Publicada em 2019, esta obra é o oitavo romance de Ferrante, a principal escritora italiana da atualidade.
Na semana passada, li “A Vida Mentirosa dos Adultos” (Intrínseca), o mais recente romance de Elena Ferrante. Esse livro representou o primeiro lançamento da escritora italiana após o sucesso estrondoso da Série Napolitana, coletânea literária formada por “A Amiga Genial” (Biblioteca Azul), “História do Novo Sobrenome” (Biblioteca Azul), “História de Quem Foge e de Quem Fica” (Biblioteca Azul), e “História da Menina Perdida” (Biblioteca Azul). Se você não chegou agora ao planeta Terra e tem alguma familiaridade com os best-sellers da literatura contemporânea, na certa já ouviu falar dessa saga narrativa ambientada na cidade de Nápoles e protagonizada por duas amigas que se amam e se odeiam na mesma proporção.
Aos fãs de Ferrante, destaco que já analisamos no Bonas Histórias oito obras da autora. Além de todos os exemplares da Tetralogia Napolitana, temos posts comentando “Um Amor Incômodo” (Intrínseca), romance de 1992, “Dias de Abandono” (Biblioteca Azul), título ficcional de 2002, “Frantumaglia – Os Caminhos de Uma Escritora” (Intrínseca), obra não ficcional originalmente de 2003 com cartas, crônicas, ensaios e entrevistas da romancista napolitana, e “A Filha Perdida” (Intrínseca), narrativa longa de 2006. A discussão sobre “A Vida Mentirosa dos Adultos”, conteúdo do post de hoje do blog, encerra a avaliação individual dos livros do Desafio Literário de Elena Ferrante.
Publicado em 2019, “A Vida Mentirosa dos Adultos” é o oitavo romance de Ferrante. Mais uma vez, temos um drama psicológico enfocando uma família napolitana desajustada e extremamente caótica. Se você ficou assustado com as confusões dos Greco e dos Cerullo, clãs protagonistas da Série Napolitana, você precisa conhecer os Trada. Com fortes elementos de suspense, romance histórico e drama sentimental, “A Vida Mentirosa dos Adultos” subverte a lógica maniqueísta ao esconder por boa parte da obra (ou seria pela narrativa inteira?!) o real caráter de suas personagens. Afinal de contas, quem são as pessoas boazinhas e quais são os indivíduos realmente maus nessa trama?! Esse é o principal questionamento de Giovanna Trada, a narradora-protagonista do romance, uma adolescente devastada pela separação dos pais e pela influência contraditória de uma tia passional e barraqueira (ao melhor estilo napolitano).
Confesso que estava curioso para conhecer esse novo romance de Elena Ferrante. Minha dúvida (e, acredito, de boa parte dos leitores e dos críticos literários mundo à fora) era: o que será que Ferrante tem de novidade para nos apresentar depois da Tetralogia Napolitana, uma obra-prima da literatura italiana e da literatura contemporânea?! A curiosidade reside na eterna dicotomia que os romancistas de sucesso vivenciam em algum momento da carreira – o que manter em seu estilo narrativo (algo difícil de mudar a partir da aclamação já obtida) e o que entregar de novo ao público (uma necessidade inata para continuar cativando os leitores obra após obra)?
Admito que não tinha receio nenhum sobre a qualidade literária de “A Vida Mentirosa dos Adultos”. Afinal, todos os livros anteriores de Elena Ferrante são formidáveis. A autora italiana parece incapaz de produzir (ou pelo menos de lançar) um título ficcional de baixo nível ou mesmo de um patamar intermediário (até aqui isso não aconteceu!). A questão que me intrigava tanto era saber o quão original a nova obra seria. Na minha mente de escritor fracassado e de recursos limitados, eu não enxergava para onde ela poderia correr após a narrativa da Série Napolitana.
Para minha surpresa e alegria, Ferrante conseguiu mais uma vez se superar. Com uma trama mais enigmática e com um thriller psicológico ainda mais potente (simplesmente não sabemos em quem confiar e em qual discurso acreditar), assistimos a um excelente enredo dramático. “A Vida Mentirosa dos Adultos” até pode não ser melhor do que a coletânea formada por “A Amiga Genial”, “História do Novo Sobrenome”, “História de Quem Foge e de Quem Fica” e “História da Menina Perdida”, mas não fica muito atrás dos quatro romances antecedentes no quesito da qualidade ficcional. Ou seja, se não é uma obra excelente (até acho que é), o mais recente título de Elena Ferrante não está muito longe de ser uma narrativa magnífica e marcante.
