Publicado no finalzinho de 2021, o thriller psicológico marca a entrada, com o pé direito, do cineasta paulistano na literatura ficcional.
Em setembro do ano passado, fui convidado por Eduardo Villela, book advisor com grande experiência no mercado editorial brasileiro, para escrever o prefácio de uma obra ficcional que estava em processo de finalização. Gostei tanto daquela narrativa que prometi para mim mesmo que faria uma análise completa sobre tal título na coluna Livros – Crítica Literária. Obviamente, precisei esperar seu lançamento comercial para compartilhar com os leitores do Bonas Histórias minhas impressões. Agora que a publicação chegou ao público tanto na versão digital quanto na versão impressa, me sinto mais confortável para apresentar o post com minha autopromessa.
“Refém da Memória” (produção independente) é a novela de estreia de Helio Martins Jr, cineasta paulistano de 43 anos que decidiu embarcar também no universo literário. Esse livro nasceu de um antigo roteiro cinematográfico do diretor. Ou seja, temos aqui o caminho oposto ao que normalmente presenciamos. Ao invés de uma obra literária ser ajustada para ganhar as telonas, um roteiro de cinema foi adaptado para se tornar uma ficção impressa. Por si só, uma iniciativa como essa já mereceria nossa atenção. Porém, o que me deixou mais fascinado em “Refém da Memória” foi a qualidade da narrativa de Helio. Sem dúvida nenhuma, temos aqui um dos mais interessantes lançamentos do mercado editorial nacional na virada de 2021 para 2022.
Thriller psicológico encantador e surpreendente, “Refém da Memória” traz uma trama recheada de mistérios, adrenalina e, por que não, reflexões existencialistas. Em suas páginas, acompanhamos o dia angustiante de Lucas, um rapaz que acorda desmemoriado no vagão do metrô. Sem saber quem é, o que fazer e para onde ir, o protagonista embarca em uma alucinante aventura policial pelas ruas de uma grande cidade brasileira. A partir daí, a novela apresenta reviravoltas a cada capítulo. Não se surpreenda se você ficar grudado à obra de Helio Martins Jr até a conclusão da leitura. Foi o que aconteceu comigo. Simplesmente devorei a história de “Refém da Memória” em uma tacada só. Tem prova maior da qualidade de um suspense do que verificar que o leitor não consegue largar do livro, hein?
Confesso que fico empolgado quando conheço bons exemplares da literatura brasileira contemporânea. Nesse caso, “Refém da Memória” é da mesmíssima safra de “Maria Quitéria – A Soldada que Conquistou o Império” (Poligrafia), romance histórico de Rosa Symanski, “Minha Carta ao Mundo – Como Rastrear Sua História” (Edelbra), novela infantojuvenil de Heloisa Prieto e Victor Scatolin, “Janelas Visitadas” (Sete Autores), coletânea de contos de Roberto Marcio, e “A Contrapartida” (Valentina), romance de suspense/terror de Uranio Bonoldi. Repare que todos esses são títulos nacionais que foram comentados recentemente no Bonas Histórias.
Especialista em suspense cinematográfico, Helio Martins Jr. é um dos bons nomes do circuito brasileiro de cinema independente. Até o momento, seu portfólio tem três curtas-metragens – “Obsessão” (2007), drama sentimental de um casal recém-separado; “Fantasma” (2009), aventura de um sujeito que é ignorado pelos transeuntes do centro de São Paulo; e “Um Sonho Real” (2011), drama onírico de um homem que sofre de insônia e se apaixonou por uma mulher que aparecia em seus sonhos – e dois longas-metragens – “Invasão” (2014), mistura de ficção científica e terror; e “Trabalho Sujo” (2018), thriller policial ambientado no caótico universo da política nacional. No caso dos longas, os filmes foram roteirizados e dirigidos por Helio e foram viabilizados por meio de campanhas de crowdfunding e do patrocínio de pequenas empresas. Em outras palavras, o cineasta nunca se valeu de recursos públicos de fomento à indústria cultural, uma raridade no setor audiovisual das últimas duas décadas.
