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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 43 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

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Livros: Maria Quitéria, A Soldada que Conquistou o Império - O romance histórico de Rosa Symanski

Publicada em 2021, a narrativa sobre a primeira mulher a ingressar no Exército brasileiro representou a estreia da jornalista gaúcha na ficção literária.

Maria Quitéria - A Soldada que Conquistou o Império é o romance histórico de Rosa Symanski

No final de semana passado, li um livro encantador. “Maria Quitéria – A Soldada que Conquistou o Império” (Poligrafia) é o romance histórico de Rosa Symanski que apresenta os dramas sentimentais, familiares e sociais de uma jovem muuuuuuuito à frente de seu tempo. O mais legal é que essa trama foi desenvolvida a partir de personagens e episódios reais de dois séculos atrás. Ou seja, temos aqui uma mistura bem azeitada de elementos verídicos com aspectos ficcionais. Nascida na Bahia em 1792, Maria Quitéria de Jesus Medeiros, a protagonista da obra, foi a primeira mulher a ingressar no Exército brasileiro e lutou nas Guerras de Independência de nosso país. Não à toa, foi condecorada por D. Pedro I e se tornou uma das primeiras heroínas nacionais. Quem gosta de História (ainda mais em ano de celebração do bicentenário da Independência do Brasil, né?) e aprecia a boa Literatura (acho que a maioria do público do Bonas Histórias) entenderá, na certa, meu fascínio por esse título. Gostei tanto dele que sentia a necessidade de produzir esse post para a coluna Livros – Crítica Literária.


Lançado em março de 2021, “Maria Quitéria – A Soldada que Conquistou o Império” é o romance de estreia da jornalista Rosa Symanski. A ideia para a criação dessa publicação nasceu tão logo Rosa iniciou as pesquisas sobre a vida de Maria Quitéria de Jesus Medeiros. Ao descortinar uma figura ímpar do século XIX e um possível estandarte para os movimentos feministas da atualidade, a autora vislumbrou a transposição da trajetória pessoal de Maria Quitéria para as páginas dos livros. Curiosamente, ao invés de partir para a confecção de uma biografia (caminho que a maioria dos jornalistas trilharia), Rosa optou por percorrer as delicadas curvas do universo literário. Essa decisão se mostrou acertadíssima. Mesmo com um material bibliográfico rico e extenso em mãos, fruto de anos e anos de pesquisa, Rosa não titubeou em mergulhar, quando necessário, na ficção. O resultado é simplesmente sensacional!


Com quase três décadas de atuação profissional no Jornalismo, Rosa Symanski tem passagens por importantes veículos de comunicação: Jornal do Brasil, Gazeta Mercantil, Agência Estado, Agência Reuters, entre outros. Nascida no Rio Grande do Sul, a escritora está radicada há anos na cidade de São Paulo. Ela é especialista nas editorias de Economia e Finanças e se aperfeiçoou na pesquisa de grandes personagens da nossa cultura.


O romance “Maria Quitéria” levou aproximadamente dois anos e meio para ganhar a forma que conhecemos agora. Esse período contempla tanto a pesquisa quanto a produção textual realizadas pela autora. Se Rosa não tinha experiência propriamente dita na Escrita Criativa, não lhe faltaram bagagem cultural, repertório literário, habilidade ficcional nem dedicação para aperfeiçoar a história da heroína baiana. Apaixonada por literatura e cinema desde criança (ou desde piá, como dizem lá nos Pampas), a escritora gaúcha conseguiu desenvolver, nesse livro, um texto gostoso, uma narrativa cativante e uma trama envolvente. Duvido que alguém que leia esse título e que não conheça Rosa diga que ele é fruto do trabalho de uma romancista novata. Novata sim, mas extremamente talentosa e com uma linha editorial muito madura.

Rosa Symanski é jornalista e escritora gaúcha. Rosa é autora do romance histórico Maria Quitéria – A Soldada que Conquistou o Império, sua obra ficcional de estreia.

