastronômica única e memorável. Não por acaso, a maioria dos visitantes fica encantada com a complexidade do empreendimento.
Por noite, apenas 12 clientes tem o privilégio (mediante pagamento de US$ 1.250) de degustar as criações do chef do Hawthorne. Tudo ali é preparado com enorme esmero e requinte. Os peixes e os frutos do mar são pescados/coletados momentos antes de serem servidos. As frutas e as hortaliças são plantadas na própria ilha para dar gosto de frescor e de natureza aos pratos. A carne e o leite vêm dos animais criados ali mesmo. A partir das matérias-primas exclusivas e de enorme qualidade, o Chef Slowik consegue criar pratos extremamente inovadores, que atiçam a curiosidade do público ávido por novidades culinárias e que exploram o paladar dos clientes mais entendidos em alta gastronomia. Assim, não é surpresa nenhuma que haja fila de vários meses para se conseguir uma reserva à mesa do Hawthorne.
Por causa do preparo quase artesanal dos alimentos e da meticulosa confecção dos pratos, o exército de funcionários do restaurante reside na própria ilha (não se perde tempo ali). A rotina de trabalho no Hawthorne é insana. Diariamente os empregados de Julian Slowik acordam de madrugada para preparar os alimentos e só vão dormir tarde da noite, quando o último cliente já foi embora e o estabelecimento está prontinho para ser reaberto no próximo expediente. A equipe de cozinheiros atua sob as ordens quase ditatoriais do comandante, que é único que tem direito a um dia de folga a cada três meses. Se a jornada de trabalho é longa e bastante cansativa, o nível de exigência também é absurdo. Nada pode sair errado. Chef Slowik é um líder implacável e não aceita nada que não beire a perfeição. Como consequência, os funcionários do Hawthorne parecem ora robôs, ora integrantes de uma seita messiânica.
É nesse ambiente meio amalucado que está o casal de namorados. Enquanto Tyler, um milionário apaixonado pela alta gastronomia e pelo trabalho de Julian Slowik, está empolgadíssimo com a visita ao Hawthorne, Margot acha um tanto exagerada a excitação do companheiro. Ela crê que é um absurdo pagar tão caro por uma simples refeição. E, o que é pior, à medida que os pratos servidos no restaurante chegam à mesa, a jovem irá achá-los sem graça, ilógicos e até mesmo ruins. Sua postura contrasta, obviamente, com a de Tyler, cada vez mais maravilhado com o que prova. Na visão dele, Chef Slowik é verdadeiramente um dos maiores artistas da gastronomia mundial e merece a fama conquistada nos últimos anos.
No seleto grupo de clientes daquela noite, o Hawthorne recebe, além de Tyler e Margot, mais dez visitantes. Os felizardos (ou não!?) são: o casal de idosos (interpretado por Liebbrandt e Judith Light) que visitam o estabelecimento recorrentemente; a dupla de conceituados críticos gastronômicos (Janet McTeer e Paul Adelstein); o casal formado por um ator famoso (John Leguizamo) e sua assistente e namorada (Aimee Carrero); o trio de executivos (Arturo Castro, Rob Yang e Mark St. Cyr) que trabalha para o investidor que deu a grana necessária para o Chef Slowik colocar seu empreendimento de pé; e a mãe de Julian Slowik, uma senhora melancólica, alcóolatra e assustadoramente calada (Rebecca Koon).
Curiosamente, a presença (e a postura desbocada!) de Margot no grupo de clientes daquela noite causa muito desconforto na equipe do Hawthorne. A moça foi levada de última hora ao restaurante por Tyler. Pelo visto, a reserva do rapaz tinha sido feita para outra mulher (o que parece não constranger nem um pouco a bela e empoderada Margot). Não demora para que o clima ruim do estabelecimento descambe para situações absurdas e trágicas. Infeliz com o próprio desempenho, um cozinheiro se mata com um tiro na boca no meio do salão. A cena ocorre na frente dos clientes e dos colegas. Para perplexidade dos visitantes, a equipe de cozinheiros e o chef não se abalam com a morte e dão prosseguimento a entrega dos pratos tão logo retiram o cadáver do salão.
