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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 43 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

Foto do escritorRicardo Bonacorci

Análise Literária: José Eduardo Agualusa


Análise Literária de José Eduardo Agualusa

Em novembro, o Desafio Literário dedicou-se à investigação do trabalho ficcional de José Eduardo Agualusa, autor luso-angolano que completará 60 anos daqui a treze dias. O post de hoje do Bonas Histórias reúne tudo aquilo que descobrimos, ao longo das leituras, das análises e dos estudos das últimas quatro semanas, sobre Agualusa, suas obras e seu estilo literário. Vale a pena lembrarmos que o angolano é o sétimo escritor avaliado nesta sexta temporada do Desafio Literário. Os outros seis artistas analisados em 2020 foram: Jack Kerouac (abril), Maria José Dupré (maio), Kenzaburo Oe (junho), Virginia Woolf (julho), Rubem Fonseca (setembro) e Isabel Allende (outubro).


O portfólio literário de José Eduardo Agualusa reúne mais de 40 livros e traduções para mais de 20 idiomas. Dessas obras, destacam-se: “A Conjura” (Gryphus Editora), romance de 1989; “Estação das Chuvas” (Língua Geral), romance de 1996; “Nação Crioula” (Gryphus Editora), romance de 1997; “Um Estranho em Goa” (Gryphus Editora), romance de 2000; “O Vendedor de Passados” (Tusquets), romance de 2004; “As Mulheres do Meu Pai” (Língua Geral), romance de 2007; “Barroco Tropical” (Companhia das Letras), romance de 2009; “Nweti e o Mar” (Gryphus Editora), título infantojuvenil de 2011; “Teoria Geral do Esquecimento” (Editora Foz), romance de 2012; “A Rainha Ginga” (Quetzal Editores), romance de 2014; “O Livro dos Camaleões” (Quetzal Editores), coletânea de contos de 2015; “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” (Tusquets), romance de 2017; e “Os Vivos e os Outros” (Tusquets), romance que acabou de sair do forno - foi publicado em julho em Portugal e neste mês no Brasil.


Para entendermos a importância literária de Agualusa, basta dizer que ele é o escritor vivo mais influente de seu país. Se você ainda não ficou totalmente convencido(a) da dimensão artística deste autor, podemos dizer que José Eduardo Agualusa é considerado um dos principais nomes da literatura africana da atualidade, ao lado dos sul-africanos J. M. Coetzee e Nadine Gordimer, dos nigerianos Wole Soyinka e Chimamanda Ngozi Adichie, do queniano Ngũgĩ wa Thiong'o, do congolês Alain Mabanckou e da ruandesa Scholastique Mukasonga. Ele é também uma das grandes figuras da literatura contemporânea em língua portuguesa da África, ao lado dos moçambicanos Mia Couto e Paulina Chiziane e dos compatriotas Ondjaki e Pepetela. Convencido(a) agora?!


Agualusa é uma espécie de embaixador informal da cultura e da literatura angolana, principalmente no Brasil e em Portugal. Ele conquistou um público cativo nos países lusófonos, apesar de muita gente ainda hoje o confundir com Mia Couto. Essas confusões rendem boas piadas e histórias impagáveis, narradas com muito bom humor pelo autor angolano em entrevistas e palestras - gafe que os leitores do Bonas Histórias não vão cometer depois deste post.

José Eduardo Agualusa

Além do forte apelo comercial de seus livros, José Eduardo Agualusa ganhou importantes prêmios literários e o reconhecimento definitivo da crítica literária. As premiações mais relevantes em âmbito nacional foram o Prêmio Sonangol de autor revelação (Angola), o Prêmio Nacional de Cultura e Artes (Angola), o Grande Prêmio de Literatura da RTP (Portugal), o Grande Prêmio de Conto Camilo Castelo Branco (Portugal), o Grande Prêmio Gulbenkian de Literatura para Crianças e Jovens (Portugal) e o Prêmio Fernando Namora (Portugal). No exterior, os troféus e as medalhas mais impactantes foram o Prêmio Independent de 2007 na Categoria Ficção Estrangeira (Inglaterra) e o Prêmio Literário Internacional de Dublin (Irlanda).


Se você estranhou o fato de Agualusa não ter conquistado ainda o Prêmio Camões, o mais importante da literatura em língua portuguesa, saiba que eu também não sei explicar o porquê dessa ausência em sua galeria de honrarias. Não por acaso, ele é um dos favoritos para conquistar o prêmio em 2021. Se em 2019 um brasileiro ganhou (Chico Buarque) e em 2020 foi um português (Vítor Manuel de Aguiar e Silva), há grande chance do vencedor do próximo ano ser um africano. Pela perspectiva do rodízio de regiões agraciadas, Agualusa desponta como o grande favorito para ser o terceiro angolano a levar para casa o Prêmio Camões - Pepetela, em 1997, e José Luandino Vieira, em 2006, foram os primeiros/únicos.


Além de escritor ficcional, Agualusa dedica-se ao jornalismo (escreve regularmente colunas, crônicas e artigos para veículos de comunicação em Portugal, no Brasil e em Angola) e à dramaturgia (começou recentemente a desenvolver peças teatrais). Para completar seu panorama profissional, ele é sócio da Língua Geral, editora brasileira fundada em dezembro de 2006. A Língua Geral tem uma linha editorial muito interessante. Ela é voltada para a divulgação de autores lusófonos em nosso país e incentiva a publicação de autores brasileiros que estejam fora do eixo Rio-São Paulo.


