Em seu livro de estreia, professor mineiro escancara sua paixão por conhecer culturas, pessoas e lugares diferentes.
A Covid-19 está sendo terrível para alguns setores da economia. Um dos segmentos mais afetados pela pandemia é o turismo. Do dia para a noite, milhões de viajantes cancelaram ou adiaram seus planos e precisaram ficar em casa. Como consequência, a indústria do turismo (formada por companhias aéreas, empresas de ônibus, taxistas, hotéis, pousadas, resorts, albergues, museus, restaurantes, cafés, parques, guias turísticos, companhias de viagem, casas de câmbio etc.) ficou simplesmente às moscas. Em um cenário de grande melancolia e desolação, o que os assíduos viajantes poderiam fazer, hein?! A maioria teve que cruzar os braços e esperar a volta da normalidade.
Nesse cenário caótico, Roberto Marcio, um andarilho inveterado, teve uma ideia muito melhor. O tempo de confinamento obrigatório serviu para ele, um professor mineiro apaixonado por conhecer culturas, pessoas e lugares, finalizar um antigo projeto editorial: a publicação de um livro sobre viagens. Nesta obra, Roberto Marcio mostra como suas andanças pelo Brasil e pelo mundo o ajudaram a descobrir sua identidade e a amadurecer pessoal e profissionalmente. Assim, o professor, que também trabalha em vários campos do mercado editorial, lançou-se na literatura agora no papel de escritor.
O resultado dessa empreitada é “Andante das Gerais” (Páginas Editora), uma coletânea de crônicas sobre a paixão por viajar e os aprendizados obtidos pelo conhecimento de povos, regiões e pessoas diferentes. Li esta obra no último final de semana e fiquei encantado com sua proposta. Além de apresentar as particularidades dos locais visitados, Roberto Marcio vai muito além do que um guia turístico informaria ao público. Ele constrói uma verdadeira ode ao ato de cair na estrada. Em um texto franco, objetivo, divertido e original, o autor mineiro apresenta os aprendizados, as amizades, as reflexões, os choques culturais, os perrengues e o amadurecimento que duas décadas de viagens sistemáticas pelo Brasil e pelo mundo lhe propiciaram.
“Andante das Gerais” foi lançado no segundo semestre do ano passado e é o primeiro livro de Roberto Marcio. Curiosamente, além de professor de idiomas, o autor também atua como revisor, tradutor e redator. Agora, ele completou o ciclo no mercado editorial ao se tornar autor. Apesar da estreia na nova posição, não espere encontrar aqui um texto vacilante ou imaturo. “Andante das Gerais” possui uma proposta ousada, uma narrativa gostosa e um tom de voz firme e marcante, elementos poucas vezes encontrados em um livro inaugural. Pelo visto, Roberto Marcio tardou para migrar para a função autoral, mas o fez já com grande maturidade literária.
Nascido em Nova Lima, cidade da região metropolitana de Belo Horizonte, Roberto Marcio mora há muitos anos na capital mineira. Formado em Letras e com mestrado em Educação Tecnológica, o escritor já lecionou em escolas públicas, faculdades e escolas de idiomas, além de ter trabalhado como freelancer para várias empresas e editoras. Engajado politicamente e atuante nas redes sociais, principalmente no Facebook, Roberto Marcio escancara em seus posts as maluquices, as arbitrariedades e as incongruências dos (des)governos que seus compatriotas insistem em alçar ao poder na esfera federal.
Apaixonado por literatura, cinema e música, bastante introspectivo, extremamente educado no trato diário e com um texto muito sagaz, o escritor mineiro me lembra os paulistas Paulo Sousa, autor de “A Peste das Batatas” (Pomelo), e Carolina Zuppo Abed, autora de “Passatempoemas – Desafios Verbo-lógico-matemáticos” (Quelônio) e “Tecle 2 Para Esquecer” (Patuá). Afinal, esse trio de artistas é do tipo que não sabemos o que é melhor: se a leitura atenta de suas obras ou a conversa descontraída em uma mesa de bar. As duas experiências são igualmente ricas e surpreendentes.