Incomodado com o que vê, um cliente se levanta e ameaça ir embora. Impedido pelos funcionários de deixar o local antes da hora, o senhor, um habitual frequentador do restaurante, é punido pela ousadia de querer abandonar a mesa sem o consentimento do chef. Para horror dos demais visitantes, o cliente petulante é barbaramente agredido por um dos cozinheiros. Usando a faca da cozinha, o funcionário do Hawthorne, sob as ordens de Julian Slowik, corta friamente um dedo da mão do senhor e atira o homem agonizando em um canto do salão. A única que presta os primeiros socorros ao ferido é a esposa dele, aterrorizada e chocada com o que presencia.
Só aí os clientes percebem que não são visitantes corriqueiros do Hawthorne. Naquela noite especificamente, eles são prisioneiros do Chef Slowik, em postura cada vez mais transloucada e sanguinolenta. A sensação é que a equipe do estabelecimento fará de tudo para tornar a experiência gastronômica do grupo de visitantes em algo trágico e terrível. Em meio à animosidade crescente entre funcionários e clientes do Hawthorne, Margot segue desprezando categoricamente os pratos servidos e a proposta do restaurante, o que só piora as coisas para todos. Paradoxalmente, Tyler, indiferente ao desespero do grupo de comensais, continua focado em experimentar a comida feita com tanto requinte por Julian Slowik. Em meio à violência inexplicável ao seu redor, o rapaz aguarda ansiosamente os próximos pratos que serão colocados em sua mesa.
“O Menu” tem aproximadamente 1 hora e 45 minutos de duração e consegue empolgar os cinéfilos mais exigentes. Entretanto, ele pode frustrar os espectadores mais recreativos, que geralmente têm dificuldade para compreender o humor sutil e os nuances tragicômicos do enredo. Como não curto comédias escrachadas e o humor mais popularesco (gosto infelizmente da maioria do público que frequenta os cinemas comerciais atualmente), admito que adorei o novo filme de Mark Mylod!
A primeira questão que preciso comentar sobre essa produção é o caráter alegórico das personagens. Entender essa característica do longa-metragem abre as portas para a compreensão da graça de “O Menu” (o tal humor tragicômico que comentei no parágrafo acima) e, principalmente, o esclarecimento da dinâmica da narrativa ficcional (a guerra entre o chef e sua equipe de cozinheiros e os clientes do restaurante sofisticado não é tão absurda quanto parece à primeira vista).
Repare bem no perfil dos visitantes do Hawthorne na fatídica noite retratada no filme: a crítica gastronômica metida a besta que quer sentir o que ninguém mais vê em cada prato; o editor da revista culinária que faz qualquer coisa para agradar a sua principal colaboradora; o casal fútil de milionários que visita o restaurante sem ter qualquer noção do que está comendo e do quão rica é aquela experiência à mesa; o casal de famosinhos que vai à ilha simplesmente para ver-e-ser-visto (e se eles mostrarem alguma intimidade com o badalado chef, melhor ainda!); os investidores capitalistas que estão interessados única e exclusivamente em botar dinheiro no bolso, independentemente do que o chef faça e sirva aos visitantes (mesmo assim, quando der, os donos do dinheiro vão dar uns pitacos na dinâmica do restaurante só para mostrar poder e serviço); e a família (representada pela mãe de Julian) que exige atenção, tempo e presença do chef, rivalizando com a rotina já desgastante e estressante do estabelecimento comercial.
Só quando visualizamos o quão alegórico é o grupo de frequentadores do Hawthorne, percebemos o motivo do ódio que Julian Slowik e seus funcionários sentem dos comensais daquela noite tão especial. Não à toa, a equipe do restaurante quer trucidar com requintes de crueldades cada uma das personagens sentadas à mesa (os jornalistas metidos a sabichões, os clientes fúteis, os visitantes arrogantes e famosos, os capitalistas interesseiros e a família que só vê os cozinheiros como pessoas normais e não estrelas de primeira grandeza da arte gastronômica). Viu como a trama de “O Menu” faz sentido!!!