José Eduardo Agualusa nasceu em dezembro de 1960 em Huambo, cidade situada no planalto central de Angola. Enquanto a família materna possui descendência portuguesa, os parentes do lado paterno têm origem brasileira. Foi em Huambo que o futuro escritor passou toda a infância e boa parte de sua juventude. Após a independência do país em 1975 e a eclosão da guerra civil angolana logo depois, Agualusa se mudou para Lisboa no final da década de 1970.


Em Portugal, ele graduou-se em Agronomia e Silvicultura na Universidade Técnica de Lisboa (UTL). Apesar de fazer cursos que nada ou pouco dialogavam com a literatura, não demorou muito para a escrita entrar em sua vida. José Eduardo ingressou no jornalismo cultural na época de estudante de graduação. Ao lado de colegas africanos que tinham uma pegada mais artística, ele fundou uma revista literária na universidade lisboeta. Para a publicação amadora, Agualusa criou heterônimos e começou a produzir seus primeiros textos jornalísticos e suas primeiras narrativas ficcionais. Uma vez dentro do jornalismo cultural, ele não saiu mais dessa área. Depois de formado, ele abandonou definitivamente a Agronomia e a Silvicultura e passou a trabalhar na imprensa profissional. No finalzinho dos anos 1980, ele participou da fundação do O Público, um dos principais jornais portugueses da atualidade. Até hoje, ele tem uma coluna quinzenal na Pública, a revista dominical do periódico.

Livro A Conjura de José Eduardo Agualusa

Mais ou menos no período de fundação do jornal lusitano, José Eduardo estreou na literatura comercial. Escrito ao longo de 1987 e finalizado em janeiro de 1988, “A Conjura” (Gryphus Editora) é um romance histórico que foi publicado em 1989. O livro é ambientado em Angola entre o final do século XIX e o início do século XX, época em que a África era colonizada pelos europeus. Nesta obra, Agualusa denuncia o racismo, a xenofobia, o tráfico negreiro, a violência e a exploração de seu país e de seus conterrâneos por parte de Portugal, a nação que comandava Angola política, econômica, social e culturalmente. No período retratado pela narrativa ficcional, surgiram os primeiros movimentos angolanos a favor da abolição e da independência. Este é justamente o mote principal deste título de estreia de José Eduardo Agualusa: a revolta latente de uma parcela da sociedade angolana mais culta e engajada socialmente contra o comportamento predatório e racista dos colonizadores. Além disso, o romance traz uma bem azeitada mistura de personagens e episódios fictícios com figuras e fatos verídicos.


A trama de “A Conjura” se passa ao redor da Loja de Barbeiro e Pomadas Fraternidade. A barbearia foi fundada por Jerónimo Caninguili, em 1880, em Luanda. Não demorou para o estabelecimento de Jerónimo atrair uma clientela elitizada, culta e engajada da capital angolana. Nas cadeiras da barbearia, os clientes discutiam economia e política, além das fofocas luandenses. Nessa atmosfera de forte indignação social, surgiram as primeiras confabulações de resistência aos colonizadores. Para avançar no ideal de separação de Angola de Portugal, um grupo de clientes da barbearia criou uma entidade secreta chamada de Sociedade.


Ao longo das décadas seguintes, enquanto comentavam os escândalos e as tragicomédias que agitaram Luanda, os membros da Sociedade desenvolveram várias ações de conscientização para a importância da independência do país africano e para a efetiva tomada de poder por parte de seus conterrâneos. O enredo de “A Conjura” se estende até 16 de junho de 1911. Nesta data, o grupo de inconfidentes planejou tomar à força o controle administrativo da capital angolana.


Por ser uma narrativa muito fragmentada, principalmente em sua primeira metade, com excessos de personagens e de acontecimentos simultâneos (o romance chega a lembrar uma coletânea de contos), “A Conjura” apresenta um texto confuso e embolado. Este livro está longe de ser uma grande obra literária. Mesmo assim, ele teve o mérito de ser um dos primeiros títulos ficcionais da literatura africana em língua portuguesa a promover a negritude/o empoderamento negro. Os protagonistas do romance são mulatos e negros com cultura, ativos politicamente, empreendedores bem-sucedidos e em posição de destaque na sociedade local. São eles que decidem acabar com a opressão estrangeira e partem para o confronto ora intelectual, ora armado. Apenas por isso já bastaria para tirarmos o chapéu para seu enredo.


Porém, há outros pontos positivos nessa narrativa. Ressalto a experiência de imersão no português africano (uma delícia para quem gosta das variantes linguísticas de nosso idioma). O retrato histórico do cotidiano angolano é excelente, com destaque para a cultura e as crenças locais (o sobrenatural, a magia e a espiritualidade africana). Este romance é quase uma crônica de costumes. Outro ponto positivo é a emulação estética dos romances antigos (introdução resumida em cada capítulo, por exemplo). “A Conjura” é uma crítica político-social contundente. O livro mostra a importância da independência da colônia, da promoção do abolicionismo e da interrupção do tráfico negreiro. Sua ambientação possui muita violência, racismo, sexismo e preconceitos econômicos e religiosos.


Principalmente pela inovação temática promovida em “A Conjura”, Agualusa conquistou seu primeiro prêmio literário. O romance histórico ganhou o Prêmio Sinangol de Literatura, um dos mais importantes de Angola, na categoria Autor Revelação/Estreante. Em Portugal, o romance de estreia de José Eduardo Agualusa também recebeu avaliações positivas da crítica literária. Os principais elogios dos portugueses vieram mais pelas intenções estilísticas e conceituais do autor do que propriamente pelo resultado prático da narrativa. Satisfeito com a receptividade do seu trabalho literário inicial, o angolano lançou-se, nos anos seguintes, com afinco na carreira de escritor profissional.