No Brasil, “A Vida Mentirosa dos Adultos” foi publicado em setembro de 2020 pela Editora Intrínseca. A adaptação do texto para o português brasileiro foi realizada por Marcello Lino, tradutor e intérprete especializado no idioma italiano. Lino é, ao lado de Maurício Santana Dias, o principal tradutor da literatura de Ferrante em nosso país. Além dessa obra, Marcello Lino também traduziu outros quatro títulos da autora napolitana: “Um Amor Incômodo”, “Frantumaglia – Os Caminhos de Uma Escritora”, “A Filha Perdida” e “Uma Noite na Praia” (Intrínseca), o primeiro livro infantojuvenil de Elena Ferrante. Em Portugal, esse título foi lançado em setembro de 2020 pela Editora Relógio D´Água e foi traduzido por Margarida Periquito.
Mal chegou às livrarias internacionais, “A Vida Mentirosa dos Adultos” já teve os direitos de adaptação para a televisão comprados pela Netflix. Em maio de 2020, em pleno fuzuê causado pelo início da pandemia do novo coronavírus, a companhia norte-americana de streaming adquiriu a propriedade audiovisual dessa história de Ferrante por alguns milhões de dólares e sinalizou a intenção de produzir nos próximos meses uma série televisiva sobre a conturbada família Trada. Vale a pena destacar que nos últimos anos vários livros de Elena Ferrante tiveram seus direitos vendidos para o cinema e para a televisão. Assim, além de terem se tornado best-sellers internacionais, os romances da italiana também viraram (ou irão se transformar em) blockbusters mundiais.
Narrado em primeira pessoa por Giovanna Trada, uma adolescente napolitana de 12 anos, o enredo de “A Vida Mentirosa dos Adultos” começa em 1992. Até essa data, a vida da protagonista seguia uma ordem natural e tranquila ao lado dos pais e dos amigos. Os Trada faziam o gênero da família de classe média feliz, perfeita e admirável. Filha única de um casal de professores do ensino médio de Nápoles, Giovanna vivia em San Giacomo dei Capri, um ótimo bairro, e era uma excelente estudante. Muito amada pelo pai, Andrea, e pela mãe, Nella, a garota tinha duas grandes amigas, as irmãs Angela (da idade de Giovanna) e Ida (dois anos mais nova). Elas eram filhas de Mariano e Constanza, os melhores amigos de Andrea e Nella Trada. As duas famílias eram inseparáveis e transmitiam a imagem de grande segurança e de incontestável harmonia.
Quem conhece o portfólio ficcional de Elena Ferrante pode imaginar o quão estranho é o início desse livro. A romancista napolitana não é adepta de narrativas com clãs felizes, ajustados e harmônicos. Afinal, qual é a graça literária da felicidade alheia, né? Dessa maneira, não é surpresa que o mundo idílico em que Giovanna esteja inserida no começo da trama desmorone de uma hora para outra. E isso ocorre após ela ir mal na escola pela primeira vez. Apesar de estudar, a menina não consegue mais tirar boas notas. Abalado com o desempenho escolar abaixo da média, algo inadmissível para um professor, Andrea comenta com Nella quando estão à noite na intimidade do quarto do casal: a filha estaria ficando feia e má como a irmã dele, Vittoria.
Para desespero de Giovanna, ela ouve a conversa dos pais atrás da porta. Então, ela estava ficando feia?!!! Ela seria uma menina má?!!! E teria a personalidade da tia desconhecida?!!! Até então, a narradora-protagonista jamais ouvira os pais comentarem sobre a tal mulher. Andrea nunca tivera nenhum contato com sua família e isso não despertou curiosidade na menina. A partir daí, a adolescente fica obcecada pela figura de Vittoria Trada, a misteriosa irmã do pai.
Desejando conhecê-la a qualquer custo, Giovanna procura primeiramente uma imagem da tia nos álbuns de fotografia da família. Depois, ela tenta telefonar para a parente. Nas duas tentativas, não há qualquer êxito. Resta a opção de procurar pessoalmente aquela mulher pela cidade de Nápoles. Vendo a fixação da garota pela figura da tia e preocupados com a reação da filha se não conseguir aplacar a curiosidade que a norteia, Andrea e Nilla Trada acabam cedendo. Se no início eles não queriam assistir àquela aproximação de Giovanna com Vittoria, no fim permitem que a menina possa visitar a tia. Antes, porém, o pai explica o porquê não gosta da irmã.