“Maria Quitéria – A Soldada que Conquistou o Império” saiu pela Poligrafia, uma jovem e pequena editora localizada na Grande São Paulo. Fundada em 2005 para produzir publicações de Negócios e Finanças, a Poligrafia Editora ampliou o leque de atuação, a partir de 2014, e passou a desenvolver livros ficcionais e não ficcionais. Sua linha editorial é atualmente bem variada. Indiscutivelmente, esse romance histórico de Rosa Symanski foi um dos belos acertos de 2021 da companhia.


Conheci “Maria Quitéria” (estou falando aqui da obra e não da figura histórica, tá?) no finalzinho do ano passado. De maneira muito cortês, Rosa me enviou, nos últimos dias de dezembro, um exemplar de seu livro. Acabei recebendo-o no comecinho de janeiro e o coloquei na lista de próximas leituras. Porém, só consegui lê-lo com a atenção merecida no último domingo.


Confesso que já sabia algumas particularidades da biografia da protagonista do romance. Em janeiro ou fevereiro de 2021, se eu não estiver enganado, a revista Aventuras na História, um dos títulos que leio regularmente, trouxe uma matéria de capa intitulada “Mulheres na Independência”. A reportagem apresentava algumas personalidades femininas de destaque no processo de Independência do Brasil, mas que acabavam invariavelmente aparecendo apenas nos rodapés dos livros de História. Além de Joana Angélica (citada no enredo de “Maria Quitéria – A Soldada que Conquistou o Império”), Maria Felipa e Maria Leopoldina (outra figura que aparece na obra ficcional de Rosa), o periódico descreveu os principais feitos de Maria Quitéria. Foi aí que a conheci.


Talvez por certo pé atrás que sempre tive com os militares verde-amarelos, não dei muita bola, naquele momento, para a Patrona do Quadro Complementar de Oficiais do Exército Brasileiro. Sim, esse é o título que Maria Quitéria conquistou postumamente. O termo pé atrás, usado na primeira frase desse parágrafo, é obviamente um eufemismo, se é que você me entende?! Admito agora, um tanto envergonhado, que estava redondamente enganado em pré-julgar Maria Quitéria pela sua relação com os milicos. Se estivesse na minha pele, Raul Seixas cantaria: “Mas confesso abestalhado que eu estou decepcionado”. Porque Maria Quitéria é uma personagem única e merece sim nossa admiração.

Livro Maria Quitéria – A Soldada que Conquistou o Império de Rosa Symanski

Depois da leitura do romance de Rosa Symanski, acabei valorizando mais a postura, as condutas, o estilo de vida e a visão de mundo dessa baiana arretada da peste do que propriamente seus feitos nas Forças Armadas. É verdade que o alistamento como homem, a responsabilidade por treinar um grupo de soldados novatos e a liderança do primeiro agrupamento feminino da corporação são episódios marcantes de sua biografia. Todavia, eles não conseguem dimensionar tudo o que Maria Quitéria foi e fez e não fazem justiça à representatividade que ela alcançou nos dias de hoje.


O enredo de “Maria Quitéria – A Soldada que Conquistou o Império” começa em meados de 1820. Nesse período, vale a pena lembrar, Brasil e Portugal passavam por intensos conflitos diplomáticos. Os lusitanos exigiam, após o fim da invasão napoleônica ao seu território, o retorno da família real para a Europa. Para quem se esqueceu dessa passagem histórica, D. João e a corte lisboeta tinham fugido, em 1808, para o Rio de Janeiro quando Napoleão invadiu Portugal. Já os brasileiros não queriam mais voltar para a condição de simples colônia do Reino português após a derrotada definitiva de Bonaparte. Um cheirinho de guerra e/ou de cisão pairava na parte lusófona do Oceano Atlântico.