Livro Nação Crioula de José Eduardo Agualusa

Na década de 1990, Agualusa publicou seis livros – dois romances, “Estação das Chuvas” e “Nação Crioula”, duas coletâneas de contos, “D. Nicolau Água-Rosada e Outras Estórias Verdadeiras e Inverosímeis” (Vega) e “Fronteira Perdidas” (Quetzal Editores), uma novela, “A Feira dos Assombrados e Outras Estórias Verdadeiras e Inverosímeis” (BIS), e uma coleção de poesias, “O Coração dos Bosques” (União dos Escritores Angolanos). Nesse momento, ele ainda dividia quase que igualmente o tempo entre o jornalismo e a literatura.


Dessas obras novecentistas, as que tiveram maior repercussão de público e de crítica foram os romances. “Estação das Chuvas” e “Nação Crioula” seguem o estilo de “A Conjura”. Assim como o título de estreia de Agualusa, esses livros são romances históricos, possuem forte carga de denúncia social, apresentam um contundente engajamento racial e exploram a mistura entre ficção e realidade. Felizmente, a diferença é que “Estação das Chuvas” e, principalmente, “Nação Crioula” são narrativas mais sofisticadas e bem-feitas, fruto do veloz desenvolvimento da escrita de um autor talentoso.


“Estação das Chuvas” (Quetzal Editores) é a biografia romanceada de Lídia do Carmo Ferreira, uma famosa poetisa e historiadora angolana. Publicada em 1996, esta trama semificcional aborda a infância, a juventude e a entrada de Lídia no mundo artístico. A história segue até o desaparecimento misterioso da protagonista em meio aos violentos conflitos da guerra civil do seu país. Além de retratar a vida de uma figura real, o livro apresenta o contexto sócio-político de Angola da segunda metade do século XX.


Publicado em 1997, “Nação Crioula” (Gryphus Editora) é o romance epistolar de Agualusa. Essa narrativa foi baseada em duas histórias reais: a de Dona Ana Joaquina, uma mulata dona de um palácio belíssimo em Luanda que enriqueceu através do tráfico negreiro (inspirou a personagem Gabriela Santamarinha); e a de uma mulher negra que chegou à Angola, se casou com um rico traficante de escravos e, depois da morte do marido, foi escravizada (deu origem a personagem Ana Olímpia). A partir dessas passagens extraídas diretamente dos livros de história de Angola, José Eduardo Agualusa desenvolveu uma narrativa ficcional com forte intertextualidade literária. Seu texto denuncia a violência e a crueldade do sistema escravocrata português na América e na África.


Ambientado na segunda metade do século XIX, “Nação Crioula” expõe as cartas de Carlos Fradique Mendes, um aventureiro português que levava a vida como um playboy (os franceses diriam que ele era um bon vivant). A trama do romance inicia-se com a chegada de Fradique à Luanda em maio de 1886. Ele desembarcou na colônia africana para explorar o interior do país e para conhecer as particularidades daquela região folclórica. Em um dos eventos sociais da capital angolana, Fradique conheceu a bela Ana Olímpia. Além de linda, a moça negra possuía uma trajetória surpreendente. Filha de um rei congolês capturado pelos inimigos, Ana Olímpia foi escravizada na infância. Na adolescência, quando sua beleza começava a despontar, ela se tornou uma mulher livre ao se casar com seu proprietário, Victorino Vaz de Caminha. Já idoso, Victorino era um próspero comerciante de escravos de Luanda.


Ao descobrir que sua amada era uma mulher casada, Fradique Mendes não pôde fazer nada. Como consolo, ele se tornou amigo da moça. Alguns anos mais tarde, Victorino faleceu. A partir daí, o português e Ana Olímpia iniciaram um relacionamento amoroso. A alegria dos namorados foi interrompida com a chegada à Luanda de Jesuíno Vaz de Caminha, o irmão de Victorino. Após provar que o irmão falecido esquecera de alforriar a esposa, Jesuíno tirou a fortuna que Ana Olímpia havia herdado e a transformou novamente em escrava. Era o início da agonia da moça e de Fradique. Para salvar a namorada dos inimigos, o aventureiro português traçou um plano para tirá-la da África e levá-la para o Brasil, que já era um país independente, mas que ainda mantinha a escravidão.

José Eduardo Agualusa

Em 1998, “Nação Crioula”, cujo subtítulo é “A Correspondência Secreta de Fradique Mendes”, conquistou, em Portugal, o Grande Prêmio Literário RTP de melhor romance em língua portuguesa. O que mais chamou a atenção da crítica portuguesa na época foi a opção de Agualusa em reconstruir a história colonial portuguesa a partir do ponto de vista do povo negro escravizado. Mesmo tendo um narrador convencional (Fradique é um português branco e rico), a grande personagem deste romance é Ana Olímpia, uma mulher negra que foi escravizada duas vezes, uma delas depois de ter adquirido a liberdade. Apesar dessa história lembrar muito as tramas de “Escrava Isaura” (Autêntica), clássico do brasileiro Bernardo Guimarães, e de “Doze Anos de Escravidão” (Seoman), autobiografia do norte-americano Solomon Northup, o público e a crítica especializada aplaudiram a inovação estética trazida pelo autor angolano.