“Andante das Gerais” possui 200 páginas e foi publicado pela Páginas Editora, uma empresa belo-horizontina voltada para a autopublicação e com cerca de cinco anos de existência. Li este título em um único dia. Comecei a leitura no domingo passado de manhãzinha e no final da tarde já tinha chegado à sua última página. Devo ter investido cerca de cinco horas para percorrer integralmente seu conteúdo – fiz, obviamente, duas ou três pausas no meio do caminho.
Esta coletânea de crônicas está dividida basicamente em cinco partes. Na primeira, temos as introduções de praxe. No “Prefácio”, Mônica Baêta Neves Pereira Diniz revela a proposta do livro de Roberto Marcio e comenta sua experiência de leitura. Na “Apresentação”, o próprio autor explica a ideia de sua obra a partir dos múltiplos significados e significações do termo viagem.
Na seção seguinte, chamada de “Parte 1 – Recordando...”, adentramos efetivamente na coletânea de crônicas. Aqui, Roberto Marcio expõe as memórias aleatórias (ou não) de um viajante compulsivo. De forma inteligente, o escritor apresenta-se para o leitor e revela como surgiu sua paixão por conhecer lugares, pessoas e culturas distantes. As três crônicas dessa parte são: “Souvenirs”, “Refúgios” e “Memórias e Inspirações”.
Em “Souvenirs”, Roberto Marcio comenta o valor sentimental que os objetos dispostos na estante de sua casa carregam para ele. Cada item ali é uma espécie de tatuagem na alma, que transmite vivências, aprendizados e memórias dos lugares trafegados e das pessoas conhecidas mundão à fora. Em “Refúgios”, ficamos sabendo que as viagens ajudaram o autor, então um menino tímido, solitário e introspectivo do interior de Minas Gerais, a descobrir sua verdadeira identidade. O lançar-se pelas estradas também contribuiu para seu amadurecimento pessoal e para seu crescimento profissional e espiritual. E em “Memórias e Inspirações”, assistimos aos sonhos do garoto nas décadas de 1970 e 1980. No interior de Minas, tudo era motivo para ele sonhar com as viagens: postais, cartas, músicas, livros de geografia, romances, filmes, músicas, novas amizades com pessoas de locais distantes e anúncios de jornais e revistas.
Na “Parte 2 – Pé na Estrada...”, Roberto Marcio começa a relatar suas experiências de viagem propriamente ditas. Essa seção possui 30 crônicas: “Minas do Coração e Vizinhos (Minas Gerais e o Sudeste Brasileiro)”; “Cariocas pelo Mundo - A História de Antônio”; “Sonhos Americanos (Estados Unidos)”; “(Outros) Mineiros pelo Mundo - A História de Fátima”; “Esquecendo uma Perda (Canadá)”; “(Outros) Mineiros pelo Mundo - A História de Júlia”; “Nórdico Frio (Suécia & Holanda)”; “(Outros) Mineiros pelo Mundo - A História de Adriane”; “Arte, História e Grifes (França)”; “(Outros) Mineiros pelo Mundo - A História de Rosana”; “Congresso, Vinho e Chimarrão (Sul do Brasil)”; “Gaúchos pelo Mundo - A História de Gisele”; “Na Terra da Rainha (Reino Unido)”; “(Outros) Mineiros pelo Mundo - A História de Higor”; “Experiência Luso-brasileira (Portugal)”; “(Outros) Mineiros pelo Mundo - A História de Letícia”; “Do Outro Lado do Mundo (Turquia, Grécia, Tailândia, Singapura & Malásia)”; “(Outros) Mineiros pelo Mundo - A História de Vera”; “Pubs, U2 e Oscar Wilde (Irlanda)”; “(Outros) Mineiros pelo Mundo - A História de Cláudio”; “Em Pleno Safári (África do Sul)”; “(Outros) Mineiros pelo Mundo - A História de Vanessa”; “Mergulho em 7 Milênios (Malta, Alemanha & Itália)”; “(Outros) Mineiros pelo Mundo - A História de Marlon”; “Mochilando na Terra da Macaxeira (Nordeste do Brasil)”; “Baianos pelo Mundo - A História de Jorge”; “Na América Espanhola (Chile, Colômbia, Uruguai, Panamá & México)”; “(Outros) Mineiros pelo Mundo - A História de Luciano”; “Em 10 Dias, as 1001 Noites (Marrocos)”; e “(Outros) Mineiros pelo Mundo - A História de Wágner”.
