Publicada em 1992, a primeira obra da escritora napolitana conquistou o reconhecimento do público e da crítica, além de importantes prêmios literários.
Como diria o poeta, comecemos o Desafio Literário desse bimestre pelo começo. O estudo da literatura de Elena Ferrante que o Bonas Histórias se propôs a fazer em julho e agosto inicia-se efetivamente hoje com a análise completa do romance de estreia da escritora italiana. O título em questão é “Um Amor Incômodo” (Intrínseca), minha leitura no último final de semana. Na época de seu lançamento, esse livro gerou um barulho bastante positivo na Itália. Ele caiu rapidamente no gosto do público leitor e da crítica literária. Para coroar o surgimento triunfal de Ferrante no cenário da prosa ficcional italiana, “Um Amor Incômodo” se destacou em importantes prêmios literários de âmbito nacional. Além de ter conquistado o Prêmio Procida-Isola di Arturo-Elsa Morante e o Prêmio Oplonti d'Argento como melhor romance daquela temporada, essa obra foi finalista do Prêmio Strega e do Prêmio Artemisia. Nada mal para uma autora até então desconhecida e que se escondia sob um pseudônimo que ninguém ouvira falar até então.
Publicado em 1992, “Um Amor Incômodo” é um thriller psicológico narrado em primeira pessoa por uma mulher napolitana que tem sérios problemas de relacionamento com a família, principalmente com a mãe e com o pai. Mesmo adulta e independente financeiramente, ela é atormentada por segredos e desavenças de sua infância. Só por essa descrição sucinta do primeiro romance de Elena Ferrante é possível ver que essa temática (drama envolvendo um clã napolitano e graves conflitos entre mãe e filha) irá permear as narrativas da escritora italiana daqui para frente. De certa maneira, esse resumo de “Um Amor Incômodo” é muito parecido às sinopses dos principais romances de Ferrante publicados nas três décadas seguintes.
Três anos depois do lançamento desse livro nas livrarias italianas, o diretor Mario Martone levou para as telas dos cinemas a adaptação do título de estreia de Elena Ferrante. O filme “Um Amor Incômodo” (L'amore Molesto: 1995) foi estrelado por Anna Bonaiuto, Angela Luce, Gianni Cajafa, Peppe Lanzetta e Giovanni Viglietti e sua exibição aconteceu no circuito comercial italiano e em festivais cinematográficos da Europa. O longa-metragem ajudou a popularizar ainda mais essa obra e sua autora na Itália. Vale a pena destacar que já em sua primeira publicação, Ferrante já despertava o interesse dos cineastas. Ou seja, essa corrida recente pela compra dos direitos de filmagem dos seus romances, conforme abordei na introdução desse Desafio Literário, não deveria ser uma surpresa. Tanto “Um Amor Incômodo” como “Dias de Abandono” (Biblioteca Azul), a segunda narrativa longa da romancista napolitana (e obra que será analisada no Bonas Histórias na semana que vem), foram levados ao cinema três anos depois dos lançamentos das versões literárias.
No Brasil, o romance “Um Amor Incômodo” só foi publicado em 2017, após o sucesso da série Napolitana, o maior êxito editorial de Elena Ferrante. Aproveitando-se do interesse crescente dos leitores desse lado do Atlântico pelas obras da escritora italiana, a Intrínseca resolveu lançar os títulos de Ferrante que não tinham sido comprados pela Editora Globo, dona do selo Biblioteca Azul. Assim, a editora carioca produziu as versões em português não apenas de “Um Amor Incômodo” como também de “Frantumaglia – Os Caminhos de Uma Escritora” (Intrínseca), coletânea de entrevistas, cartas, depoimentos e memórias da autora napolitana lançada originalmente em 2003, “A Filha Perdida” (Intrínseca), terceiro romance de Elena Ferrante, de 2006, “Uma Noite na Praia” (Intrínseca), trama infantil de 2007, e “A Vida Mentirosa dos Adultos” (Intrínseca), o mais recente romance da autora best-seller, publicado em 2019.