Realmente, este livro é muito bom! E são vários os motivos que fazem “Nação Crioula” um romance marcante. Posso citar alguns elementos: a ótima construção de personagens (quase todas as figuras são redondas); o excelente ritmo narrativo (algo que faltou em “A Conjura”); a forte intertextualidade literária (por exemplo, Fradique Mendes é uma personagem trazida da literatura de Eça de Queirós; e o próprio escritor português se transforma em uma personagem dessa obra); a narrativa ao estilo road story pelas três pontas do antigo Reino português (Europa, América do Sul e África lusitanas); a realidade e a ficção se misturam como irmãs siamesas; e a ótima ambientação histórica.


Os anos 2000 representaram uma mudança de postura de José Eduardo Agualusa em relação ao ofício de escritor. No século XXI, ele passou a priorizar a literatura ao jornalismo. Assim, mergulhou de cabeça na produção ficcional. Além de se dedicar integralmente aos seus livros, o autor angolano passou a viajar muito para promover seus trabalhos e (aí está um aspecto interessante de sua biografia) a se mudar frequentemente de residência. Além de Huambo e Lisboa, Agualusa morou em Luanda, Rio de Janeiro, Olinda, Goa, Berlim, Amsterdã e Ilha de Moçambique. As permanências nessas cidades serviram acima de tudo como imersão literária – para retratar um lugar, ele entende que precisa viver ali, conhecer as pessoas, captar o clima (ambientação) e coletar as boas histórias escondidas em cada esquina.


Workaholic, José Eduardo Agualusa escreve compulsiva e apaixonadamente. Sua rotina foi construída envolta da produção textual. Um dia ideal para o autor angolano é aquele em que ele passa boa parte das horas escrevendo. Quando não está na frente do computador criando suas narrativas, ele gosta de ler (aproximadamente 40 títulos anuais), nadar (a natação entrou em sua vida ainda na juventude), viajar (é quase um caixeiro-viajante) e estar perto da família. Quando precisa sair de casa ou viajar a trabalho, seus ouvidos buscam novas histórias e seus olhos procuram tipos que podem se transformar em boas personagens. Sua dedicação à ficção é tão intensa, mas tão intensa que até mesmo dormindo ele acredita poder captar novas tramas. Ao acordar, ele anota os sonhos na busca de inspiração e de mais narrativas.


Para se ter uma ideia do que representou essa mudança de postura, no intervalo de dez anos (de 2000 a 2010), Agualusa publicou 16 livros, entre romances, coletâneas de contos e crônicas, ensaios e títulos infantojuvenis. Porém, essa fase não significou apenas uma evolução quantitativa. As obras do autor melhoraram também qualitativamente. Como efeito prático dessa grande dedicação, ele atingiu a maturidade artística. Prova maior desse novo status foi a publicação, em 2004, de sua obra-prima, “O Vendedor de Passados” (Tusquets).

Livro O Vendedor de Passados de José Eduardo Agualusa

“O Vendedor de Passados”, sexto romance de Agualusa, é considerado por muita gente (me incluo nesse grupo) como um dos principais títulos da literatura contemporânea em língua portuguesa. De fato, trata-se de um livro espetacular. Ele traz uma sátira inteligente e divertida dos dramas angolanos do Pós-Guerra Civil. O que Agualusa fez de diferente nesta obra, que marcaria todos os seus trabalhos ficcionais dali em diante, foi acrescentar doses mais generosas de Realismo Fantástico e embaralhar ainda mais os aspectos da realidade com passagens oníricas. Assim, ao mesmo tempo em que retrata a violência e as injustiças sociais de seu país, José Eduardo Aqualusa consegue encantar os leitores com elementos mágicos e sobrenaturais. Estava criado, assim, um receituário narrativo dos mais interessantes e bem-sucedidos da ficção luso-angolana.


O enredo de “O Vendedor de Passados” se passa em Luanda, no final da Guerra Civil. Félix Ventura, um senhor albino muito culto, vende passados melhores para as pessoas e as famílias que desejam apagar as trajetórias pouco dignas que tiveram até ali. Félix entrega novas biografias aos clientes. Os novos passados são motivos de orgulho e veneração pelos contratados, pois são mais interessantes e mais charmosos.


Habituado aquele ofício, Félix Ventura incomoda-se, certo dia, com a chegada à sua casa de um sujeitinho muito desconfiado. Com sotaque brasileiro, o estranho homem diz ser fotógrafo de guerra. Ele quer um novo passado, mas se recusa a divulgar qualquer informação sobre sua vida presente. Até mesmo o nome verídico, ele se nega a revelar. Mesmo temeroso em realizar aquele serviço, o vendedor cria uma identidade novinha para o cliente. Surge, dessa maneira, José Buchmann. Nascido em Chibia há 52 anos, ele é filho de Matheus Buchmann e de Eva Miller.


Encantado com a biografia e com o nome recém-adquiridos, (o novo) José Buchmann incorpora realmente a identidade desenvolvida por Félix e passa a agir como se fosse aquele (novo) homem. Ele faz pesquisas sobre seu (novo) passado e viaja para Chibia em busca dos (novos) pais. De tão apegado à (nova) figura, o fotógrafo sofre até mesmo uma transformação física e comportamental.


O mais incrível é descobrir que quem narra a história é uma osga (espécie de lagartixa) que mora há anos na casa de Félix Ventura. Apelidada de Eulálio pelo morador do lugar, a osga tem alma e, no passado (em outra vida), foi um homem. Por ter se suicidado quando era humano, ele reencarnou no corpo de um réptil. Eulálio conta ao leitor o que se passa na casa de Félix ao mesmo tempo em que rememora os dramas de sua existência como humano.


