Na sexta-feira passada, li mais um livro de José Eduardo Agualusa, o escritor angolano que estamos analisando no Desafio Literário deste mês. Depois de conferir quatro romances adultos, “A Conjura” (Gryphus Editora), “Nação Crioula” (Gryphus Editora), “O Vendedor de Passados” (Tusquets) e “As Mulheres do Meu Pai” (Língua Geral), senti a necessidade de conhecer um pouco de sua literatura infantil e literatura infantojuvenil. Assim, minha escolha desta vez recaiu sobre “Nweti e o Mar” (Gryphus Editora), uma das últimas obras de Agualusa destinada ao público infantil. Vale a pena ressaltar também que o livro possui um dos projetos gráficos mais impactantes em que me deparei neste ano (seu visual é capaz de encantar até mesmo os leitores mais crescidinhos e exigentes).
Publicado em maio de 2011, “Nweti e o Mar” é o quinto título infantil/infantojuvenil de José Eduardo Agualusa. Os primeiros foram: “Estranhões e Bizarrocos” (Dom Quixote), de 2000, “A Girafa que Comia Estrelas” (Dom Quixote), de 2005, “Na Rota das Especiarias” (Dom Quixote), de 2008, e “Um Pai em Nascimento” (Alfaguara Portugal), de 2010. Em 2012, José Eduardo publicou mais um livro nessa linha, “A Rainha dos Estapafúrdios” (Moinho de Vento). A partir daí, ele não lançou mais nada para o público mirim.
Como é possível notar pelos nomes das editoras citadas no parágrafo anterior, a maioria dessas obras foi lançada apenas em Portugal. Os leitores brasileiros, infelizmente, ainda não têm acesso direto à grande parte do portfólio infantil e infantojuvenil do autor. Para nossa sorte, “Nweti e o Mar” não sofre desse mal - ele foi publicado em nosso país tanto em versão impressa quanto em versão eletrônica. Exatamente por isso, escolhi analisá-lo no post de hoje do Bonas Histórias.
Diferentemente das outras publicações infantis e infantojuvenis de José Eduardo Agualusa, “Nweti e o Mar” não apresenta ilustrações e sim fotografias. As imagens foram tiradas pelo próprio autor durante uma viagem de férias com a família. Ele fotografou a filha Vera Regina, então com seis anos, e a alçou ao papel de protagonista desta trama que mistura realidade com ficção e realismo fantástico com universo onírico. O resultado é uma bonita história sobre a infância, a relação entre pais e filhos e a beleza misteriosa do mar.
Para quem estranhou o fato de Agualusa produzir livros também para os pequenos, é preciso salientar o caráter eclético de sua literatura. O escritor angolano não fica restrito ao desenvolvimento de romances adultos. Ele produz também obras poéticas, coletâneas de contos e crônicas, novelas, peças teatrais e, por que não, títulos infantis e infantojuvenis. Curiosamente, essa característica (a versatilidade narrativa) é algo típico dos principais autores africanos contemporâneos de língua portuguesa (algo que sinceramente não vejo tanto nos escritores brasileiros de destaque – que são geralmente mais especializados em um único ou em poucos gêneros narrativos).
Quando analisamos, nas temporadas anteriores do Desafio Literário, os trabalhos ficcionais de Mia Couto e Ondjaki, por exemplo, notamos que eles também navegam com excelência pelos diferentes tipos textuais. E entre essas publicações tão distintas, temos também ótimos exemplares da literatura infantil e da literatura infantojuvenil. No caso do moçambicano, fiquei positivamente impressionado com “O Gato e o Escuro” (Companhia das Letrinhas). Em relação a Ondjaki, compatriota de Agualusa, lembro que gostei bastante de “A Bicicleta que Tinha Bigodes” (Pallas).
No enredo de “Nweti e o Mar”, conhecemos Nweti, uma menina que acabou de completar seis anos de idade. Ao dormir, ela sonha frequentemente que é uma sereia. Em seus passeios pelos mares, ela faz amizade com Eustáquio, um caranguejo que vive dentro de conchas. Os dois são os melhores amigos um do outro e trocam impressões sobre a vida. Eustáquio não acredita que Nweti está sonhando sempre que o vê. Ele também duvida que ela é uma menina ao acordar (pensa que ela é sempre uma sereia). Por sua vez, Nweti não acredita que o caranguejo exista fora dos seus sonhos.
Por mais que a garota conte para seus pais as aventuras noturnas que protagoniza, ninguém a leva a sério. Eles acham que Nweti possui uma imaginação muito forte e que não sabe distinguir a realidade e os sonhos. Nem mesmo quando seu travesseiro amanhece com cheiro de mar, os pais acreditam na menina. Essa situação perdura até a próxima viagem de férias da família. Nweti vai ao lado do pai e da mãe para uma praia remota. Lá, ela poderá, enfim, conhecer seu amigo (até então) onírico e vivenciar a experiência de estar verdadeiramente ao lado do mar e junto aos seres marinhos.