Segundo Andrea, Vittoria é uma pessoa extremamente invejosa e sempre agiu para prejudicá-lo. Por isso, ele precisou cortar relações com ela há muitos anos. Desde o nascimento de Giovanna, Andrea não via nem conversava com seus familiares, uma gente pobre, rude, ignorante e mesquinha. Mesmo com o cenário catastrófico pintado pelo pai, a adolescente ainda sim quer conhecer Tia Vittoria, que trabalhava como empregada doméstica e vivia em um dos bairros mais pobres e perigosos de Nápoles. E assim, em um domingo, Giovanna visita sozinha a irmã do pai. Andrea a levou de carro até o subúrbio napolitano, mas não quis sair do veículo. Ele ficou esperando no lado de fora da casa o retorno da filha.
Se por um lado Tia Vittoria é mesmo vulgar, grosseira, simplória, mandona e escandalosa (exatamente como o Andrea havia informado à filha), por outro lado ela é calorosa, passional, amorosa, solidária e sincera. Ao ouvir as histórias antigas da tia, Giovanna descobre outra versão para a desavença familiar. Segundo o ponto de vista de Vittoria, Andrea é mesquinho, arrogante e cruel. Não apenas ela deixou de falar com ele, mas os outros três irmãos deles também cortaram definitivamente relações com o professor. Na visão dos irmãos de Andrea, ele é uma pessoa pouco confiável, ingrata e avarenta. Seus principais defeitos são a obsessão pelo dinheiro e o egoísmo ilimitado.
Com a intenção de alertar a sobrinha para o caráter pouco digno do pai, Tia Vittoria pediu para Giovanna ficar atenta. A garota deveria reparar bem no que acontecia em casa. Na certa, tanto o pai quanto a mãe da protagonista estavam aprontando alguma coisa obscura e a menina não enxergava os podres dos pais por amá-los. Ao voltar para ao lar naquele domingo, Giovanna muda de comportamento em relação aos progenitores. Ela fica mais atenta e, como consequência, se depara com uma faceta de Andrea e Nilla que jamais tinha imaginado. É o início da ruína dos Trada.
Em pouco tempo, a imagem da família feliz, harmônica e bem estruturada desaparece. Enquanto se desilude cada vez mais com as descobertas das personalidades dos pais, Giovanna vê com bons olhos o jeitão sincero, espalhafatoso, exagerado e humano da tia. O distanciamento da garota em relação a Andrea e Nilla, aos antigos amigos (Angela e Ida) e aos colegas de escola coincide com a aproximação da narradora-protagonista com Vittoria, com a família paterna (tios, tias, sobrinhos...) e com os novos amigos do subúrbio de Nápoles.
Não é errado afirmar que nasce, a partir daí, uma nova Giovanna Trada. A nova figura, chamada carinhosamente por Giannina pela tia e pelos primos, é, como disse o pai lá trás, cada vez mais parecida à Vittoria, para desespero da própria Giovanna (que se recusa a se ver na nova condição) e daqueles que estão ao seu redor (impacientes com os novos comportamentos da menina). E é com essa personalidade que ela deve encarar os desafios da adolescência, uma fase por si só recheada de contradições, questionamentos, inseguranças e transformações físicas, psíquicas, emocionais e amorosas.
“A Vida Mentirosa dos Adultos” possui 432 páginas. O conteúdo desse romance está dividido em 7 partes, o que totaliza 89 capítulos. Levei aproximadamente 9 horas para concluir sua leitura. Precisei de dois dias para tal empreitada – foram pouco mais de 4 horas de leitura na quinta-feira e cerca de outras 5 horas na sexta. Entre as obras ficcionais de Elena Ferrante, “A Vida Mentirosa dos Adultos” só perde em extensão para “História da Menina Perdida” (480 páginas) e “História do Novo Sobrenome” (472 páginas), respectivamente os volumes 4 e 2 da Série Napolitana. Em outras palavras, esse oitavo título da autora italiana é seu terceiro trabalho mais volumoso.
A primeira característica de “A Vida Mentirosa dos Adultos” que gostaria de destacar é a alta tensão dramática da narrativa. Temos aqui um thriller psicológico intenso. O que potencializa o suspense é a incerteza de quem está falando a verdade e de quem está mentindo para Giovanna Trada. A adolescente não sabe em quem acreditar. Suas dúvidas são compartilhadas com os leitores, que tentam desvendar os segredos da família da protagonista. A sensação é que assistimos a uma trama recheada de personagens contraditórias, pouco confiáveis e donas de caracteres extremamente questionáveis.