Com uma trama original e um texto delicioso, “O Vendedor de Passados” se tornou um sucesso instantâneo de público e de crítica. Seu texto foi traduzido para vários idiomas e lançado com empolgação no exterior. A versão inglesa da obra conquistou, em 2007, o Prêmio Independent na categoria Ficção Estrangeira. Pela primeira vez, a honraria concedida pelo jornal britânico homônimo foi dada a um autor africano. Essa história de Agualusa também serviu de inspiração para o filme do brasileiro Lula Buarque de Hollanda. Em 2015, o longa-metragem “O Vendedor de Passados” exibiu nos cinemas nacionais uma trama tão modificada do livro angolano que é até difícil ver quaisquer relações entre as duas produções.

Livro As Mulheres do Meu Pai de José Eduardo Agualusa

A publicação de “O Vendedor de Passados” inaugurou o que gosto de chamar da fase dourada da literatura de Agualusa. A partir desse romance, o angolano lançou títulos de grande qualidade narrativa e estética. Apesar de nenhum ter suplantado a história contada pela osga, eles adquiriram merecidamente o reconhecimento do público leitor e os elogios da crítica literária. Um bom exemplo é “As Mulheres do Meu Pai” (Língua Geral). Publicado em 2007, este é o romance mais extenso do autor. Nessa trama ficcional com forte carga autobiográfica, José Eduardo Agualusa debate as origens africanas de indivíduos (como ele) que imigraram para a Europa. Assim, o escritor busca os elementos constituintes da africanidade.


Em “As Mulheres do Meu Pai”, assistimos ao drama de Laurentina, uma jovem cineasta portuguesa. Quando a mãe morreu, ela descobriu por meio de uma carta que a moçambicana Doroteia e o português Dário Reis não eram seus pais biológicos. Laurentina fora adotada ainda pequena em Moçambique e levada para ser criada em Portugal pela família Reis. Seu verdadeiro pai era Faustino Manso, um cantor e compositor angolano recém-falecido. Ele fez muito sucesso nas décadas de 1960 e 1970. Curiosa para descobrir suas raízes culturais legítimas, a moça parte para a África com a proposta de fazer um documentário sobre Faustino Manso.


Para filmar os depoimentos de amigos, colegas e familiares do pai, Laurentina precisa viajar por três países (Angola, Moçambique e África do Sul) e por várias cidades (Luanda, Benguela, Mossâmedes, Cidade do Cabo/Cape Town, Maputo/Lourenço Marques, Quelimane e Ilha de Moçambique). Essa epopeia é fruto da vida errante que Faustino levou por vinte e dois anos. Em cada lugar que parava, ele fazia uma nova família – esposa e filhos. Ao final da carreira musical, ele contabilizava sete mulheres e dezoito filhos.


Ao mesmo tempo em que conhece as particularidades e os segredos de Faustino Manso, Laurentina precisa se descobrir como mulher e africana. As experiências cinematográficas da moça e a reconstrução histórica do pai dela irão afetar a vida de três homens: Mariano Maciel/Madume, o namorado e câmera português da cineasta; Bartolomeu Falcato, o sobrinho e amante angolano de Laurentina; e Albino Amador/Pouca-Sorte (o motorista que leva a moça pelas estradas africanas). O trio masculino divide com Laurantina a narração do livro.


“As Mulheres do Meu Pai” é uma narrativa impecável sobre a identidade cultural dos africanos. Percebe-se que Agualusa, no auge da maturidade artística, já tinha ciência de que história contar e, principalmente, de como produzi-la de maneira impactante e seguindo um estilo e uma estética particulares. A partir desse livro, ele também passa a explorar com mais intensidade aspectos pessoais em suas tramas. Ou seja, sua própria vida se torna matéria-prima de sua ficção. Em termos narrativos, "As Mulheres do Meu Pai” é um romance mais sofisticado do que “O Vendedor de Passados”.

Livro A Sociedade dos Sonhadores Involuntários de José Eduardo Agualusa

Os romances seguintes de José Eduardo Agualusa mantiveram a produção ficcional do autor em um patamar bem elevado de qualidade. “Barroco Tropical” (Companhia das Letras), de 2009, “Teoria Geral do Esquecimento” (Editora Foz), de 2012, e “A Rainha Ginga” (Quetzal Editores), de 2014, são obras excelentes. Não estranhe, portanto, se você conhecer leitores que as têm como suas leituras preferidas dentro do portfólio de Agualusa. Porém, esse trio de títulos foi eclipsado pelo lançamento, em 2017, de uma narrativa ainda mais marcante do angolano. “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” (Tusquets), seu décimo quarto romance, é normalmente comparado a “O Vendedor de Passados” pelo sucesso de público e de crítica. Há quem o aponte como o melhor livro de seu escritor (eu ainda prefiro “O Vendedor de Passados”).


Em “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários”, José Eduardo Agualusa utiliza-se novamente de episódios, pessoas e cenários reais para construir o enredo ficcional. Esta obra uniu dois acontecimentos verídicos: os trabalhos que Sidarta Ribeiro, um neurocientista brasileiro especializado em sonhos, desenvolve no centro de pesquisa em Natal, no Rio Grande do Norte; e os protestos de 2014, em Luanda, contra o presidente angolano José Eduardo dos Santos resultaram na prisão de Luaty Beirão, o jovem músico que liderava o movimento. Portanto, este livro mistura a beleza e a magia dos sonhos com pesadas críticas dirigidas ao governo atual de Angola. O resultado é um romance, ao mesmo tempo, onírico e ácido.