Interessante notar que nessa seção, Roberto Marcio mescla suas experiências de viagem com o relato de pessoas (normalmente mineiras e desconhecidas) que ele trombou nessas incursões mundo à fora. Ao mesmo tempo em que apresenta o que aprendeu em suas andanças pelo Brasil e no exterior, o autor reforça sua paixão por Minas Gerais (a mineiridade) e pela literatura e pela música.
Na “Parte 3 – Refletindo...”, assistimos a 9 crônicas em tom conclusivo-reflexivo. Afinal, o que Roberto Marcio extraiu de quase duas décadas perambulando por aí? Ele responde diretamente a essa questão que os leitores intuitivamente formulam. Além disso, temos aqui mais algumas dicas práticas para os viajantes em início de jornada. Esses textos são: “Chegadas e Partidas”; “Aparências Enganam”; “Pé na Estrada e Tempo de Vida”; “Turista Profissional”; “Bagagem de Volta”; “A Máquina do Tempo”; “A Mais Longa Jornada”; “Proibido Viajar” e “Epílogo”.
A quinta e última seção de “Andante das Gerais” é uma espécie de anexo fotográfico e linguístico. Além de apresentar imagens de suas viagens (um pequeno álbum de fotografias, algo inerente a toda boa viagem), Roberto Marcio brinda o leitor com algumas dicas práticas de como se comunicar no Brasil (glossário com variações idiomáticas do português) e no mundo (termos mais comuns e essenciais do inglês). Nessa última parte, o autor entrega-se ao papel de turista e de professor de idiomas.
A questão mais legal de “Andante das Gerais” é que ele é um livro de crônicas de viagem que vai muito além da descrição dos lugares visitados. O ponto alto desta obra está justamente na experiência, no conhecimento e no amadurecimento obtidos pelo autor-viajante e em suas reflexões sobre a paixão por viajar. Exatamente por isso, mesmo o leitor que não gosta de cair na estrada (será que tem alguém que não gosta de viajar?!) poderá se interessar por essa leitura.
Adorei também o texto e a linguagem utilizados por Roberto Marcio em “Andante das Gerais”. As crônicas desta coletânea são quase sempre leves, objetivas, sinceras e informais. O tom é quase de um diálogo aberto entre o autor e o leitor. Minha impressão é que eu estava na sala da casa do escritor mineiro ouvindo suas histórias (enquanto degustava um bom café e apreciava alguns pães de queijo). Parte da força narrativa deste título está no clima de intimidade criado desde a primeira página. Mesmo não conhecendo Roberto, você se sente próximo e amigo dele.
Ao ler este livro, admito que fiquei me perguntando: por que não temos mais tantas coletâneas de crônicas como essa à nossa disposição?! Infelizmente, esse tipo de gênero narrativo perdeu muito destaque nos primeiros anos do século XXI. Minha teoria é que a ascensão das redes sociais e o declínio do jornalismo impresso diário são parte desse processo de esquecimento das crônicas. Escrevo isso com tristeza no coração porque adoro este tipo de texto – não à toa, sou fã dos trabalhos de Rubem Braga (o melhor de todos!), Clarice Lispector (a melhor de todas!), Luís Fernando Veríssimo (o mais engraçado), Fernando Sabino, Ignácio de Loyola Brandão, Lya Luft, Fabrício Corsaletti (o melhor da nova geração), Tati Bernardes (a melhor da nova geração), entre outros.
Fazendo jus à essa tradição, Roberto Marcio é um cronista de mão-cheia. Ele precisa produzir outros livros nessa linha (e quem sabe títulos ficcionais, hein?). Se estivéssemos nas décadas de 1980 e 1990, na certa bons diretores de redação o convidariam para escrever uma coluna sobre turismo em jornais e revistas. Como estamos no século XXI, a vontade é de acompanhar o autor-viajante por um blog de turismo (será que ele já pensou nisso?!).