Como é característico dos livros infantis, “Nweti e o Mar” é uma obra curtinha – possui apenas 44 páginas. Seu conteúdo é dividido, quase que meio a meio, entre parte textual e parte visual (as fotografias). Levei menos de quinze minutos para percorrer todas as páginas desta publicação. Essa celeridade tem uma explicação: sou adulto e estava desacompanhado de uma criança. O recomendado é ler esta obra ao lado da garotada (a partir dos cinco anos) ou deixar os jovens leitores (de nove a onze anos) degustarem sozinhos a experiência literária. Na certa, nesses dois casos, o tempo de leitura será mais demorado.
A primeira questão que chama a nossa atenção em “Nweti e o Mar” é o caráter pessoal desta narrativa. As fotos que estampam a capa e as páginas internas da obra foram tiradas pelo próprio José Eduardo Agualusa em suas férias com a família. O destaque das imagens é, claro, a filha caçula do escritor, Vera Regina. Ela aparece no avião, na areia da praia, dentro da água e brincando com os animais marinhos. Ao redor da menina, é possível notar o ambiente familiar (o carro e a casinha em que os Agualusa ficaram hospedados), a praia, os meninos da localidade jogando bola, os barcos dos pescadores e as residências da pequena vila litorânea. O livro é quase um retrato de viagem. Na última foto, vemos até mesmo o autor no mar com a filha, o que dá um toque ainda mais pessoal e intimista para esta publicação.
Na época em que “Nweti e o Mar” foi produzido, José Eduardo tinha dois filhos: Carlos, então com treze anos, e Vera Regina, de seis. Enquanto o primogênito é fruto de seu casamento anterior, a caçula é fruto de seu casamento atual (com Yara Costa, cineasta e jornalista moçambicana). Ambas as crianças nasceram em Angola e são citadas na dedicatória do livro. Além de protagonizar esta obra (ao menos na parte fotográfica, já que na parte textual a personagem principal leva o nome de Nweti), Vera Regina também aparece na dedicatória de “A Vida no Céu” (Melhoramentos), romance de Agualusa de 2013. Para quem possa se interessar pela vida pessoal do autor, ele e Yara Costa ainda tiveram mais um filho recentemente, em 2018.
Não é preciso dizer que Nweti é o alter ego de Vera Regina. A relação entre a parte textual do livro (trama ficcional da menina sonhadora) e a parte visual (imagens verídicas de uma garota em uma viagem pelo litoral) permite ao leitor fazer a associação: Nweti é a Vera Regina. Em “Nweti e o Mar”, a mistura entre realidade e ficção não se dá apenas na história contada (até onde os sonhos da pequena protagonista são produtos de sua imaginação ou são episódios factuais?), mas também se dá na própria estrutura formal do livro (união intrínseca dos aspectos textuais e dos visuais). Se você já tinha ficado confuso em “As Mulheres do Meu Pai” sobre o que era relato real e o que era relato fictício, saiba que neste livro essa inquietação será potencializada.
Outra questão forte desta obra (e dos trabalhos ficcionais de Agualusa de uma maneira geral) é a inserção de elementos de realismo fantástico à trama. Não ache que isso se deu neste título porque o público-alvo de “Nweti e o Mar” é constituído por leitores mirins. Não! Esta é uma característica genuína do autor angolano, que se propaga pelos seus romances, pelas novelas, pelas coletâneas de contos e, como não seria diferente, pela sua literatura infantil e infantojuvenil. Parte da beleza e da força dos textos de José Eduardo Agualusa passa necessariamente pelo mundo mágico que ele cria. A dúvida que o leitor tem em “Nweti e o Mar” é sobre quem está certo no final das contas: os pais da menina (racionais e pouco propensos, como todos os adultos, a acreditar no universo fantástico da filha) ou a menina sonhadora (que embarca de corpo e alma, como toda criança, em sua imaginação)?
A temática de “Nweti e o Mar” gira em torno da beleza da infância, uma época de sonhos, de liberdades imaginativas e de constituição das primeiras amizades. A descoberta do mundo pela criança se dá geralmente de forma poética e emotiva. É o que o livro mostra. Portanto, esqueça o ambiente de violência, as injustiças sociais, o tom de denúncia e os dramas étnicos-raciais que tanto caracterizaram os romances de Agualusa. Aqui a pegada é mais leve e colorida.
Admito que o conteúdo deste livro é bonito e tocante. Contudo, a beleza maior, ao menos para mim, ainda sim se dá pelo seu aspecto gráfico e visual. Eita publicação mais caprichada essa! Se por um lado “Nweti e o Mar” caminha por elementos óbvios (como a preponderância da cor azul, que faz referência ao mar, e o formato quadrado, que dialoga mais com os títulos infantis), por outro lado ele consegue nos surpreender (as fotografias dão um ar de realidade e de seriedade à história, quando a escolha mais fácil seria pelas ilustrações, que reforçariam mais o lado infantil e imaginativo da trama).
Gostei de “Nweti e o Mar”. Ao final de sua leitura, confesso ter ficado com vontade de conhecer mais a literatura infantil de Agualusa. Porém, isso não se dará tão cedo. O Desafio Literário de novembro continuará na próxima quinta-feira, dia 26, com um romance adulto. O sexto e último livro deste autor que será analisado no Bonas Histórias neste mês é “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” (Tusquets). Publicada em 2017, esta obra é uma das mais premiadas e aclamadas do escritor angolano. Não perca o debate sobre “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” e a sequência do estudo sobre a literatura de José Eduardo Agualusa. Até mais!
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