Em meio à instabilidade política no finalzinho da segunda década do século XIX, Maria Quitéria de Jesus Medeiros vivia tranquilamente na Fazenda da Serra Agulha, no Recôncavo Baiano. O dia a dia da jovem morena de 19 anos era muito prazeroso. A moça de traços indígenas marcantes e bonitos podia cavalgar livremente pela propriedade do pai, Gonçalo Alves de Almeida. Ela caçava, tomava banho de cachoeira, visitava a melhor amiga, Maria de Lourdes, sempre que quisesse, dançava com os escravos na senzala, bebericava leite diretamente do curral. Sua rotina era livre e mais parecida com a de um rapaz do que de uma dama burguesa do Período Colonial.


Contudo, a paz de espírito de Maria Quitéria sofreu o primeiro abalo com a chegada de Maria Rosa à Fazenda da Serra Agulha. Maria Rosa se casou com Gonçalo Alves de Almeida após a segunda viuvez do pai de Maria Quitéria. Diferente da mãe da moça e da segunda esposa de Gonçalo, a nova madrasta da protagonista do romance era maldosa, vingativa e invejosa. Indignada com o estilo de vida da enteada, Maria Rosa fazia de tudo para tornar o dia a dia da bela Maria Quitéria um horror. Mesmo assim, a jovem sempre conseguia escapar ilesa das artimanhas da vilã.

Livro Maria Quitéria – A Soldada que Conquistou o Império de Rosa Symanski

O que Maria Quitéria não conseguiu foi fugir da paixão fulminante por Antônio Gomes. Ela conheceu o estudante de Direito em um de seus passeios pelas cachoeiras do Sertão. A relação dos dois avançou rapidamente e em questão de dias o casal vivia um tórrido namoro. Os três meses de férias de Antônio Gomes no Recôncavo Baiano foram passados quase que integralmente nos braços da morena. Se Luan Santana tivesse conhecido essa história e se colocado no papel de Antônio, na certa teria cantado: “Se eu não conseguir dormir/Não é cafeína/ É culpa da morena/ Do beijo da morena”. O espírito livre, progressivo, carinhoso, caridoso e sem preconceitos de Maria Quitéria permitiu que ela desfrutasse intensamente todos os prazeres da paixão com o jovem soteropolitano.


Os tempos de alegria de Maria Quitéria e Antônio terminaram com o fim das férias do rapaz. Ele precisou regressar para Coimbra para concluir o último ano do curso de Direito. Contudo, Antônio prometeu que, ao se formar, voltaria para buscar a amada. Ele queria se casar com Maria Quitéria e, quem sabe, levá-la para viver em Salvador. O problema é que ao retornar para a capital baiana, Antônio foi desautorizado pelo pai a prosseguir com aquele relacionamento amoroso. O patriarca dos Gomes não aceitava o namoro do filho com a sertaneja e queria que Antônio se casasse com Camila Araújo, filha de um rico figurão de Salvador. Inclusive, o matrimônio de Antônio e Camila já havia sido previamente acertado há anos pelos seus familiares, quando eles eram adolescentes. A união dos Gomes com os Araújo seria um negócio vantajoso para os dois clãs.


O que Antônio deveria fazer nessa situação, hein? Ele poderia brigar com o pai para se casar com Maria Quitéria? Ou precisaria aceitar os desígnios familiares e se unir com Camila?! O que Maria Quitéria, com uma postura sempre altiva, amorosa e independente, faria se ouvisse uma recusa do homem que tanto ama? Esses são os mistérios que essa obra nos reserva.


“Maria Quitéria – A Soldada que Conquistou o Império” é um romance de tamanho mediano. Ele possui 258 páginas. Seu conteúdo está dividido em 15 capítulos (14 numerados e o epílogo). Há ainda o prefácio produzido por Gabriella Esmeralda Aquino Silva, descendente de Maria Quitéria (não se menciona qual seria o grau exato de parentesco entre elas), e um anexo com as referências bibliográficas. Li o livro de Rosa Symanski em um único dia. Levei pouco mais de seis horas para ir da primeira à última página de “Maria Quitéria” no domingo. Quem não é chegadinho a longas sessões de leitura como eu, saiba que dá para ler tranquilamente esse livro em dois dias ou mesmo em três noites consecutivas.