Um dos pontos positivos de “Andante das Gerais” está em sua organização/estrutura textual. A divisão das partes do livro facilita tanto a aproximação do leitor com o autor (“Parte 1 – Recordando...” é fundamental para isso) quanto ajuda na compreensão do assunto abordado (agora estou falando da “Parte 2 – Pé na Estrada...”). Assim, ficamos próximos de Roberto Marcio desde as primeiras páginas e nos sentimos convidados para acompanhá-lo em suas viagens. Incrível isso! Para completar, cada viagem é delimitada por uma temática, o que potencializa sua importância e as experiências adquiridas. A cereja no bolo é a parte final, com reflexões ora filosóficas e sentimentais (“Parte 3 – Refletindo...”) ora práticas e de sobrevivência fora de casa (“Anexos”).
Confesso que adorei a postura do autor. Roberto Marcio apresenta suas experiências com humildade e franqueza. Ele não esconde os perrengues, por exemplo financeiros, operacionais e de relacionamentos, que passou nas viagens. Isso é ótimo porque a maioria dos leitores vai se identificar com ele (ele é gente como a gente!). Sempre que assistimos aos problemas do autor, o livro ganha em profundidade e relevância. Em uma comparação com os apresentadores de programas de viagem, Roberto Marcio está mais para uma versão masculina de Titi Müller (engraçada e desbocada) do que para Mel Fronckowiak (sempre linda e elegante). Ele está mais próximo do casal do Num Pulo, os também mineiros Paula Albino e Daniel Negreiros (leves, naturais e sensatos) do que do casal Sonho e Destino, Fernando e Gisella De Borthole (metidos, artificiais e elitistas).
Nota-se que a personalidade do autor ajuda nesse sentido. Roberto Marcio é corajoso para encarar sozinho alguns desafios realmente complicados e possui certa cara de pau de viajar mesmo com pouco dinheiro no bolso. Não à toa, ele precisa muitas vezes ficar alojado onde dá (coitada da amiga dele de Boston!) e precisa fazer algumas loucuras financeiras (atire a primeira pedra quem nunca fez maluquices para concretizar aquele sonho de viagem!). Incrível ver essas coisas nas páginas da publicação! Nesse aspecto, Roberto Marcio quebra vários paradigmas das viagens (principalmente internacionais) e se torna um ótimo exemplo (por mais que ele refute essa posição) para aqueles que aspiram viajar.
Adorei também a intertextualidade literária e musical de “Andante das Gerais”. Roberto Marcio prova que é fanático por essas duas modalidades artísticas ao citá-las o tempo inteiro em seu livro. Assim, nos deparamos com referências a Herman Melville, Goethe, Guimarães Rosa, Edgar Allan Poe, Airton Ortiz, Lao-Tsé, Monteiro Lobato, Cecília Meirelles, Jorge Luis Borges, Victor Hugo, Henry Miller, Érico Veríssimo, Carlos Eduardo Back, Oscar Wilde, Bráulio Bessa, Jorge Amado, Pablo Neruda, Gabriel García Márquez, Fernando Pessoa, Albert Camus, Santo Agostinho e Mário Quintana. E encontramos muitos trechos em que são citados Beatles, Queen, ABBA, Carpenters, Diana Ross, Michael Jackson, Marcus Viana, Tom Jobim, Braguinha, Roxette, Elis Regina, Michel Teló, U2 e Raul Seixas. É elogiável a forma como Roberto Marcio amarra os três elementos principais do seu livro: viagem, literatura e música.
Por falar nisso, chamou minha atenção a capa de “Andante das Gerais”. A foto da estante com livros e CDs estampada na abertura do livro de Roberto Marcio é muito parecida à imagem que abria o Bonas Histórias nos primeiros anos do blog (algo que só meia dúzia de leitores mais antigos vai se lembrar). Juro que dei um pulo para trás quando vi a capa desta obra. Na hora, pensei: o que a imagem antiga do blog (e da minha antiga estante de livros) está fazendo aqui?! Porém, um segundo olhar me mostrou que não era a mesma foto – apenas eram parecidas. Ou seja, eu não tinha aberto a coletânea de crônicas de Roberto Marcio e já tinha gostado dela.
Se por um lado lançar um livro como esse no meio da pandemia pode ser questionável (afinal, ele fala de viagens em uma época em que a maioria dos viajantes está em casa), por outro lado ajuda a matar as saudades dos bons tempos. Confesso que fiquei com vontade de viajar. “Andante das Gerais” é um ótimo incentivo para planejarmos nossas próximas viagens quando tudo voltar ao normal. Por esse aspecto, Roberto Marcio motiva o viajante inveterado que mora dentro da gente a não desistir dos seus sonhos. Gostei muito disso.