Apaixonado desde a infância pelo cinema, Helio Martins Jr é formado em Propaganda e pós-graduado em Design de Multimídia. Por muitos anos, ele trabalhou exclusivamente em agências de publicidade nas áreas de criação e design. Depois de fazer uma série de cursos cinematográficos nos anos 2000, alguns deles nos Estados Unidos, Helio entrou para valer no cinema independente brasileiro. “Invasão” foi realizado com baixíssimo orçamento (R$ 30 mil) e “Trabalho Sujo” já teve uma estrutura ligeiramente maior (R$ 60 mil). Essas produções estão disponíveis atualmente nas plataformas de streaming e em canais de televisão por assinatura. Aproveitando-se de sua experiência na Comunicação Corporativa, Helio trabalha também na produção audiovisual para grandes empresas. Entre o desenvolvimento de filmes institucionais e publicitários, Helio produz suas obras autorais, invariavelmente precisando colocar a mão no bolso para fechar os orçamentos.
Contudo, no meio do caminho tinha uma pandemia, tinha uma pandemia no meio do caminho. Acho que seria assim que Carlos Drummond de Andrade comporia os famosos versos se estivesse vivo e criando poesia nos últimos meses. Sem poder captar verba para as novas produções cinematográficas e sem conseguir avançar nos projetos em andamento, mas com a cabeça fervilhando de novas histórias, Helio Martins Jr teve uma ideia no começo da quarentena da Covid-19: por que não escrever um livro ao invés de tentar viabilizar um roteiro?!
Surgia, assim, a proposta por trás de “Refém da Memória” (inicialmente chamado de “Vazio da Memória”). Pela primeira vez, o cineasta criava uma narrativa que ganharia vida própria fora das telas. Em sua visão, produzir ficção literária em tempos pandêmicos era a oportunidade ideal para manter seu trabalho criativo sem depender de eventos externos (leia-se: captação de recursos financeiros, filmar as cenas projetadas, contratar equipe técnica e de apoio, supervisionar o trabalho dos atores e tudo o mais que um filme exige). Em meio à quarentena, escrever um livro era algo teoricamente mais simples. Daí a iniciativa de adaptar um roteiro de um thriller noir para uma novela de suspense psicológico.
Vale a pena dizer que não é fácil fazer essa transição do cinema para a literatura. Apesar de as duas concepções artísticas envolverem a contação de histórias, as formas de materializá-las são totalmente distintas. Diria que a linguagem é bem diferente. É como se alguém estivesse acostumado a falar português, espanhol ou inglês e, de uma hora para outra, precisasse falar mandarim ou japonês. O mais incrível é que, aparentemente, Helio Martins Jr ignorou as várias barreiras existentes entre cinema e literatura e debutou em grande estilo como escritor ficcional. “Refém da Memória” é um ótimo livro de estreia. Nota-se que o autor tem o dom de narrar boas tramas independentemente do formato. E mesmo sendo novato na literatura comercial, ele já possui um repertório técnico digno dos nomes mais experientes. Se eu já o admirava como cineasta, agora fiquei fã de sua atuação literária.
“Refém da Memória” foi publicado inicialmente em novembro de 2021 na versão digital. Desde então, ele está disponível em ebook na Loja Kindle. Em janeiro de 2022, a versão impressa foi apresentada ao público. Atualmente, o livro está disponível para compra diretamente no site pessoal do autor. Essa primeira tiragem será direcionada essencialmente para o evento de lançamento da novela. Na próxima quinta-feira, 17 de fevereiro, às 18h30, Helio estará no recém-inaugurado Cine Marquise para autografar os exemplares adquiridos pelos leitores. Quem quiser conferir a noite de autógrafos no Conjunto Nacional, na Avenida Paulista, essa é a grande oportunidade. Nas próximas semanas, a obra estará disponível também nas principais lojas virtuais para aquisição sob demanda.