Livro Maria Quitéria – A Soldada que Conquistou o Império de Rosa Symanski

No que se refere à análise literária em si, o que mais gostei nessa obra foi o estilo narrativo utilizado por Rosa. “Maria Quitéria” emula as principais características dos romances românticos, o tipo de literatura praticada na época em que essa trama se passa. Como consequência, temos a potencialização da contextualização histórica do livro. Afinal, nada melhor do que um texto com cara de século XIX para um enredo ambientado no século XIX, né? Adorei isso!


E o que seria exatamente esses elementos trazidos do Romantismo, Ricardo? Boa pergunta, caro(a) leitor(a) do Bonas Histórias. Temos, por exemplo, muitas personagens planas (principalmente a heroína e a vilã), narrador onipresente e onisciente que não fica limitado às ações da protagonista (não tínhamos Teoria Literária nem estudo do Foco Narrativo no século XIX), forte drama sentimental, desfecho trágico, forte maniqueísmo e discurso com pouquíssima oralidade (apesar de uma ou outra tentativa nesse sentido, como o uso do vocábulo “vosmicê” e da expressão “contrair matrimônio” em “Maria Quitéria”). A sensação é de estarmos mesmo lendo uma narrativa oitocentista (só que com um linguajar contemporâneo).


Normalmente algumas características românticas (o termo romântico aqui é usado para designar a literatura do Romancismo, tá?) são vistas negativamente pelos leitores e pelos críticos literários de hoje. Queiramos ou não, personagens redondas são mais interessantes do que personagens planas; narrador onipresente e onisciente não é usado há muito tempo pela alta literatura; discurso com pouca oralidade é visto como artificial; e maniqueísmo acentuado atrapalha a construção de tramas mais plurais e polissêmicas. Entretanto, em “Maria Quitéria – A Soldada que Conquistou o Império”, esse pacote narrativo é uma delícia, principalmente para quem gosta da história da literatura e para quem entende que o objetivo era recriar o tipo de texto ficcional que tínhamos há 200 anos.


O interessante é que Rosa Symanski conseguiu, em muitos momentos, resolver alguns dos sérios problemas das tramas do século XIX. Uma das coisas que eu odeio nos romances de José de Alencar, Maria Firmina dos Reis, Joaquim Manuel de Azevedo, Júlia Lopes de Almeida e Camilo Castelo Branco é que as personagens se apaixonam em um estalar de dedos. Você já reparou nisso? Basta um segundo, uma olhadela, um gesto, uma aparição, uma fala e boom: os pombinhos já se amam para todo o sempre (mesmo não se conhecendo). Aos olhos dos leitores contemporâneos, o amor do Romantismo parece artificial, forçado e até mesmo infantil. E em “Maria Quitéria”, não temos essa falha narrativa. A autora conseguiu, com muita habilidade e maturidade artística, mostrar a intensidade do amor de Maria Quitéria e Antônio Gomes de um jeito convincente. Em nenhum momento do livro, temos a impressão de exagero ou de artificialidade na relação do casal de protagonistas. Pelo contrário, a sensação é de um amor profundo, genuíno, natural e, principalmente, verossímil.

Livro Maria Quitéria – A Soldada que Conquistou o Império de Rosa Symanski

Gostei também do ritmo da narrativa e da fluidez do texto de “Maria Quitéria – A Soldada que Conquistou o Império”. Temos aqui uma trama realmente deliciosa, que chega a empolgar em vários momentos.