Por falar na constituição moral das personagens, esse romance é constituído essencialmente de figuras redondas. Esse recurso não é apenas encontrado em “A Vida Mentirosa dos Adultos”, mas é uma das marcas mais fortes da literatura de Ferrante – ele está presente em todos os seus títulos ficcionais. Assim, sempre ficamos em dúvida em quem acreditar e em quem confiar. Os pais, os amigos e os parentes mais próximos de Giovanna possuem várias características negativas que se contrapõem aos aspectos positivos de suas personalidades. Nessa obra (e no portfólio romanesco de Elena Ferrante como um todo), ninguém é 100% bonzinho e ninguém é 100% mauzinho (diria que cada pessoa tem 95% de aspectos negativos e apenas 5% de elementos positivos). Entender as nuances de cada figura retratada nas páginas dessa narrativa é o grande desafio da narradora-protagonista e dos leitores.
A pessoa que melhor escancara essas contradições é Vittoria Trada, sem dúvida nenhuma a personagem mais incrível de “A Vida Mentirosa dos Adultos”. A tia de Giovanna possui inúmeras características negativas: é amarga, mal-educada, estúpida, passional, encrenqueira, metida, grosseirona e lasciva. Por outro lado, ela é religiosa, carinhosa, emotiva, altruísta, sensível, fiel e superprotetora. Enxergá-la como a vilã do enredo ou como o anjo protetor da protagonista irá depender mais da interpretação do leitor do que das definições objetivas apresentadas no texto de Elena Ferrante.
Gostei tanto da Tia Vittoria (como personagem literária) que senti falta de sua presença na segunda metade de “A Vida Mentirosa dos Adultos”. Inexplicavelmente, ela some das cenas a partir da parte IV do livro, quando Giovanna passa a cuidar mais de sua própria vida e adquire uma fixação pelos “primos”, os filhos de Enzo e Margherita. Admito que esse sumiço da barraqueira napolitana que causa amor e ódio por onde passa acabou me desapontando um pouco. Na minha visão, desvendar a complexidade da personalidade de Vittoria Trada era mais interessante do que acompanhar o florescimento sexual de Giovanna.
Olhando para Giovanna Trada, note que a adolescente é uma narradora-protagonista bem diferente das demais de Elena Ferrante. Afinal, Delia (de “Um Amor Incômodo”), Olga (de “Dias de Abandono”), Leda (de “A Filha Perdida”) e Elena Greco (de “A Amiga Genial”, “História do Novo Sobrenome”, “História de Quem Foge e de Quem Fica” e “História da Menina Perdida”) eram narradoras pouco confiáveis. Lembremos: Delia era uma psicopata imprevisível; Olga surtou após o pedido de separação do marido; Leda escondia sentimentos soturnos em uma rotina aparentemente tranquila e banal; e Lenu Greco movia-se pela inveja da melhor amiga, além de ser extremamente egoísta. Por sua vez, o relato de Giovanna não adquire o caráter pouco confiável das tramas anteriores de Ferrante. Sua narrativa me pareceu bastante sincera e fiel. Na verdade, o drama da sobrinha de Vittoria está mais na incerteza do caráter de todas as pessoas que a rodeiam do que em problemas efetivos da sua personalidade.
Por esse prisma, uma ou outra dúvida que Giovanna possa ter (a sexualidade, as aspirações, os hábitos e os gostos pessoais, por exemplo) e algumas rebeldias latentes (comuns da maioria das garotas e garotos dessa idade) são mais frutos da fase de vida em que ela está passando (ah, a adolescência!) do que falta de caráter (ela é uma boa menina no final das contas).
Curiosamente, enquanto os relatos em primeira pessoa de Delia, Olga, Leda e Elena Greco queriam nos provar, através da estratégia da vitimização, que elas eram boas pessoas (não eram não – nem aqui nem na Lua!), Giovanna Trada faz o contrário: tenta a todo momento se passar por uma má pessoa (mas ela não é!). Gostei muito desse expediente narrativo. Por ingenuidade, imaturidade e/ou revolta, a adolescente napolitana confunde seus sentimentos e suas vontades mais íntimas com aspectos de vilania.