Narrado prioritariamente por Daniel Benchimol, jornalista angolano de 55 anos, recém-separado e pai de uma adolescente, “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” se passa em Luanda nos dias de hoje. Daniel vive perturbado com os sonhos que tem frequentemente. Ao dormir, ele descobre os detalhes das biografias de pessoas que ainda não conhece (mas que virá a conhecer depois). Ele também recebe desígnios, mensagens e diálogos que logo mais se concretizam e ganham sentido lógico. Tentando descobrir o que se passa ao dormir, o jornalista faz amizade com pessoas que também possuem relações fantásticas com os sonhos.


Esse grupo de sonhadores será fundamental para Daniel Benchimol quando ele vê sua filha, Lucia Benchimol/Karinguiri, ser presa pelos militares angolanos. A jovem é acusada de liderar protestos políticos contra o presidente angolano. Desesperado para tirar a filha da cadeia, Daniel criará coragem e sairá de cima do muro político que vive há anos. Além disso, ele usará os conhecimentos e as habilidades de seus novos amigos sonhadores para fazer justiça com as próprias mãos.


Do ponto de vista temático, a grande novidade trazida por “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” é a abordagem dos problemas políticos atuais de Angola. Até então, José Eduardo Agualusa havia optado por criticar as antigas mazelas sócio-políticas de seu país – da época colonial, do período da guerra da independência e da fase da guerra civil. Neste livro, ele não tem medo, coloca o dedo nas feridas contemporâneas de seus conterrâneos e expõe a violência e a corrupção da ditadura militar de José Eduardo dos Santos (regime que perdurava há mais de três décadas).


Interessante notar que o narrador-protagonista de “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” é a personagem de Agualusa que mais se aproxima de um alter ego do autor. Afinal, as semelhanças biográficas, físicas, comportamentais, conjugais, profissionais e ideológicas de Daniel Benchimol e de José Eduardo Agualusa são extensas e enormes. O escritor angolano, para ficarmos em apenas um exemplo, tem uma relação intensa com seus sonhos. Essa proximidade entre a personagem principal da narrativa e o autor acentua ainda mais a relação simbiótica entre ficção e realidade.

Livro Nweti e o Mar de José Eduardo Agualusa

Além de romances, Agualusa lançou vários livros infantis e infantojuvenis. O primeiro título desse gênero foi “Estranhões e Bizarrocos” (Dom Quixote), publicado em 2000. Depois vieram “A Girafa que Comia Estrelas” (Dom Quixote), em 2005, “Na Rota das Especiarias” (Dom Quixote), em 2008, “Um Pai em Nascimento” (Alfaguara Portugal), em 2010, “Nweti e o Mar” (Gryphus Editora), em 2011, e “A Rainha dos Estapafúrdios” (Moinho de Vento), em 2012. A maioria desses livros foi lançada apenas em Portugal. O público brasileiro, infelizmente, só tem acesso à parte do portfólio infantil e infantojuvenil do autor.


Das obras de Agualusa destinadas aos leitores mirins, podemos destacar “Nweti e o Mar”. Esse livro se diferencia dos seus similares por utilizar a fotografia e não a ilustração para retratar visualmente a narrativa ficcional. E, curiosamente, as imagens fotográficas foram tiradas pelo próprio escritor, um apaixonado pela fotografia. José Eduardo Agualusa usou a filha Vera Lúcia e as paisagens do litoral africano como seus modelos. A sessão fotográfica aconteceu durante uma viagem de férias com a família. A própria viagem serviu como ponto de partida para a criação da história que mistura realidade e ficção e realismo fantástico e universo onírico. Como consequência, temos um livro esteticamente belíssimo (as fotos de Agualusa são de tirar o fôlego) e uma comovente trama sobre a infância, a relação entre pais e filhos e os segredos do mar.


Em “Nweti e o Mar”, assistimos aos sonhos de Nweti, uma menina de seis anos com uma imaginação fértil. Ao dormir, ela sonha que virou uma sereia e que passeia pelos mares do mundo. Seu melhor amigo é Eustáquio, um caranguejo que vive dentro de conchas. Quando acorda de manhã, os pais de Nweti não acreditam nas aventuras noturnas da garota. Nem mesmo o fato de o travesseiro dela amanhecer com cheiro de mar é capaz de convencê-los. Eles tentam explicar para ela a diferença entre a realidade e os sonhos.


Como é típico dos títulos infantis e infantojuvenis, “Nweti e o Mar” tem um equilíbrio harmônico entre a parte textual e a parte visual - as fotografias (50% para cada uma dessas duas partes). Porém, o que prevalece quando o assunto é qualidade é o visual da obra. A beleza maior deste livro está indiscutivelmente no seu aspecto gráfico. As fotos de José Eduardo Agualusa são muito melhores do que a narrativa em si. Por falar nisso, a história de “Nweti e o Mar” é bem fraquinha, até mesmo se considerarmos o seu público-alvo (as crianças). Na certa, essa não é a publicação infantil mais interessante do autor.


José Eduardo Agualusa vive atualmente entre Lisboa e a Ilha de Moçambique, uma pequenina cidade insular na região norte de Moçambique. Casado pela segunda vez, ele tem três filhos – o primogênito é fruto do primeiro relacionamento, enquanto os dois mais novos vieram do segundo matrimônio. O escritor é casado com Yara Costa, uma cineasta e jornalista moçambicana de 38 anos. O filho mais recente do casal nasceu há pouco, em 2018.


