No último final de semana, li “O Garoto da Loteria” (Rocco Jovens Leitores), o romance de estreia do inglês Michael Byrne. Sucesso nas livrarias do Reino Unido há aproximadamente cinco anos, esta obra foi traduzida para uma dezena de idiomas e lançada com êxito no exterior. Em vários países da Europa, o livro de Byrne chegou a figurar na lista dos mais vendidos. No Brasil, ele foi editado no primeiro semestre de 2017, mas não conseguiu entrar ainda no ranking dos títulos ficcionais mais comercializados. Mesmo assim, esta publicação obteve por aqui números razoáveis, que muitos autores nacionais ou internacionais dificilmente conseguem conquistar, ainda mais em se tratando de um primeiro trabalho.
Não sei se “O Garoto da Loteria” foi o melhor romance que li neste ano (desconfio que não), mas foi sem dúvida nenhuma o que mais mexeu comigo (disso tenho certeza!). Fiquei tão angustiado com o suspense dramático do menino de doze anos e sua valente cachorrinha (a dupla percorre sozinha as ruas de Londres enfrentando todo tipo de perigo e adversidade) que estou até agora, três dias depois da leitura, com as cenas desta trama atormentando minha mente. Há um bom tempo não sentia tanta inquietação durante uma história ficcional. Por isso, minha vontade de analisar este livro o quanto antes na coluna Livros – Crítica Literária do Bonas Histórias.
Publicado originalmente em maio de 2015 na Inglaterra, “O Garoto da Loteria” transformou o desconhecido Michael Byrne em um escritor profissional. Depois de trabalhar por alguns anos como professor de inglês em escolas de ensino médio da região metropolitana de Londres, Byrne resolveu mudar de profissão – ele se tornou taxista. Quando não estava nas ruas levando e trazendo os passageiros, Michael Byrne, um apaixonado pela literatura e, principalmente, pelo fazer literário, se arriscava de maneira amadora na produção ficcional. “O Garoto da Loteria” surgiu do hobby/sonho do autor em adentrar no mundo da prosa comercial.
Provando que a literatura inglesa contemporânea é uma bem azeitada oficina (ou seria usina, máquina ou fábrica?) de revelação e disseminação de novos talentos (uma realidade que, infelizmente, ainda estamos muito, muito e muito longe de atingir no Brasil), os originais de Michael Byrne caíram na roda da indústria ficcional local. Daí o texto de “O Garoto da Loteria” passou pelas mãos hábeis de agentes literários, editores, editoras, gráficas, livreiros, críticos literários e, por fim, consumidores. Estava pautado, assim, o caminho para o lançamento de um thriller com uma narrativa forte e emocionante, capaz de encantar os leitores de todas as idades.
Com o sucesso quase que meteórico de “O Garoto da Loteria”, Michael Byrne abandonou definitivamente o táxi e o magistério. Atualmente, ele é escritor em tempo integral. Contudo, seus novos títulos ainda não foram traduzidos para o português. A maioria deles está por enquanto apenas na versão em inglês. Ou seja, será preciso esperar um pouco mais para sabermos se Byrne terá uma carreira internacional vigorosa e longeva como a de muitos de seus compatriotas (a literatura britânica é uma das líderes do Mercado Editorial brasileiro há algum tempo, superando em muitos anos a badalada literatura norte-americana).
O enredo de “O Garoto da Loteria” se passa em agosto de 2013. O cenário é a capital inglesa. A narração é feita em terceira pessoa por um narrador colado a Bully, o jovem protagonista. Bully, cujo nome verdadeiro é Bradley, é um menino de doze anos que mora nas ruas de Londres. Ele sobrevive entre a mendicância e a prática de pequenos delitos. Sua única companhia é a cachorrinha Jack (apesar do nome masculino, trata-se de uma fêmea), uma mistura de Bull Terrier com alguma raça desconhecida.