Outro aspecto positivo foi a inserção de Maria Rosa como a grande vilã da trama. Sem esse antagonismo, talvez a narrativa não tivesse ficado tão saborosa. A terceira esposa de Gonçalo Alves de Almeida oferece um conflito até mesmo mais intenso ao estilo de vida da enteada do que (cuidado, aí vai um pequeno spoiler!) o casamento de Antônio Gomes com Camila Araújo. De certa maneira, Maria Rosa é mais do que a mulher invejosa, maldosa, manipuladora e instável emocionalmente. Ela simboliza a maioria dos preconceitos da sociedade colonial luso-brasileira. Por isso, não gostei da tentativa de minimizar sua vilania na segunda metade do livro, quando se joga a culpa de seus atos no colo dos homens – sempre eles! – e da sociedade machista da época. O mais surpreendente foi descobrir, conversando com a autora da publicação, que Maria Rosa existiu realmente e aporrinhou a vida da nossa heroína até não poder mais.


É impossível falar desse romance histórico sem nos debruçarmos sobre a figura contagiante de Maria Quitéria. A jovem que adorava cavalgar e caçar pelos campos sertanejos é uma heroína contemporânea que viveu no século XIX. Ela representa a liberdade e o poder feminino. Mesmo se não tivesse ido para o Exército e lutado na Guerra de Independência do Brasil, Maria Quitéria de Jesus Medeiros já mereceria, por si só, nossa admiração. Insisto nessa tese. Suas atitudes, valores e postura na fazenda da Serra da Agulha são de uma pessoa muito à frente de seu tempo. Ah se todo militar brasileiro de ontem e de hoje fosse como essa mulher, Santo Deus!?


Em uma brincadeira intertextual, diria que Maria Quitéria é a junção de várias personalidades reais e literárias. Pela postura guerreira e destemida, ela tem um quê de Joana D´Arc, a heroína francesa, e de Diadorim, figura emblemática de “Grande Sertão: Veredas” (Companhia das Letras), clássico de João Guimarães Rosa. Pela sexualidade livre e moderna, a protagonista do romance de Rosa Symanski é um pouco Gabriela, de “Gabriela, Cravo e Canela” (Companhia das Letras), um dos romances mais famosos de Jorge Amado. Pela origem indígena e a integração harmônica com a natureza, Maria Quitéria se parece muitas vezes com Iracema, de “Iracema” (Melhoramentos), obra de José de Alencar, e com Chefe Lobo Cinzento/Toypurnia, de “Zorro – Começa a Lenda” (Bertrand Brasil), narrativa histórica de Isabel Allende.

Livro Maria Quitéria – A Soldada que Conquistou o Império de Rosa Symanski

Porém, a comparação mais forte que posso fazer da heroína de Rosa Symanski é com a personagem principal de “Sob o Céu de Novgorod” (Nova Fronteira), romance de Régine Deforge construído também a partir de episódios reais. Seria Maria Quitéria uma espécie de versão brasileira de Ana, a filha do Grão-Príncipe de Kiev que se tornou esposa do rei francês Henrique I? Marisa Monte responderia a essa questão cantarolando: “Sim, são três letrinhas/ Todas bonitinhas/ Fáceis de dizer/ Ditas por você/ Nesse seu sim, assim”.


Algo que me surpreendeu positivamente em “Maria Quitéria – A Soldada que Conquistou o Império” foi o enfoque maior dado à juventude da protagonista e ao seu primeiro amor do que às suas proezas militares. Assim, a parte mais conhecida da vida dessa figura histórica (entrada no Exército e participação nas lutas de Independência do Brasil) se tornou quase que um complemento aos dramas sentimentais por ela vivenciados/recriados nessa ficção. Adorei essa escolha narrativa. A autora conseguiu humanizar a personagem e jogar luzes sobre os aspectos não tão conhecidos da trajetória da nossa heroína. Por isso mesmo, a proposta de romancear essa parte da trama me pareceu tão acertada. Admito que quando abri o livro para lê-lo, imaginei que fosse ver com mais ênfase a segunda parte (a atuação de Maria Quitéria no Exército). Gostei muitíssimo dessa surpresa.