Desenvolvido com a consultoria editorial de Eduardo Villela, “Refém da Memória” foi produzido de maneira independente por Helio Martins Jr, que não quis ficar preso aos trâmites burocráticos das editoras tradicionais. O projeto do livro levou aproximadamente 18 meses para ser concluído. Basicamente, o autor precisou de quatro meses para montar o texto base da narrativa (de maio de 2020 a setembro de 2020) e, a partir daí, trabalhou na melhoria do texto e da história, nas revisões, na supervisão das artes e no fechamento do material (de setembro de 2020 a novembro de 2021).
Curiosamente, a escolha de qual roteiro cinematográfico adaptar para a literatura passou pela questão da dificuldade que Helio teria para produzir o filme. Cineasta independente no Brasil, o escritor sabe que suas produções são tradicionalmente de baixíssimo orçamento. Assim, quanto mais complexo for o roteiro, mais difícil é para viabilizá-lo. Como “Refém da Memória” é uma história que envolve muitas personagens (na perspectiva do cinema) e com várias cenas de ação em diferentes locais (algo complicado para ser filmado), seria difícil tirá-lo do papel. Ciente de tal inviabilidade, Helio Martins Jr não teve dúvida: seria essa a trama de seu primeiro livro ficcional.
“Refém da Memória” inicia-se com Lucas acordando assustado no vagão do metrô. Ele acabou de sonhar que estava sendo baleado em um assalto à banco. A sensação de incômodo com a lembrança do pesadelo rapidamente se esvai quando o rapaz nota algo muito mais assustador: ele não se lembra de nada de sua vida recente. Quem ele é? No que trabalha? Onde mora? O que está fazendo ali no transporte público? Para onde estava indo? As únicas coisas que ele se recorda vagamente é que tem 46 anos e que sua mãe faleceu há pouco tempo.
Angustiado para encontrar respostas para suas inquietações, Lucas começa a vasculhar nos bolsos da calça e da camisa algum paradeiro sobre sua identidade. Na certa, haverá ali indícios que mostrarão quem ele é e o que estava fazendo na linha de trem subterrâneo. Primeiramente, ele encontra um celular. Depois, acha um documento. Nesse papel, o protagonista descobre que foi convocado para ser testemunha em uma ação judicial. Ao comparar o horário e a data da audiência com as informações contidas no visor do celular, ele já tem o primeiro norte: deverá comparecer às 17h30 no Fórum. São quase 14h30 e, para não se atrasar ao compromisso, Lucas precisa ir até a estação São Gabriel. Depois de desembarcar, poderá seguir a pé até o prédio do Fórum que fica no centrão da cidade. Segundo ele acredita, lá poderá descobrir mais elementos sobre sua pessoa.
Contudo, a viagem até o Fórum não será nada tranquila. Logo de cara, Lucas é assaltado por um bando de adolescentes. O grupo rouba o celular. Na sequência, ele encontra Emily. Ao notar que Lucas não a reconhece, a moça informa ser sua esposa. Então, Emily esclarece muitas coisas ao marido desmemoriado: Lucas sofre constantemente de crises de perda de memória. A doença é fruto de um tiro que ele tomou na cabeça. A bala ainda está alojada no crânio, entre o ouvido e o cérebro. Os médicos ainda estão estudando a melhor maneira de retirar o projétil sem trazer sequelas graves ao paciente. Por isso, as frequentes dores de cabeça que ele sente e a perda momentânea de memória. Lucas foi baleado em um assalto ao banco em que trabalhava. Sua presença no tribunal naquela tarde é justamente para reconhecer um dos assaltantes da quadrilha que entrou na agência bancária.
Agora ciente dos acontecimentos recentes e não querendo se atrasar ao compromisso com o juiz, Lucas acompanha Emily. O casal embarca em um carro de aplicativo para chegar a tempo ao tribunal. Entretanto, a vida do protagonista da novela não será tão tranquila como ele imagina. O rapaz será alvo de uma série de emboscadas no meio do caminho. Como diria Drummond (lembram?): no meio do caminho tinha uma emboscada, tinha uma emboscada no meio do caminho. Pelo visto, a quadrilha de assaltantes é mais perigosa do que poderíamos supor e eles querem calar Lucas, uma das testemunhas-chaves para o caso do roubo ao banco.