Em todos esses livros da Intrínseca, o responsável pela adaptação do texto do italiano para o português brasileiro foi Marcello Lino. Por isso, ele é, ao lado de Maurício Santana Dias (profissional encarregado da tradução dos quatro romances da série Napolitana, títulos da Biblioteca Azul), o principal tradutor de Elena Ferrante em nosso país. Em Portugal, vale a menção, “Um Amor Incômodo” foi traduzido como “Um Estranho Amor” pela Dom Quixote, hoje um selo da Leya. Confesso que gostei mais do título brasileiro. Há uma elegância maior em incômodo do que em estranho, algo mais compatível à prosa refinada de Ferrante. Entretanto, acho que a tradução mais correta seria algo como amor perturbador, um sentimento muito mais intenso e sombrio do que incômodo ou estranho e mais adequado ao termo original – L'amore Molesto.
O enredo de “Um Amor Incômodo” começa em Roma, mas se passa essencialmente em Nápoles. Narrada em primeira pessoa por Delia, uma napolitana de 45 anos que trabalha há muito tempo na capital italiana como ilustradora de histórias em quadrinhos, essa trama inicia-se com o falecimento de Amalia, a mãe da protagonista. A senhora de 63 anos morreu afogada em uma praia de Spaccavento, localidade perto de Minturno. O acidente fatídico aconteceu justamente no dia do aniversário de Delia.
Para surpresa do leitor mais sensível, a notícia da morte de Amalia é recebida pela filha com uma mistura de alívio e de indiferença. A moça não gostava da mãe. Na verdade, Delia nunca se deu bem com ninguém da família: ela odeia o pai e mantém distância protocolar das duas irmãs mais novas (que são casadas, têm filhos e moram em outras cidades). Solitária e profundamente melancólica, a ilustradora vive em Roma sob os traumas da infância passada no sul da Itália. Esses problemas de relacionamento de outrora são os responsáveis pela sua rotina atual, sem namorados, maridos, filhos, amigos ou qualquer envolvimento afetivo.
Precisando participar do funeral de Amalia e necessitando cuidar das questões burocráticas da morte da mãe, Delia viaja para Nápoles. Assim, ela volta a encontrar os parentes depois de muitos anos. Esse retorno à cidade natal e, por consequência, ao passado traumático escancara algumas feridas abertas no seio familiar. A protagonista do romance nunca superou, por exemplo, a separação dos pais ocorrida há 23 anos.
Enquanto juntos, Amalia e o marido viviam brigando. Extremamente ciumento, ele batia na mulher e a ameaçava física, psicológica e moralmente. Por sua vez, a esposa nunca escondeu que recebia em casa visitas suspeitas de um tal de Caserta, um sujeito casado e com filho que dava em cima de todas as mulheres da cidade. Aparentemente, Amalia era a sua preferida, pois Caserta lhe mandava corriqueiramente presentes, o que despertava a ira do pai de Delia e fazia explodir a violência naquele lar nada harmônico.
Além de reviver o período mais difícil de sua vida (a infância), a viagem a Nápoles serve para Delia aplacar a curiosidade por alguns detalhes mal explicados sobre o afogamento da mãe. No momento da morte, Amalia estava vestindo apenas um sutiã sensual e novo, algo que a filha via como incompatível com o guarda-roupa e os hábitos maternos. Para completar o enigma, Amalia estava viajando de férias por Spaccavento, algo inusitado desde que ela se separara do marido. E, o que parecia ainda mais difícil da filha acreditar, a mãe estava acompanhada por um homem nesse passeio pelo litoral italiano. Teria aquela senhora um namorado? Quem seria esse indivíduo?
Em outras palavras, a vida recente de Amalia era bem diferente daquela imaginada por Delia. Ao invés da pacata dona de casa napolitana que entrou na terceira idade e que não possuía qualquer vaidade nem flertava com o sexo oposto, a mãe da protagonista mostrava-se viva, revigorada e com uma rotina afetivo-sentimental bem ativa. Interessada em descobrir quem era efetivamente Amalia e, principalmente, quem era o homem que a acompanhava na viagem à praia, Delia inicia uma investigação particular. Ao tentar recriar os últimos passos da mãe, por quem jamais teve intimidade e carinho genuínos, ela encontra algumas peças que faltavam do quebra-cabeça de sua infância. Assim, é aberto o baú de segredos e enigmas do passado da família, algo que revela muitas surpresas para todo mundo.