À princípio, os únicos que parecem escapar da ira do Chef Slowik e de seu séquito de seguidores acéfalos são justamente Tyler e Margot. Se a admiração e os conhecimentos culinários de Tyler mexem positivamente com o ego de Julian Slowik (o rapaz é o único que parece entender os conceitos dos pratos servidos ali), por outro lado o desprezo e a indiferença de Margot (uma pessoa comum que não se empolga com o ritual social e o status de estar no restaurante multi estrelado) tiram o chef do lugar comum. Por mais paradoxal que possa parecer, os cozinheiros do Hawthorne não odeiam (ao ponto de querer matá-la) a moça que não aprecia a comida do estabelecimento. Eles a respeitam (na verdade, chegam a temê-la). O que eles não querem é que ela continue no salão, estragando a vingança planejada meticulosamente aos clientes tão afetados e (na visão dos funcionários do restaurante) tão cruéis.
Por tudo isso, parece meio óbvio dizer agora que a narrativa de “O Menu” é muito sagaz. Além de inteligente e muito bem construída, a história do filme é bastante original. Digo isso porque é normal encontrarmos produções cinematográficas envolvendo a gastronomia e/ou a culinária que descambem para o drama – "Pegando Fogo" (Burnt: 2015), “Estômago” (2007) e “Super Size Me – A Dieta do Palhaço” (Super Size Me: 2004) –, para o suspense – “O Chef” (Boiling Point: 2022) e “O Jantar” (The Dinner: 2017) –, para o romance – “Chocolate” (Chocolat: 2000) e “Sem Reservas” (No Reservations: 2007) – e para a comédia – “Tel Aviv em Chamas” (Tel Aviv On Fire: 2018), “Chef” (2014), “Lunchbox” (Dabba: 2013) e “Ratatouille” (2007). Contudo, não me lembro de ter assistido a um longa-metragem com essa temática que caminhasse para o lado do terror e, o que é mais legal, para o surrealismo. Incrível, né?
Pela pegada nonsense da trama, não é errado compararmos “O Menu” a “O Anjo Exterminador” (El Ángel Exterminador: 1962), obra-prima de Luis Buñuel. Se no filme mexicano do pai do Surrealismo as pessoas ficavam presas dentro de casa por vontade própria (em uma explícita crítica social à burguesia), na produção norte-americana os clientes do restaurante se tornam prisioneiros e vítimas daqueles que deveriam servi-los. Se você achou minha comparação esdrúxula, talvez o correto fosse mesmo associar “O Menu” ao já citado “Mãe!”, título recente que mistura surrealismo e terror com enorme competência e criatividade.
Outro componente interessante de “O Menu” que deve ser comentado neste post da coluna Cinema é a sensação de claustrofobia que o espectador sente durante a sessão. Dos 105 minutos do filme, acredito que cerca de 80 minutos devam ser passados dentro do salão do restaurante. As personagens ficam presas ali como se estivessem em um aquário ou em uma prisão. Apesar da beleza e da sofisticação do ambiente, o clima é de opressão, medo e insegurança. Não por acaso, os clientes são observados por Julian Slowik e sua equipe, além de se observarem mutuamente (atirando por terra qualquer nível de privacidade). Acredite se quiser, a ausência de paredes entre a cozinha e o salão torna a experiência gastronômica no Hawthorne ainda mais assustadora e complexa.
Gostei também dos sustos e das surpresas contidos em “O Menu”. Os sustos vêm na medida certa e as reviravoltas na trama têm o tom correto, além de serem muitíssimo inteligentes. Se comparado com os mesmos elementos de “A Teoria dos Vidros Quebrados” e “Sorria”, últimos títulos de terror que analisei no Bonas Histórias, o enredo de “O Menu” é muuuuuuuito melhor. As principais surpresas desse longa-metragem estão relacionadas às personalidades, ao passado e aos segredos dos clientes. Vários visitantes do restaurante têm lá seus mistérios e descobri-los pode mudar a perspectiva que o espectador tem da narrativa. Só não posso falar mais nada a respeito porque aí corro o risco de adiantar algumas partes interessantes do enredo (algo proibitivo nas análises da coluna Cinema).
Como consequência, não temos um filme parado (algo que poderia acontecer já que temos apenas um cenário fixo). A partir do suicídio do cozinheiro do Hawthorne na frente de todos, o público na sala de cinema não consegue mais piscar os olhos da tela. E por falar em ritmo narrativo, vale a pena destacar que um dos aspectos mais intrigantes de “O Menu” é justamente a mudança de dinâmica do filme. Repare nisso durante a sessão.