A partir daí, as surpresas do livro não vão mais parar de se suceder. A cada capítulo, assistimos a novidades que trazem reviravoltas e mais reviravoltas à trama. No meio de uma saga surrealista, Lucas não saberá em quem confiar e no que acreditar. Nem mesmo em si mesmo e em sua memória, o protagonista poderá se valer. O que, afinal de contas, está acontecendo? Há uma explicação lógica para a coleção interminável de eventos estranhos que ele presencia? Quem são seus inimigos? E em quem ele pode efetivamente se apoiar? Essas dúvidas só serão elucidadas nas páginas finais da obra.
“Refém da Memória” possui 144 páginas. Seu conteúdo está dividido em dez capítulos. Há também uma Introdução (feita pelo próprio Helio Martins Jr) e um Prefácio (tecida por esse crítico que escreve agora para você). Como é típico das novelas, a leitura de “Refém da Memória” é extremamente rápida. Devo ter levado em torno de duas horas para ir da capa à quarta-capa. Como o clima de mistério e suspense é permanente do início ao fim, minha leitura foi feita em um fôlego só. Saiba que será difícil desgrudar das páginas desse título de Helio Martins Jr depois que você iniciou a leitura. Talvez esse seja o melhor elogio e a definição mais precisa para o livro – sua história é eletrizante. Como thriller psicológico, ele está incrível!
Antes de entrar na análise da publicação propriamente dita, preciso esclarecer duas questões. Em primeiro lugar, minha avaliação da obra foi feita a partir do material que recebi do book advisor em setembro. Ou seja, li os originais de “Refém da Memória” e não o material final que chegou ao público na virada de 2021 para 2022. Acredito que não houve mudanças significativas entre as versões, além da alteração do nome e da chamada da capa. Além disso, imagino que o livro tenha passado por novas revisões tanto em ordem gramatical quanto narrativa para solucionar um ou outro errinho. Mesmo assim, achei válido salientar para vocês esses possíveis gaps da minha crítica.
Outra questão introdutória relevante é que, na minha visão, “Refém da Memória” é uma novela e não um romance. Se chamei, no Prefácio do livro, essa história de romance é porque me foi solicitado seguir tal designação (e quem sou eu para desobedecer aos autores e editores, né?). Porém, nesse post analítico do Bonas Histórias, posso me manter agarrado às minhas definições de literatura. “Refém da Memória” é maior do que um conto e menor do que um romance. Portanto, é uma novela! Para completar minha justificativa, essa narrativa tem um único conflito (Lucas quer descobrir quem é e o que está fazendo?) possui poucas personagens (se na visão de um cineasta independente esse enredo tem várias pessoas envolvidas, na literatura a quantidade é baixa) e permite uma leitura integral (algo que demanda entre uma e três horas). Todas elas são características das novelas literárias. Para virar um romance, precisaríamos de uma trama maior e com uma narrativa um pouco mais complexa (as diferenças entre conto, novela e romance se dão também pelo nível de complexidade das histórias e não apenas pela quantidade de páginas).
Feitas essas duas observações preliminares, entremos para valer na análise da obra de Helio. O que mais chamou minha atenção em “Refém da Memória” foi a manutenção do clima de tensão do início ao fim. Esse é justamente o grande acerto do autor – e algo dificílimo de ser obtido. Nesse sentido, entendi a lógica da produção de uma novela e não de um romance. Com uma história um pouco menor, priorizou-se o suspense e a tensão dramática. Na certa, se Helio tivesse tentado aumentar o tamanho dos capítulos e/ou a quantidade de páginas, perderia muito da intensidade da narrativa. Não por acaso, temos aqui uma lição que os escritores de longa data deveriam extrair do trabalho dos cineastas. Não é porque o papel aceita tudo que devemos priorizar a quantidade em detrimento à qualidade. Como diriam os designers, muitas vezes menos é mais!