Também é preciso elogiar as cenas de sexo. Elas estão excelentes. Não é normalmente fácil escrever esse tipo de cena e Rosa fez isso muito bem, com naturalidade, versatilidade e beleza. Parte do charme da narrativa de “Maria Quitéria – A Soldada que Conquistou o Império” está justamente em seu teor picante. Sempre tive dificuldade de pensar o Período Colonial Brasileiro como uma época casta e monótona (conforme retratado nos romances românticos). O retrato feito nesse livro pareceu-me muito mais condizente com a realidade daquela época. Não à toa, esse jeito Grabriela de Maria Quitéria ajuda a combater o machismo do século XIX (só do século XIX?!) quando o assunto é a sexualidade feminina.


Outro aspecto que adorei foi a forte intertextualidade literária. Durante a leitura das páginas de “Maria Quitéria”, acompanhamos a citação direta e indireta a várias personagens e enredos romanescos. Temos aqui referências a: “Os Sofrimentos do Jovem Werther” (Penquin Companhia), narrativa epistolar de Johann Wolfgang von Goethe; “Romeu e Julieta” (Penquin Companhia), tragédia clássica de William Shakespeare; “Paulo e Virgínia” (Rocco), obra mais famosa de Bernardin de Saint-Pierre; o mito do “Bom Selvagem”, de Jean-Jacques Rousseau; e “Madame Bovary” (Penquin Companhia), título que consagrou eternamente Gustave Flaubert. Isso é o que ficou mais evidente. Conhecendo um pouco a erudição e a vasta bagagem cultural de Rosa Symanski, tenho certeza de que as pinceladas de Mitologia grega e de Literatura Clássica (nacional e internacional) não foram por acaso. No caso, nada em “Maria Quitéria” parece ter sido feito por acaso.

Livro Maria Quitéria – A Soldada que Conquistou o Império de Rosa Symanski

E as contextualizações históricas, sociais, culturais e políticas desse livro, hein?! Nem preciso dizer que elas estão impecáveis! Temos uma verdadeira aula de História. Nota-se o cuidado em cada detalhe da parte real da trama. Assistimos, nesse romance, ao machismo, ao racismo, ao extermínio indígena, à escravidão, à violência, às injustiças sociais, ao patriarcalismo (que machuca e prejudica até mesmo os homens) e ao cenário político das primeiras décadas do século XIX. Além disso, acompanhamos a religiosidade, as danças e os hábitos culturais tanto dos africanos quanto dos indígenas, algo que, infelizmente, sempre fica em segundo plano na literatura ficcional brasileira. Quando Rosa insere em seu texto aspectos das crenças, da magia e da medicina afro-indígena (amuletos, fechar o corpo, presságios, poder das ervas medicinais etc.), a impressão é de estarmos lendo os melhores trabalhos de Mia Couto e de José Eduardo Agualusa, autores contemporâneos de língua portuguesa que possuem a preocupação em valorizar suas culturas populares e ancestrais.


Então, quer dizer que “Maria Quitéria – A Soldada que Conquistou o Império” é um romance perfeito? Não. Ele também tem alguns probleminhas. O principal deles está nos vários errinhos de sequência narrativa. Pelo menos foi essa a minha impressão durante a leitura. No começo da história, por exemplo, entendi que Maria Quitéria tinha dois irmãos: Josefa e Luís. E a protagonista seria a primogênita. Beleza até aí. Entretanto, mais à frente, nossa heroína aparece com três irmãos da mesma mãe e pai: Francisca, Teresa e Bernarda. E, nesse momento, acredite, Maria Quitéria parece ser a mais nova da turma. Ai, ai, ai. Pode isso, Arnaldo?!


Quer mais exemplos? Achei que, em algumas passagens específicas, as personagens simplesmente não envelheceram, apesar do avançar irredutível do tempo. Antônio Gomes tinha 22 anos quando conheceu Maria Quitéria, que por sua vez tinha 20 anos. Aí o rapaz precisou passar uma temporada na Europa para concluir o curso de Direito na Universidade de Coimbra. No retorno ao Brasil, doze meses mais tarde, acredite se quiser, Antônio continuou tendo os mesmíssimos 22 aninhos e sua namorada sertaneja prosseguiu com as inabaláveis 20 primaveras. Achei estranha, muito estranha essa aritmética temporal do livro. Essa contradição pode ser culpa de minha leitura pouco atenta? Pode, sim senhores. Porém, não posso esconder esse desconforto que senti.