A dupla de personagens vive ao relento desde que a mãe de Bully morreu há mais ou menos seis meses. Como o garoto não gostava do padrasto nem da meia-irmã, ele resolveu simplesmente abandonar o lar sem dar quaisquer explicações para a família. A partir daí, o menino passa os dias e as noites nas ruas londrinas ao lado da fiel, obediente e corajosa Jack. Eles tentam superar como podem a fome, a pobreza e a violência das quais os moradores de rua das grandes cidades do mundo são vítimas cotidianamente.
De repente, a sorte parece sorrir para o garoto órfão. Ao abrir o cartão de aniversário que a mãe deixou (obviamente, antes de falecer), Bully encontra um bilhete de loteria. Foi ele quem fez aquela aposta e deu para a mãe, quando ela estava internada no hospital. Prevendo a possível morte e esperançosa de ganhar uma bolada na loteria, a mulher escondeu o bilhete no cartãozinho de aniversário do filho e o entregou ao menino. Por isso, demorou tanto tempo para Bully achá-lo, apesar de abrir diariamente o cartão para se lembrar da matriarca.
Ao visitar uma lotérica para ver se tinha ganhado o prêmio, o protagonista é surpreendido duplamente pelas informações dadas pelos profissionais do estabelecimento: sim, ele tinha ganhado o prêmio máximo (de valor milionário); e ele possui pouco mais de cinco dias para ir até Camelot, a empresa encarregada do concurso, para retirar a bolada. Afinal de contas, o vencedor da loteria tem um tempo limite de seis meses para reclamar o prêmio. Como o sorteio aconteceu mais ou menos nesse intervalo, o prazo que o garoto tem para apresentar o bilhete e sacar a grana é de menos de uma semana. De certa forma, trata-se de uma corrida contra o tempo.
O problema inicial de Bully é que ele não tem dinheiro para pegar um táxi e ir até Watford, sede da Camelot. Watford é uma cidade da região metropolitana de Londres que fica a cerca de 30 quilômetros ao norte do centro da capital inglesa, onde o garoto vive. Ele também tem medo de pegar trem ou ônibus e ser preso pelos policiais (lembremos que Bully é um menino de rua). Por isso, o protagonista resolve caminhar a pé até Camelot. Em seu raciocínio, ele chegará à empresa de loteria em menos de cinco dias. Porém, o menino não contava com um segundo obstáculo – ele não conhecia o caminho que precisaria percorrer.
As agruras de Bully se tornam realmente intransponíveis quando, ingenuamente, ele conta para uns amigos mendigos que ganhou na loteria e que irá até Watford sacar o prêmio milionário. Não demora para a notícia se espalhar entre a população de rua de Londres. Aquela informação chega aos ouvidos de Janks, um sujeito que vive fazendo maldades com os mendigos e que adora rinhas de cachorro. Ele mobiliza sua gangue para achar Bully e tomar seu bilhete premiado antes que o garoto chegue à Camelot.
Iniciam-se, a partir daí, os cinco dias mais eletrizantes e dramáticos da vida de Bully e Jack. A dupla de amigos precisará lutar sozinha contra tudo e contra todos para não ser assaltada nem morrer nas mãos dos criminosos do centro de Londres. Sem poder confiar em ninguém, Bully sabe que qualquer novo erro poderá ser fatal tanto para ele quanto para sua cachorrinha.
“O Garoto da Loteria” tem 256 páginas e está dividido em 30 capítulos. A tradução para o português brasileiro ficou à cargo de Marcelo Schild Arlin (o título original é “Lottery Boy”). Marcelo Schild é licenciado em língua inglesa e possui mais de uma década de experiência na tradução de obras ficcionais e não ficcionais para as principais editoras do Brasil. Levei, no último sábado, entre cinco horas e meia e seis horas para percorrer todo o conteúdo desta publicação. Fiquei tão comovido com esta história que li o romance inteiro no mesmo dia (não consegui desgrudar de suas páginas). Comecei a leitura de manhã e no começo da noite já havia chegado ao último capítulo.