O que ajudou na perpetuação do suspense e da força narrativa foi a sequência interminável de reviravoltas. A impressão é que cada capítulo termina com uma grande mudança no enredo e com um gatilho para o desenrolar da trama. Sem dúvida, esse recurso foi emprestado das séries televisivas. Adorei seu uso e a maneira como ele potencializou o mistério da saga dramática de Lucas.
Outro aspecto que está brilhante é a ambientação da novela. O clima noir é quase uma personagem central de “Refém da Memória”. Além da chuva, da escuridão do cair da noite, da névoa que insiste em permanecer no ar e da sujeira inerente às ruas deterioradas do centro decadente da cidade, assistimos a passagens em que a violência, o medo e a incerteza moldam as reações do protagonista. Nota-se o cuidado que Helio Martins Jr teve na construção da fotografia de cada cena. Ele jamais se esquece de pontuar a atmosfera em que a ação se realiza. Apesar de ser algo que deveria ser trivial na literatura ficcional, confesso que não são todos os autores que utilizam com maestria esse expediente narrativo. Por isso, não é errado enxergar essa obra como um texto profundamente visual e até mesmo sinestésico.
Outro elogio que preciso fazer é para o primeiro capítulo. Achei a abertura da novela impecável. Em poucas linhas, somos atirados no meio do drama do protagonista. As dúvidas, as inquietações e os medos de Lucas são os mesmos que nós, leitores, sentimos naquela situação. A procura de respostas por parte da personagem principal é o que nos levará a percorrer as páginas do livro. Se você gosta dos detalhes do fazer literário, releia as primeiras páginas de “Refém da Memória”. Temos aqui uma pequena aula de como apresentar um thriller psicológico.
Adorei as reflexões existencialistas propostas pela trama. É verdade que Helio Martins Jr não é um Albert Camus, um Jean-Paul Sartre, uma Virginia Woolf, um Fiódor Dostoiévski ou um Friedrich Nietzsche. Nem ele quer, acredito eu, seguir os passos desses escritores. O fato é que “Refém da Memória” une sim entretenimento (de alto nível) com doses generosas de debates filosóficos (no ponto certo para não ficar enfadonho). Durante a leitura da novela, conjecturamos sobre os conflitos do protagonista. Impossível não pensarmos sobre a força da mente humana, a fuga da realidade, a rotina banal, os trabalhos sem sentido e os sonhos extirpados pelo dia a dia e pela dinâmica capitalista. Quantos indivíduos não existem por esse mundão que vivem perturbados pelo choque entre a realidade nua e crua e os desejos latentes da imaginação fértil, hein? Afinal, por qual caminho seguir? Quem está certo: Lucas (e seu pai) ou Emily? As respostas não são nem um pouco fáceis.
Em relação à estética, nota-se um caráter meio híbrido de “Refém da Memória”. Essa trama pode ser vista como um thriller existencialista, um drama psicológico, uma aventura onírica, um romance policial noir, um suspense surrealista, um terror com ação eletrizante ou uma ficção sobre realidades paralelas. A escolha é sua. Qualquer opção que você propuser, a resposta estará certa. Particularmente, gosto de ver essa publicação como um thriller psicológico.
Sobre a linguagem empregada, gostei muito do texto. O linguajar utilizado por Helio Martins Jr é acessível sem ser piegas. A leitura de “Refém da Memória” é gostosa porque a trama é ótima e porque as palavras e as estruturas frasais foram muito bem escolhidas. Há oralidade na narração e, principalmente, no discurso. Por falar nisso, os diálogos são totalmente verossímeis e impactantes. O único aspecto que me incomodou um pouco durante a leitura foi o excesso de vírgulas, o que dá uma certa travada no texto. Acredito que muitas frases poderiam ser (re)construídas de um jeito mais direto, sem tanta pontuação. Na certa, teríamos um ganho considerável de ritmo textual/leitura se fossem cortadas várias vírgulas. Até acho que isso deva ter acontecido na versão final do livro. Tomara!