“Um Amor Incômodo” possui 176 páginas e está dividido em 26 capítulos. Trata-se de um livro curtinho, principalmente para os padrões de Elena Ferrante. Quem encarou os tijolões da série Napolitana sabe sobre o que estou me referindo. Não à toa, esse é o romance mais enxuto da autora italiana que vamos analisar no Desafio Literário desse bimestre – ele tem o mesmo tamanho de “A Filha Perdida”, título que já analisamos em Livros – Crítica Literária, outra coluna do Bonas Histórias. Levei em torno de três horas e meia para concluir a leitura de “Um Amor Incômodo” no último sábado. Esse é o tipo de obra que dá para ler em um único dia. Se você tem mais fôlego literário, dá para lê-lo em uma só manhã ou em uma tarde apenas.
Esse romance é um drama psicológico bem intenso. Os segredos de Delia e de sua família são revelados aos poucos para os leitores através de flashbacks da narradora-protagonista e dos relatos obtidos de conhecidos (amigos, vizinhos e parentes). Juntamente com as lembranças e as descobertas da ilustradora, assistimos a passagens oníricas, o que embaralha ainda mais as peças colocadas em cima da mesa. Muitas vezes, Delia (uma narradora pouquíssimo confiável) sonha e imagina coisas, o que torna sua experiência em direção ao passado ainda mais complexa e desafiadora para o leitor. É incrível acompanhar esse recurso narrativo proposto por Elena Ferrante. A escritora napolitana consegue transformar em um suspense denso os dramas emocionais de sua protagonista.
Outra questão que merece destaque em “Um Amor Incômodo” é o clima noir de sua história. A ambientação do romance é recheada de sujeira, pobreza, barulho, perigo, calor, superlotação, mau cheiro, violência (de todos os tipos: violência doméstica, violência psicológica, ameaças de assassinato, estupro, infidelidade conjugal, suicídio, assalto, contravenção, falsificação...), segredos e mentiras. Nada poderia ser mais napolitano do que isso, diriam os adeptos dos clichês literários e dos preconceitos geográficos. Se faltam carinho e amor genuínos à vida da protagonista do livro, sobram tensão, angústia e receio de ela se relacionar com o mundo. Não apenas o clima familiar parece pesado e bélico como a própria cidade natal de Delia soa como um lugar desafiador, imprevisível e perigoso.
Por falar nisso, tive a impressão de que Nápoles é também uma personagem central de “Um Amor Incômodo”. O município sulino faz parte da trama com sua atmosfera de passionalidade efervescente, sensualidade incontrolável, machismo tóxico (haveria outro tipo de machismo?!), pobreza constante e violência endêmica. Além disso, passeamos pelas ruas napolitanas, pela geografia local e por suas particularidades (desde os dialetos até o inconfundível funicular). Ler Elena Ferrante é adentrar na Nápoles dos seus moradores mais humildes e problemáticos, um lugar quase sempre inacessível aos visitantes e turistas.
A sensação de constante incômodo que temos durante essa leitura é potencializada pelas características das personagens do livro. Todas as figuras aqui presentes (tanto os protagonistas quanto os coadjuvantes) são do tipo redonda. E elas possuem mais características de vilania do que de heroísmo (no sentido tradicional do termo). Tente, por exemplo, achar uma personagem com atitudes e caráter elogiáveis. Na certa, você não encontrará (ou terá muita dificuldade de achá-la). A impressão é que todos guardam segredos em “Um Amor Incômodo”, mascarando seus comportamentos indecorosos, suas faltas e suas falhas. Em outras palavras, acompanhamos um desfile de anti-heróis. Até mesmo figuras aparentemente à prova de qualquer suspeita (como mães, pais, filhos, tios, melhores amigos, vizinhos antigos) podem ser indivíduos repugnantes.