As publicações de Agualusa englobam romances, novelas, coletâneas de contos e crônicas, livros-reportagem, antologias poéticas, obras infantis, títulos infantojuvenis e livros de fotografia. Sua média de lançamento é superior a um livro por ano. Um elemento que chama a atenção em sua produção literária é a variedade de gêneros narrativos. A versatilidade de Agualusa em trafegar por vários tipos textuais é algo que acredito ser típico de muitos escritores africanos de língua portuguesa (uma característica pouco comum da maioria dos autores brasileiros). Mia Couto, Ondjaki e José Luandino Vieira, por exemplo, desenvolvem romances, novelas, poesias, coletâneas de contos e crônicas, ensaios, livros infantojuvenis, peças teatrais. José Eduardo Agualusa é da estirpe dos artistas que abraçam a literatura de forma ampla e variada.

José Eduardo Agualusa

Outra questão que salta aos olhos é a imersão na cultura africana. Em todos os livros de Agualusa, até mesmo naqueles em que as tramas não se passam prioritariamente na África, assistimos ao retrato dos costumes, dos hábitos, das crenças e do estilo de vida dos habitantes desse continente. Agualusa representa em seus textos a identidade cultural africana como poucos escritores fazem. Ele apresenta o colorido e a magia do seu povo ao mesmo tempo em que expõe as mazelas e os horrores desse local do planeta. Prova disso é que, apesar de morar há mais de 40 anos em Portugal, ele não escreveu até hoje nenhum romance ambientado no país europeu. Pelo menos, eu não conheço uma narrativa sua que tenha como cenário a Península Ibérica.


O correto é enxergar José Eduardo Agualusa como um autor que integra os povos lusófonos. Sua literatura tenta aproximar a Europa portuguesa, a América portuguesa, a África portuguesa e, em menor escala, a Ásia portuguesa. Ele busca relatar as relações históricas, culturais e afetivas dos povos que falam a língua de Luís Vaz de Camões. Com esse propósito, o angolano conseguiu deixar sua marca na literatura contemporânea de língua portuguesa e na literatura africana. Eis um escritor que precisa ser conhecido e que reserva ótimos livros.


Para entendermos as características estilísticas de Agualusa, seguem, abaixo, os treze aspectos mais marcantes de sua literatura:


1) Os romances de José Eduardo Agualusa se dividem em duas fases. A primeira pode ser chamada de Literatura Engajada e vai prioritariamente de 1989 a 2003. As obras que integram esse período são: “A Conjura”, “Estação das Chuvas”, “Nação Crioula”, “Um Estranho em Goa” e “O Ano em que o Zumbi Tomou o Rio”. A principal característica dessa fase inicial da carreira do autor é o retrato nu e cru (quase como um texto jornalístico) dos dramas contemporâneos e históricos dos povos colonizados pelos portugueses (angolanos, moçambicanos, brasileiros e goeses). Assim, assistimos a histórias com racismo, xenofobia, exploração da pobreza, corrupção, desigualdade social, truculência do estado policialesco, crueldade do tráfico de escravos e violência das guerras.


2) A segunda fase dos romances de Agualusa pode ser chamada de Literatura Fantástica. Ela vai essencialmente de 2004 até hoje. As principais obras desse período são “O Vendedor de Passados”, “As Mulheres do Meu Pai”, “Barroco Tropical”, “A Rainha Ginga” e “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários”. A principal característica desta etapa é a inserção de elementos mágicos, sobrenaturais e extraordinários às tramas. Dessa forma, temos histórias contadas por osgas (lagartixas), sonhos com capacidade de desvendar o futuro, indivíduos com poderes sobrenaturais, magias com força para interferir no dia a dia das pessoas e uma relação extremamente próxima do mundo dos vivos com o mundo dos mortos. Tradicionalmente, as personagens de Agualusa conversam com espíritos, fazem pedidos às divindades, desvendam as linhas do destino, têm premonições certeiras e usam as superstições como proteção cósmica.


3) Os narradores dos livros de Agualusa são variados. Há desde narração feita em primeira pessoa (“Nação Crioula”) até em terceira pessoa (“A Conjura” e “Nweti e o Mar”). Em muitas obras, os relatos são feitos por mais de uma personagem (“O Vendedor de Passados”, “As Mulheres do Meu Pai” e “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários”). Nesse caso, o que temos é um pot-pourri narrativo. Os romances com múltiplos narradores são, na minha opinião, os que apresentam as melhores experiências literárias para os leitores. Normalmente, a visão multifacetada da trama (várias vozes e muitos pontos de vista convivendo simultaneamente) permite uma narrativa mais completa, surpreendente e versátil.

Principais livros de José Eduardo Agualusa

4) Nas publicações do autor, há uma mistura acentuada entre a realidade e a ficção. É até difícil saber onde uma termina e onde a outra começa. Além de se inspirar em personalidades e fatos históricos, Agualusa vale-se também de aspectos de sua própria biografia para desenvolver seus romances, novelas, contos e títulos infantojuvenis. Parte do colorido de suas tramas está nessa mistura bem azeitada do universo verídico com a criação ficcional. Sob essa perspectiva, nota-se uma forte influência do mundo onírico nos conflitos dramáticos criados pelo autor.