Achei espetacular a ideia de vincular o relato de viagens e das experiências de viajante do autor com a mineiridade. A apresentação de pequenas biografias de mineiros desconhecidos espalhados pelo mundo também enriqueceu a leitura e fez um belo contraponto à narração em primeira pessoa. Por isso, em nenhum momento o texto caiu na monotonia – um risco sempre iminente neste tipo de obra.
A consequência de se falar da mineiridade enquanto se mostra as viagens do autor pelo Brasil e pelo planeta é tratar da velha contradição: a vontade de ganhar o mundo e a necessidade de ficar preso à terra natal. Roberto Marcio é poético ao expor a dicotomia: a paixão pelo diferente/distante e o amor pela terra natal. Se ele quer sempre fazer descobertas fora de Minas Gerais, ele também quer voltar para casa no final da viagem. É muito legal notar esse processo de constante vai-e-volta. Seria, então, esse o motivo dele admirar os conterrâneos que acabaram passando vários anos no exterior? Pode ser.
Gostei do contraste entre o professor sério e dedicado à educação dos alunos e o texto engraçado e despojado da versão à paisana de Roberto Marcio. À medida que os capítulos vão avançando, o autor vai ficando mais à vontade para contar episódios mais íntimos e curiosos de sua biografia. Adorei o seu tipo de humor – inteligente e sutil. Minha impressão é que aos poucos o autor foi tirando a roupagem de professor (sério, comportado, formal e preocupado com sua imagem) e foi vestindo o traje de aventureiro que gosta de aproveitar a vida (independentemente do que seus alunos vão pensar e dizer sobre isso). No final do livro, ele já está chegando bêbado em casa em plena madrugada, para desespero dos vizinhos e dos moradores da casa onde está hospedado. Impossível não gostar de alguém assim! Por mais intensas que sejam as diferenças entre Roberto e Jack Kerouac (sim, eles têm personalidades muito distintas mesmo!), admito que nesses momentos me recordei do saudoso e amalucado escritor beat (talvez o viajante mais famoso do século XX).
As dicas dadas em “Andante das Gerais” aos viajantes, principalmente aos de primeira viagem, são excelentes. Roberto Marcio fala um pouco de tudo: melancolia de deixar os entes queridos no aeroporto, preocupação de ir e deixar os problemas não resolvidos para trás, perrengues com bagagens extraviadas, episódios de violência ou acidentes no exterior, escolhas equivocadas de hospedagem etc. É difícil não concordar com seus argumentos e seus conselhos. E no desfecho, ele ainda oferece um pequeno guia de sobrevivência para o futuro/novo viajante.
A ideia de colocar fotos do autor na parte final da obra foi ótima. Depois de quase duas centenas de páginas, ver a materialização física das viagens de Roberto Marcio é prazeroso para o leitor. Tive a sensação de estar acompanhando, nesse momento, as imagens de um amigo (de certa maneira, Roberto Marcio se torna o amigo próximo de cada leitor ao final da experiência de leitura) recém-chegado de suas andanças.
Exatamente pela bela exposição da mineiridade do autor e pelo acurado relato de seus conterrâneos, achei desnecessários os capítulos em que personalidades famosas e não mineiras foram apresentadas. Falar de Jorge Amado, Tom Jobim e Gisele Bündchen, por exemplo, destoou do restante do conteúdo de “Andante das Gerais”. E, pior ainda, esses trechos não trouxeram qualquer contribuição ou novidade para os leitores. Na certa, valia mais a pena usar esses capítulos para comentar a vida de outros mineiros que estão espalhados por esse Brasilzão ou pelo mundo à fora e que são desconhecidos pela maioria dos brasileiros.
Talvez o principal ponto negativo do livro esteja nas arestas deixadas na “Parte 1 – Recordando...”. Os três capítulos dessa seção inicial são realmente ótimos para contextualizar o leitor. Ficamos muito próximos do autor (algo fundamental para seguirmos na leitura e um aspecto já comentado nesse post). Roberto Marcio mostra-se um menino do interior de Minas Gerais tímido, introspectivo e com problemas de relacionamento. Se por um lado ele é sincero ao expor seus problemas familiares e características pessoais, há algo oculto nesse momento que o escritor não quis expor. Por exemplo, quais foram os motivos que o levaram a brigar com o pai na infância e na adolescência? Isso estaria relacionado à sua grande introspecção? E por que a dificuldade de fazer amizades na escola?