Ainda sob esse aspecto, temos uma protagonista extremamente polêmica. Delia é uma mulher muito estranha, para dizer o mínimo. Sua fixação e suas neuras pela mãe escondem na verdade certas características de psicopatia. Problemática, infeliz, mentirosa, egoísta e insensível, ela se justifica culpando a infância que teve em Nápoles e o matrimônio desastroso dos seus pais, que culminou em uma separação traumática até hoje. Se por um lado é difícil comprar o discurso de Delia, por outro é maravilhoso acompanhar os relatos de uma personagem tão complexa e desequilibrada psicológica e emocionalmente.
A essência dessa obra (o que Orhan Pamuk, o último autor analisado no Desafio Literário, chamava de centro do romance) está na relação tumultuada entre mãe e filha. A falta de intimidade de Delia com Amalia chega ao ponto da narradora se referir a progenitora mais pelo nome próprio (186 menções) do que pelo termo mãe (151 menções). Esse aspecto é uma clara indicação do distanciamento, da falta de amor e da deslegitimação da relação matriarcal/filial entre as duas personagens. Curiosamente, isso não acontece, por exemplo, com o pai. O pai de Delia, por mais que ela o odeie, é chamado o tempo inteiro de pai, ao ponto de eu não saber se ela citou o nome dele durante “Um Amor Incômodo” (acho que não). Mesmo com as inúmeras diferenças, com as várias críticas mútuas, com as cenas de violência física explícita e com a total falta de amor entre eles, ele é o pai dela e ponto final. No caso de Amalia não! A sensação é que ela não é a legítima mãe da narradora-protagonista.
Uma possível justificativa para o fato de a narradora chamar sempre a mãe pelo nome próprio pode estar presente na última frase do livro. Por falar nisso, o desfecho dessa trama é arrebatador. As duas últimas frases de “Um Amor Incômodo” são simplesmente geniais. Elas conseguem elevar a experiência literária ao exigir que o leitor reflita sobre a história que acabou de conhecer. Incrível!
Para quem gosta de procurar evidências autobiográficas nas tramas ficcionais (confesso que faço parte desse grupo), vale a pena dizer que “Um Amor Incômodo” foi dedicado à mãe de Elena Ferrante. O que isso significa, hein?! Não sei. Acho que nada. Ou talvez tudo. Sinceramente, não sei precisar. Porém, é inegável que essa homenagem chame a atenção do leitor mais atento. Afinal, estamos diante de uma obra na qual o conflito principal está na relação contraditória e bélica entre mãe e filha. É ou não é um prato cheio para teorias conspiratórias, né?
Agora entendo o motivo de “Um Amor Incômodo” ter recebido tantos prêmios e elogios da crítica literária italiana na época de seu lançamento. Realmente, temos aqui um romance excelente. É até difícil imaginar que ele seja efetivamente a obra de estreia de uma autora novata. Por isso, a impressão de que Elena Ferrante já fosse, no início da década de 1990, uma escritora carimbada (que, a partir de então, passou a publicar seus trabalhos com um pseudônimo). De duas uma: ou ela já era experiente no ofício de prosadora ficcional ou iniciou a nova carreira com grande maturidade estilística e total domínio das técnicas literárias. De qualquer forma, quem saiu ganhando foram os leitores. “Um Amor Incômodo” é sem dúvida nenhuma um título à altura de uma das principais figuras da literatura italiana da atualidade e uma das principais best-sellers da literatura contemporânea mundial. Por isso, lembre-se: o trabalho de Elena Ferrante vai muito além da série Napolitana.
Na próxima quarta-feira, dia 14, continuarei com a investigação da literatura de Elena Ferrante. Nessa data, retornarei ao Desafio Literário para analisar o segundo romance da autora italiana. O livro que será comentado é “Dias de Abandono” (Biblioteca Azul). Publicado em 2002, dez anos depois de “Um Amor Incômodo”, esse título representou a internacionalização da carreira de Ferrante. Se o seu primeiro romance foi um sucesso nacional, o segundo se transformou em um best-seller internacional. Não deixe de acompanhar, no Bonas Histórias, a análise de “Dias de Abandono” e a sequência do estudo da literatura de Ferrante no Desafio Literário. Até lá!
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