5) Todos os romances de Agualusa possuem forte influência do cenário político. É o ambiente externo caótico (guerras, tiranias e sistemas econômicos que transformam as pessoas negras em mercadorias) que ditam o destino e os dramas das pessoas comuns. A rotina de ontem e de hoje dos africanos é pautada por violência e mais violência. Muitas vezes, as chagas do passado (conflitos armados e guerras intermináveis) ainda estão expostas - as feridas sociais não foram totalmente cicatrizadas. Por isso, muitas histórias do autor flertam com a sátira política. Quase sempre, Agualusa tece retratos magníficos da realidade atroz do seu país e das neuroses de seus conterrâneos.


6) Apesar da ambientação carregada de violência e de injustiças, as histórias de Agualusa não são tão pesadas e tensas como seria de se imaginar em um primeiro momento. O angolano sabe mesclar bem os elementos fortes do ambiente externo com a beleza da vida particular de suas personagens. Ao mesmo tempo em que expõe a violência ideológica e física dos dominadores (colonizadores, militares, comunistas, poderosos economicamente, elite intelectual), ele sabe colorir suas narrativas com tons tragicômicos do dia a dia angolano. Assim, o humor leve dos encontros e desencontros amorosos e dos absurdos da rotina dos africanos gera cenas engraçadas e tramas com grande comicidade.


7) Uma das características mais interessantes da produção literária de Agualusa é a construção de personagens redondas. Ele desenvolve, em quase todos os seus romances, figuras contraditórias, com um mix de qualidades positivas e negativas. Ninguém é 100% bonzinho e ninguém é 100% vilão, nem mesmo os protagonistas. Essa riqueza dramática dá profundidade aos enredos e força aos conflitos apresentados.


8) Outro ponto a ser elogiado no portfólio do escritor angolano é o ritmo ágil de suas narrativas. Com exceção de “A Conjura”, que dá uns tropeções em relação ao ritmo de sua história, os demais romances oferecem leituras agradáveis, dinâmicas e com reviravoltas. E não importa o tipo de narrativa, epistolar (“Nação Crioula”), road story (“As Mulheres do Meu Pai”), fantástica (“O Vendedor de Passados”), drama contemporâneo (“A Sociedade dos Sonhadores Involuntários”) ou enredo infantojuvenil (“Nweti e o Mar”), saiba que você encontrará histórias com boas cenas de ação, intrigas cativantes, surpresas e peças narrativas muito bem encaixadas.


9) A literatura de Agualusa também é pródiga em oferecer várias tramas multifacetadas dentro de uma história maior. A partir de uma linha central, a história principal de Agualusa se bifurca em vários pontos, em várias histórias secundárias. Em muitas narrativas longas do autor (“A Conjura” e “Nação Crioula”), temos a impressão de que estamos lendo uma coletânea de contos junto com o romance. Em outras obras, a sensação é de estarmos acompanhando uma história cheia de ramificações (“O Vendedor de Passados” e “As Mulheres do Meu Pai”, por exemplo).

José Eduardo Agualusa

10) Nos livros de José Eduardo Agualusa, assistimos à valorização da negritude e à busca incessante pelas raízes culturais africanas. O autor angolano retrata como poucos a rotina diária, os hábitos, as crenças, as superstições, a moda, a gastronomia, a língua, a história, a geografia e as particularidades de cada região da África. Em suas obras, vemos quase que uma crônica de costumes. Esses elementos socioculturais ora acompanham as tramas principais (“O Vendedor de Passados” e “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários”) ora são alçados ao papel de protagonistas do enredo (“A Conjura” e “As Mulheres do Meu Pai”).


11) Além do retrato saboroso da cultura africana, a ficção de Agualusa faz a (inter)conexão das sociedades lusófonas dos quatro continentes (Europa, África, América do Sul e Ásia). Sinceramente, não conheço outro autor contemporâneo que tenha essa característica literária/propósito artístico. Além de ser o único escritor que integra os povos que falam o idioma lusitano, José Eduardo Agualusa faz isso naturalmente. Para ele, unir a história, a cultura e a identidade dos habitantes de Portugal, Angola, Moçambique, Brasil e Goa é algo corriqueiro e lógico. É preciso tirar o chapéu para este trabalho de união internacional dos povos-irmãos. Só tem uma coisa que eu ainda não entendi: como um autor como este ainda não conquistou o Prêmio Camões, hein?!


12) Ler os textos de Agualusa é interagir direta ou indiretamente com outras obras culturais. A intertextualidade dos seus romances é multi artística: literária, musical, cinematográfica, fotográfica, teatral e pictórica. Escritores, livros, personagens ficcionais, músicos, canções, cineastas, atores, filmes, fotógrafos, dramaturgos, peças, pintores e quadros são citados o tempo inteiro nas páginas das publicações do angolano. Parte da graça de ler Agualusa é interagir com outras produções artístico-culturais.


13) José Eduardo Agualusa utiliza-se normalmente de formas simples para contar suas histórias. A força de suas narrativas está, na maioria das vezes, em seu conteúdo e não na sua estética literária. Portanto, não espere tramas sofisticadas e/ou com recursos literários inovadores. Os livros do escritor angolano não precisam de nenhuma pirotecnia narrativa. O que ele faz muitíssimo bem é contar ótimas histórias com um colorido dramático genuíno.


Após destrinchar o trabalho ficcional de José Eduardo Agualusa, encerramos hoje as atividades dessa sexta temporada do Desafio Literário. Deixaremos para 2021 (mais precisamente para abril do próximo ano) as novas análises dos principais autores da literatura brasileira e da literatura mundial. Assim, de dezembro de 2020 a março de 2021, o Bonas Histórias irá se dedicar apenas as análises de obras individuais – devidamente registradas nos posts da coluna Livros – Crítica Literária. Boa literatura para todos!


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