Gostaria de destacar mais quatro elementos narrativos desse livro: a falta de definição do espaço narrativo; os nomes bíblicos de personagens e de localidades chaves do enredo; a narração em terceira pessoa com o narrador colado ao protagonista em quase a totalidade da trama; e o universo onírico da novela que dialoga com roteiros de cinema e com o portfólio audiovisual de Helio Martins Jr.
Apesar de não termos a menção efetiva da cidade onde “Refém da Memória” se passa, tive a impressão de que a história acontece em São Paulo. Como falei, isso foi minha sensação. Gostei dessa perspectiva mais genérica do espaço narrativo. Na certa, cada leitor irá interpretar de sua maneira o município descrito no livro. A condição sine qua non é que essa localidade tenha metrô (pode ser de superfície), um centro deteriorado e uma chuva/garoa insistente. Repare também que as localidades (Fórum, Banco, Café, Hospital...) foram grafados com letra maiúscula. Essa sinalização confere um ar meio simbólico e representativo para esses lugares.
Por falar nisso, impossível não notar que as principais personagens masculinas e algumas localizações (como estação de metrô) possuem nomes bíblicos: Lucas, David, Gabriel. Curiosamente, o peso dessas escolhas se torna mais acentuada pela falta de sobrenome das personagens (ninguém tem sobrenome em “Refém da Memória”, apenas o chefe dos assaltantes do banco) e a ausência de nomes para as localidades descritas (apenas a estação São Gabriel é pontuada). Esse caráter genérico de aspectos centrais da trama confere um ar maior de mistério e de suspense para a história. Gostei disso!
Em relação à narração, ela é em terceira pessoa. O narrador fica colado ao protagonista em quase a totalidade da história. A exceção é a passagem em que a detetive Sayuri relata passo a passo sua investigação criminal (início do capítulo V). Aí o narrador abandona Lucas e acompanha empolgado o relato da investigadora. Pensando nas diretrizes do foco narrativo, achei aceitável esse recurso textual. O único expediente diferente que faria seria colocar esse trecho em uma seção à parte (novo capítulo).
Quanto ao universo onírico, parte do charme dessa narrativa está no trafegar labiríntico dos diferentes planos mentais de Lucas. É interessante falar um pouco sobre essa questão dos universos paralelos. Essa temática é mais comumente encontrada no cinema do que na literatura. Seu uso até pode não ser uma novidade tão grande (de cabeça, me recordo dos romances de Juan Carlos Onetti e dos contos de Julio Cortázar), mesmo assim é ótimo constatar sua exploração na ficção literária contemporânea. Ponto positivo para a criatividade e a ousadia de Helio Martins Jr!
Paradoxalmente, a sensação de déjà vu que senti lendo “Refém da Memória” não se deu pela comparação direta com outras obras literárias e sim pela analogia com o portfólio cinematográfico de Helio. Se você tiver assistido aos cinco filmes do cineasta paulistano (entre curtas e longas-metragens) entenderá o que estou dizendo. Sua novela literária de estreia tem um pouco de cada uma de suas produções cinematográficas: a relação de Lucas e Emily me lembrou a dos protagonistas de “Obsessão”; as cenas iniciais de Lucas desmemoriado vagando pela cidade tem um quê de “Fantasma”; as conversas de Lucas com David dialogam com o drama onírico da personagem principal de “Um Sonho Real”; a ambientação de “Refém da Memória” é muito parecida a de “Trabalho Sujo”; e o clima de suspense e terror emula um pouco o de “Invasão”.
“Refém da Memória” é um livrão, mas ele não está imune a alguns tropeços. Em relação aos elementos negativos dessa novela, começo abordando a questão das diferenças entre literatura e cinema apresentadas na Introdução. Os conceitos propostos por Helio Martins Jr no começo do livro me pareceram rasteiros e, em muitos pontos, equivocados. Por exemplo, será que podemos dizer que a literatura é uma arte universal, conforme dito nos parágrafos introdutórios da obra? Juro que fiquei pensando nisso. E não concordo com essa perspectiva mais abrangente e democrática da literatura em relação ao cinema.