Este livro de Michael Byrne é um thriller melodramático. O suspense da trama (conseguirá Bully fugir dos criminosos que o perseguem e sacar o prêmio que lhe pertence por direito?) vem acompanhado por um drama comovente (o garotinho precisa sobreviver sozinho pelas ruas de Londres tendo como única companhia seu amado cachorrinho). Impossível não se envolver com um enredo como este. Ao mesmo tempo em que somos tocados pela adrenalina da ação (e põe ação nisso!), também acabamos sensibilizados pela trajetória difícil do protagonista. Não estou exagerando quando digo que há partes neste livro de deixar o leitor com o coração na mão. Em vários momentos, quase perdi o fôlego.
Como já falei no início deste post, há muito tempo não ficava tão angustiado lendo uma obra ficcional. Para você ter uma ideia de como “O Garoto da Loteria” mexeu comigo, minha irmã veio me visitar no sábado na hora do almoço. Surpresa, ela me questionou: “Por que você está mal-humorado hoje? Eu fiz alguma coisa para você ficar chateado comigo?”. Minha tensão com a leitura era tamanha que não consegui relaxar nem mesmo quando larguei temporariamente o livro. Minha irmã não acreditou quando disse que não estava mal-humorado e sim tenso com a leitura. Na certa, ela é daquele tipo de pessoa que não crê que a literatura é capaz de mexer tão intensamente conosco.
A ação e o suspense do romance de Byrne são potencializados por vários recursos narrativos bem executados: roteiro ao estilo cinematográfico (ao melhor estilo Harlan Coben), ritmo narrativo impecável (a tensão não esmorece) e presença de um cronômetro que mostra ao leitor quanto tempo o protagonista tem para concluir a missão. A contagem regressiva transforma “O Garoto da Loteria” quase que em um escape game. A leitura desta obra se torna mais forte quando entramos para valer em sua proposta estética.
Outro ponto positivo de “O Garoto da Loteria” está em sua dupla de protagonistas. Eles são extremamente carismáticos. Ou alguém em sã consciência não iria se solidarizar com um menino de doze anos e seu esperto cãozinho que precisam encarar bravamente os perigos das ruas, hein? Além disso, Bully está longe de ser uma personagem plana. De maneira sábia, Michael Byrne construiu uma figura redonda para protagonizar sua obra de estreia na ficção. O menino possui qualidades positivas (é carinhoso e responsável com Jack, nutre grande saudades da mãe e tem um bom coração) e defeitos (é arruaceiro, impertinente e mal-educado e, quando precisa, comete pequenos crimes).
Note que Bully é, em uma perspectiva naturalista, quase como um vira-lata social. Ele age quase sempre de forma contraditória: é inteligente e esperto, mas não tem escolaridade nem conhecimento teórico e prático da vida; é corajoso para muitas situações e medrosos para outras tantas (lembremos que ele só tem doze anos!); fica preso à realidade brutal do seu cotidiano, mas não deixa de sonhar com um futuro melhor; é carinhoso e sentimental com Jack e, ao mesmo tempo, é frio e insensível em relação às demais pessoas (principalmente se elas tiverem dinheiro); e diz não ter qualquer apreço pela família, mas não consegue se esquecer da mãe. Assim, temos um protagonista mais verossímil e interessante.
Outra questão a ser elogiada em “O Garoto da Loteria” é a forma como o narrador observador cola na personagem principal. Essa aproximação é escancarada na tentativa de olhar para a sociedade pelo ponto de vista de Bully. Achei excelente essa iniciativa. Em muitas partes, Michael Byrne é bem-sucedido nessa empreitada, principalmente quando o narrador e o protagonista chamam os homens e as mulheres que transitam com pressa pela cidade de “zumbis” (aos olhos dos moradores de rua, os cidadãos apressados e insensíveis à pobreza são zumbis) e quando eles chamam as pessoas que têm mais afinidade de Davey (parece haver alguns Davey pelo centro de Londres). Em outras partes, esse recurso não é tão eficiente. Parece-me pouco crível que um menino esperto como Bully faça a marcação do tempo pela duração do programa do Scooby-Doo e não pelo jeito tradicional (horas, minutos). Aí o escritor inglês deu uma exagerada.