Não dá para falar de “A Vida Mentirosa dos Adultos” sem tratar da sexualidade de suas personagens. Para começo de conversa, o homossexualismo e a bissexualidade são mais explícitos nesse romance do que nos anteriores de Elena Ferrante (recordemos a cena de Elena Greco dando banho em Rafaella Cerullo antes do casamento de Lila com Stefano). Aqui temos pegação lésbica totalmente transparente envolvendo várias personagens (Angela e Ida, por exemplo) e a própria protagonista da trama (Giovanna). Se antes as narradoras de Ferrante flertavam rapidamente com o lesbianismo (em passagens pontuais) e os gays eram personagens secundárias do enredo (isso é, quando apareciam – lembro de Afonso Carracci na Série Napolitana), em “A Vida Mentirosa dos Adultos” não há qualquer receio de se mergulhar nessa questão. Exatamente por isso, em muitos capítulos desse livro me lembrei de “Carol” (L&PM Pocket), romance homoafetivo marcante de Patricia Highsmith, e, principalmente, de “O Diário Roubado” (Klick), a primeira novela de Régine Deforges.
O que não mudou em “A Vida Mentirosa dos Adultos” é a conotação negativa do ato sexual quando praticado entre homens e mulheres. Para as personagens femininas de Ferrante, o sexo com os homens é algo repugnante, grosseiro, sujo, ilegal e feito exclusivamente para aliviar as vontades masculinas. Essa prática também está totalmente desassociada do amor romântico (exceção é a relação de Vittoria e Enzo, apesar de ser um relacionamento extraconjugal) e é uma obrigação social das mulheres (a partir de determinada idade). Se nos livros anteriores da romancista napolitana essa característica soava mais como um tom conservador da sociedade italiana, aqui temos uma explicação mais condizente – o lesbianismo como escapatória para a libido feminina.
Analisar a literatura de Elena Ferrante é estudar narrativas com começos e desfechos espetaculares. “A Vida Mentirosa dos Adultos” não fica atrás nesses quesitos. O início dessa trama é brilhante. Em apenas um parágrafo (ou seria na primeira frase, hein?!), somos atirados de cabeça ao conflito da obra. Incrível! O desenlace do romance também é contundente, emblemático e simboliza as escolhas da narradora-protagonista - à la Thelma & Louise (1991).
Mais uma vez, Ferrante utiliza Nápoles como cenário narrativo e aborda as variantes linguísticas do italiano como elementos de divisão social. A cidade do Sul da Itália é apresentada em suas diferentes facetas: a área rica e bonita (onde Giovanna Trada nasceu e mora) e a região pobre, feia, suja e violenta (onde Tia Vittoria vive). Para completar, a elite econômica e intelectual de Nápoles usa apenas o idioma italiano no dia a dia. Por sua vez, o povo mais simples e pobre do município ancora sua rotina no idioma napolitano, um dialeto local. Essas contradições geográficas e linguísticas servem de mote para “A Vida Mentirosa dos Adultos” escancarar os descompassos dramáticos de Giovanna – a vida tranquila, harmônica, abastada e feliz da protagonista até os 12 anos quando ela usava exclusivamente o italiano na parte nobre da cidade; e o mergulho no caos sentimental, existencial e psicológico da adolescente ao descobrir a existência da tia suburbana e rude que se expressa quase que exclusivamente pelo dialeto napolitano.
Por fim, gostei muito da tradução dos níveis escolares feitas por Marcello Lino (um grave defeito do texto em português da Série Napolitana) e adorei o título desse romance. Aos olhos de uma adolescente complexada, a rotina dos adultos é mesmo cercada de mentiras que precisam ser ocultadas (para o bem das famílias e da sociedade hipócrita e conservadora).
Em suma, se você (assim como eu) pensou que Elena Ferrante tinha gastado todo o seu talento literário na Tetralogia Napolitana, saiba que a escritora italiana conseguiu se superar outra vez ao trazer novidades narrativas para um enredo de tirar o chapéu. Se a “A Vida Mentirosa dos Adultos” não for o melhor romance da autora, ele está entre os melhores de Ferrante e da literatura contemporânea como um todo. É muito legal acompanharmos a inesgotável capacidade criativa de uma escritora que nos entretém com tramas inquietantes, inteligentes, polêmicas e recheadas de personagens contraditórias.
Para encerrar o Desafio Literário desse bimestre, anuncio que no próximo sábado, dia 28, retornaremos ao Bonas Histórias para tecer a análise completa da literatura de Elena Ferrante. Afinal, depois de comentarmos individualmente oito livros da principal autora italiana da atualidade, já estamos mais do que aptos para discorrer sobre seu estilo narrativo, as características de suas obras e suas escolhas artísticas, além de debater, claro, mais uma vez a questão de sua verdadeira identidade (um mistério guardado a sete chaves por seus editores). Não perca o post com o panorama aprofundado do portfólio da romancista napolitana, a última peça do Desafio Literário de Ferrante.
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