O longa-metragem começa como um thriller tradicional. Até aí nada demais. O suspense que atiça nossa curiosidade é formado por uma série de perguntas: quem são essas pessoas no barco a caminho do restaurante? O que há na ilha de tão especial? Por que a equipe do Hawthorne age de um jeito meio robótico e meio amalucado? Quem é Margot? E por que ela é a convidada reserva de Tyler? Enquanto ainda estamos fazendo formulações, o filme muda de cara e se torna um terror legítimo. Aí as cenas de violência saltam à tela e podem assustar as almas e os corações mais sensíveis.
Depois do terror (ou seria banho de sangue?), começa a fase da ação dramática de “O Menu”. Os visitantes do Hawthorne desafiam o chef do restaurante e tentam fugir. A ideia do grupo de visitantes é sobreviver ao ataque aparentemente sem sentido e atroz dos cozinheiros. E, por fim, temos a melhor parte dessa produção de Mark Mylod que gosto de chamar de sátira gastronômica. É nesse instante que a trama (até então caótica e com jeitão de nonsense) faz sentido e se torna brilhante (com doses elevadas de humor). Quando entendemos que estamos diante de uma história satírica e que cada personagem é na verdade uma figura alegórica, o filme faz total sentido e ganha ainda mais graça (diria que o longa-metragem se torna uma tragicomédia).
À medida que “O Menu” vai mudando de pegada narrativa (ou seria de estilo cinematográfico, hein?), só uma coisa não muda: a estética de programa de televisão. Achei hilária a preocupação de apresentar detalhadamente os nomes, as características e os ingredientes de cada um dos pratos servidos pelo Chef Slowik. É como se a culinária fosse uma personagem central (e é!) do filme. E se ela não fosse discriminada, o espectador teria perdido uma parte importante do enredo. Impossível não gostar dessa brincadeira intertextual.
Outra questão fundamental para o sucesso de “O Menu” foi a excelente atuação do elenco. Por ser filmado quase que integralmente em um único cenário (lembre-se: o salão do restaurante é integrado à cozinha) e com várias pessoas em cena, há uma pegada quase que teatral ao longa-metragem. Nessa concepção de cinema, exige-se mais dos atores e das atrizes. Se eles não forem bem, na certa o filme não terá força dramática. E quando há dezenas de figuras o tempo inteiro no palco, quero dizer na tela, todos precisam estar em alto nível. E é o que assistimos em “O Menu”. Apesar do show particular de interpretação de Ralph Fiennes e do carisma absurdo de Anya Taylor-Joy, todo o elenco se sai muitíssimo bem e ajuda a manter acesa a chama do suspense da narrativa.
Por fim, preciso dizer que o desfecho da trama é SENSACIONAL!!! Se houvesse um Oscar específico para o fechamento das produções cinematográficas, diria que “O Menu” era o meu favorito para a conquista dessa estatueta no próximo evento em Los Angeles. E olha que o desenlace é geralmente o calcanhar de Aquiles dos filmes de terror. Cansei de comentar na coluna Cinema títulos aterrorizantes que começaram muito bem e acabaram melancolicamente. E, graças ao roteiro impecável de Seth Reiss e Will Tracy, “O Menu” não sofre desse mal. Pelo contrário, ele se torna ainda melhor com o final memorável protagonizado por Margot/Anya Taylor-Joy e Julian Slowik/Ralph Fiennes. Desde “O Boneco do Mal” (The Boy: 2016), eu não via o fechamento de uma produção de terror tão bom quanto esse.
E aí, ficou curioso para ver o trailer de “O Menu”? Então chega de suspense e vamos ao vídeo oficial do filme:
Até o final do ano vou visitar mais algumas vezes as salas de cinema, mas desconfio que não haverá um longa-metragem melhor do que esse em cartaz no circuito comercial brasileiro. Se achar prometo contar em primeira mão para vocês aqui no Bonas Histórias. De qualquer maneira, adorei a sessão do sábado passado que misturou o conteúdo das colunas Gastronomia e Cinema.
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