É inegável a forte crítica social contida em “O Garoto da Loteria”. Além disso, o livro tem uma forte pegada de road story. A aventura tem como cenários vários pontos turísticos de Londres. As cenas acontecem, por exemplo, no Big Ben, na London Eye, na frente do Palácio de Buckingham, junto à estátua de Winston Churchill, no zoológico, no Tâmisa, no cemitério de Highgate, no metrô, em Oxford Street, no Museu de Guerra Imperial, no Piccadilly Circus e no Royal Free Hospital (se bem que este último não tem nada de turístico, né?).
Apesar do vilão principal da trama ser Janks (uma personagem plana), “O Garoto da Loteria” é o típico romance em que o conflito se dá entre o protagonista e o mundo (algo que na Teoria Literária é chamado de conflito do Personagem versus Sociedade). Essa característica do enredo é outro acerto de Byrne. Só entendemos as escolhas equivocadas de Bully (e o garoto tem uma série delas ao longo do livro) se compreendermos que ele é um menino de rua e que enxerga os “zumbis” e a polícia como seus maiores inimigos. Por isso, a opção pelo caminho mais longo e tortuoso até Watford (quando entrar em um táxi ou embarcar no metrô seria algo mais sensato a se fazer, pelo menos do ponto de vista de um cidadão normal).
Esta leitura me fez recordar outras tramas ficcionais. Em primeiro lugar, o estilo de Michael Byrne me lembrou muito o de Nick Hornby. Exatamente por isso, “O Garoto da Loteria” pode ser visto como uma versão contemporânea e mais violenta de "Um Grande Garoto" (Rocco). Também me veio à mente “Um Gato de Rua Chamado Bob” (Novo Conceito), obra escrita por Garry Jenkins a partir da história real de James Bowen, e “Na Pior em Paris e Londres” (Companhia das Letras), romance autobiográfico de George Orwell. Se formos expandir as comparações para os exemplares da literatura brasileira, aí a associação é com “Capitães da Areia” (Companhia das Letras), clássico de Jorge Amado. No caso de uma referência cinematográfica, quem desponta é “Quem Quer Ser Um Milionário?” (Slumdog Millionaire: 2008), filme dirigido por Danny Boyle e escrito por Simon Beaufoy. Se voltarmos um pouco mais no tempo, podemos lembrar de “O Garoto” (Kid: 1921), clássico de Charles Chaplin.
Nota-se, portanto, que o enredo de “O Garoto da Loteria” não é lá muito criativo. Contudo, este livro foi muitíssimo bem executado. Às vezes, mais vale uma narrativa banal bem escrita do que uma trama original e mal desenvolvida. Admito que mesmo me recordando de meia dúzia de obras literárias e cinematográficas parecidas, ainda assim adorei o romance de Michael Byrne.
Algo que considerei destoante nesta obra foi o seu desfecho. Depois de uma série de capítulos com muita emoção e adrenalina que culmina em um clímax impecável, entramos em uma fase meio paradona da história. Aí a ação cessa (ou diminui muito de intensidade) e a trama se arrasta por algumas dezenas de páginas. Minha impressão é que o autor não soube terminar adequadamente o livro ou não se dedicou a essa parte como deveria.
Curiosamente, “O Garoto da Loteria” é classificado como um título infantojuvenil. Porém, ele pode e deve ser apreciado por todos os públicos. Temos aqui aquela obra ficcional destinada para os jovens que consegue encantar também os leitores mais velhos – algo que comentei no mês passado durante a análise de “O Meu Pé de Laranja Lima” (Melhoramentos), clássico de José Mauro de Vasconcelos. Talvez esse seja um dos segredos dos melhores títulos da literatura infantojuvenil: suas histórias conseguem dialogar em alto nível com todos os integrantes da família independentemente da idade. Incrível!
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