Por fim, a cena em que Maria Quitéria fala sobre política durante a visita do oficial do Exército à fazenda da Serra da Agulha me pareceu extremamente inverossímil. Afinal, a moça, em nenhum momento até ali, havia demonstrado qualquer interesse político ou meios de acessar as informações faladas à mesa. Se a protagonista passava os dias no campo caçando e cavalgando, como poderia saber os detalhes da política brasileira e portuguesa, hein? Não sei. Se fosse Camila Araújo quem tivesse exposto o panorama político-social dos anos 1820 dessa mesma forma, eu até entenderia. Contudo, Maria Quitéria não me convenceu – seria necessário contextualizar melhor nos capítulos anteriores essa sua inclinação política e explicitar a forma como ela obteve as informações.

Autora do romance histórico Maria Quitéria – A Soldada que Conquistou o Império, Rosa Symanski é jornalista e escritora gaúcha.

Achei desnecessárias as notas de rodapé em “Maria Quitéria – A Soldada que Conquistou o Império”. É verdade que elas ajudam a mostrar a riqueza da pesquisa bibliográfica feita pela autora. Rosa Symanski passou alguns anos debruçada sobre esse tema. Porém, estamos falando de um romance e não de uma biografia, né? Nas tramas ficcionais, a pesquisa normalmente não é apresentada ao leitor (nem deve). Mesmo assim, respeito a opção pela apresentação das informações bibliográficas. Até porque elas ajudam os leitores que ficaram interessados na história de Maria Quitéria a se aprofundar no assunto.


O único capítulo que eu realmente não gostei em “Maria Quitéria” foi o XI. Ele fugiu totalmente do padrão (linha narrativa) usado no restante do romance. Além da sumarização do texto (quando o ideal seria a encenação), essa seção coloca Maria Quitéria como uma personagem secundária na maior parte do tempo. E quem se transformou em protagonista nessas páginas? Vários indivíduos que até então não tinham sido inseridos na trama. Sinceramente, acredito que esse capítulo não faz jus à qualidade do livro e ao talento literário de Rosa. Como leitor, estava ávido para ver Maria Quitéria no combate. E ver cenas de batalhas onde a personagem principal não estava nem presente não me sensibilizou nem um pouco.


Mesmo com um tropecinho aqui e outro acolá, algo perfeitamente normal em se tratando de uma obra de uma autora estreante, é inegável a qualidade narrativa de “Maria Quitéria – A Soldada que Conquistou o Império”. E falo isso não apenas pelo caráter da efeméride do bicentenário da Independência do Brasil, um dos principais eventos nacionais de 2022. Esse romance de Rosa Symanski é um título atemporal capaz de encantar quem gosta de História (com h maiúsculo) e quem aprecia o melhor da Literatura (a história com h minúsculo).


Minha curiosidade é saber quais serão os próximos passos de Rosa na produção ficcional. Talento para o trem (como diriam os mineiros), ela tem. Fôlego para o desenvolvimento de narrativas longas, ela também provou possuir. Se já no primeiro romance, a jornalista e (agora) escritora gaúcha conseguiu encantar e surpreender os leitores com um texto de altíssimo nível, o que virá pela frente, hein? Sinceramente não sei. Minha torcida é que ela possa ampliar seu portfólio artístico-literário com o mesmo cuidado, a mesma dedicação e a mesma habilidade demonstradas em “Maria Quitéria”. Estaríamos vendo nascer uma romancista especializada em enredos históricos? Torçamos que sim! A literatura brasileira contemporânea agradece a chegada de mais uma boa integrante para suas fileiras.


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