É preciso respeitar a decisão de Roberto Marcio de não aprofundar essas questões mais íntimas (até porque não é sobre isso o que sua obra se propõe a abordar). Porém, é inegável que essa omissão contrasta com a sinceridade e a postura franca das demais partes de “Andante das Gerais”. Minha sensação é que esses temas mal explicados (na verdade, não explicados) do passado do autor contenham alguns aspectos pessoais importantes que explicariam boa parte das questões levantadas mais tarde na coletânea de crônicas. Curiosamente, para um leitor mais atento e experiente não é difícil desvendar esses segredos ocultos.
O espírito conservador do interior de Minas Gerais (que conheço bem – apesar de ser paulistano e viver em São Paulo, morei em Varginha-MG por um tempo) é outro ponto que afetou de alguma maneira as narrativas de “Andantes das Gerais”. Por exemplo, em relação à homossexualidade masculina, há certo pudor em apresentá-la mais explicitamente. Como um paulistano que tem muitos amigos homossexuais, admito que não entendi essa necessidade de deixar tudo embaixo dos panos. Contudo, compreendo que nem todo lugar aspira ares de liberdade sexual como na minha cidade (que, por sua vez, em comparação com outras metrópoles mundiais, não é tão libertária assim).
O fato é que na minha leitura tive a impressão de que Leif e Gustavo formavam um casal e que Higor era homossexual ou bissexual (ele namorava “pessoas” da Irlanda). Pareceu-me que os relacionamentos homoafetivos acabaram ficando subentendidos. O único ponto em que os gays são apresentados abertamente foi na história do Cláudio e do namorado irlandês. Ou seja, senti um ar de um livro que não quis sair do armário. É preciso respeitar essa decisão do autor de não levantar outras bandeiras além da paixão pelas viagens (até porque a alternativa encontrada em nada atrapalhou a leitura e a experiência literária).
Também achei curiosas as partes em que Roberto Marcio brigou com as donas das casas em que ficou hospedado no Canadá e na Irlanda. Nota-se certa infantilidade e até certo egoísmo do autor (pontos falhos de sua personalidade que nos fazem ficar mais próximos dele – o cronista mineiro é como todos nós, falível e imperfeito). Mesmo aos 40 anos, ele se comporta como um adolescente mimado e birrento. O cara quase põe fogo na casa da mulher e fica ofendidinho porque ela falou mal dele para a vizinha. Ele chega bêbado tarde da noite, faz barulho, dispara o alarme da casa e acorda os vizinhos. E, acredite, na manhã seguinte, o rapaz se sentiu humilhado porque brigaram com ele.
Sinceramente, não vi nessas descrições problemas sérios de homestay (pelo menos não foi isso o que mais chamou minha atenção no texto). Quem já viajou para o exterior por essa modalidade de intercâmbio sabe que há episódios muito mais graves e verdadeiramente delicados, que poderiam ter sido citados pelo autor (mesmo que não vivenciados na prática). Aos meus olhos, as duas histórias de “Andante das Gerais” escolhidas para representar as condutas impertinentes dos anfitriões locais pareceram mais comportamentos temerários do visitante estrangeiro.
Em suma, “Andante das Gerais” é um belo livro. Se lembrarmos que essa obra é de um autor estreante, os méritos de Roberto Marcio são ainda mais evidentes. O escritor mineiro tem um texto elegante e gostoso. Nota-se que ele tem muito o que nos contar tanto na área da não ficção (crônicas e ensaios) quanto no campo ficcional (romances, novelas e contos). Por isso, não me surpreenderei se encontrar, nos próximos anos, novos títulos de sua autoria.
No caso de “Andante das Gerais”, trata-se de uma leitura recomendada para quem é apaixonado por viagens e para aqueles que gostam de mergulhar em textos não ficcionais originais, sensíveis e instigantes. O único efeito colateral de “Andante das Gerais” é que ele dá uma vontade ainda maior de viajar. Não se surpreenda se você, ao fechar o livro, já começar a planejar seu próximo itinerário. Foi o que aconteceu comigo.
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