Para acompanhar uma novela ou um romance, o leitor precisa saber ler e, principalmente, dominar minimamente as técnicas de interpretação textual (algo que muitos chamam de letramento). Infelizmente, em um país como o nosso, onde a maioria das pessoas não tem acesso à educação formal e estímulos à leitura, algo que deveria ser trivial é exceção e não regra. Por esse ponto de vista, o filme me parece ser uma arte um pouco mais acessível (quando transmitida na televisão aberta, obviamente). Afinal, o cinema/televisão permite, por exemplo, que um analfabeto acompanhe uma história com mais facilidade do que se ela estivesse em um livro. É algo para pensar! De qualquer forma, me pareceu excessivo o uso do termo “universal” para designar o alcance da ficção literária.
E mesmo pela perspectiva do autor/escritor (aquele que produz um romance, uma novela), não é tão fácil como parece lançar uma nova publicação nos dias de hoje. Há vários obstáculos que precisam ser superados para a história ganhar as livrarias. Talvez seja mais fácil lançar um livro ficcional do que um filme (é mais barato pelo menos). Mesmo assim, não é algo para todos (universal). Se você tem dinheiro no bolso, muito dinheiro quero dizer, até ir para fora do planeta pode ser descrito como uma atividade viável. Contudo, não é possível afirmar que viagens espaciais sejam atualmente um tipo de turismo popular ou massificado.
Outro aspecto que me causou certa inquietação nessa parte introdutória foi quando li as diferenças entre a literatura e o cinema. Não concordo com as definições trazidas por Helio. A materialização de uma história na telona e o desenvolvimento de uma história nas páginas do livro são realmente diferentes pois usam técnicas narrativas distintas. Entretanto, atirar totalmente no colo do leitor a obrigação de construir a trama literária me parece algo errado, assim como a visão de que o espectador do cinema recebe o filme de maneira passiva. Há sim diferenças entre o cinema e a literatura que são mais importantes do que o papel do público. Quais seriam essas distinções, hein? Fiquei me questionando a respeito.
Além de soar inadequados, os aspectos apontados por Helio Martins Jr na Introdução transpareceram certa falta de conhecimento teórico sobre o fazer literário. Paradoxalmente, ele foi fantástico em materializar a história em si no papel. Porém, no momento de explanar conceitualmente sobre a atividade da literatura ficcional, ele foi um tanto blasé e impreciso. Reforço que essa foi a minha impressão de suas palavras iniciais. Talvez, essa percepção negativa passe desapercebida pelos demais leitores.
De problema mais sério, posso apontar alguns errinhos de foco narrativo. Erros de foco narrativo, Ricardo?! Sim. Há algumas derrapadas nesse sentido ao longo de “Refém da Memória”. Como o narrador em terceira pessoa está colado ao protagonista (Lucas), compreendo que ele tenha acesso aos pensamentos, aos sentimentos e às preocupações da personagem principal. Beleza até aí. Todavia, quando o narrador acessa os pensamentos de Emily, de Sayuri ou do irmão de Rogério Souza mesmo que rapidamente, temos um tropeço narrativo. Pela perspectiva da Teoria Literária, isso não é possível. O narrador, uma vez próximo ao Lucas, pode descrever o que as demais personagens fazem e falam, mas jamais entrar dentro de suas mentes. Para completar, não pode a personagem foco sair de cena e o narrador descrever o que se passa no interior da sala (isso ocorre no capítulo V).
Acredito também que o capítulo final poderia ter sido trabalhado de outra maneira. Sei que Helio mudou algumas vezes essa parte e admito que ficou bom. Mesmo assim, não acho que o desfecho está à altura das demais seções da novela (principalmente do início e de algumas cenas no meio da trama que estão impecáveis). Sabe quando o desenlace está bom, bonzinho, mas tinha a capacidade de ser espetacular? Pois foi essa a sensação que tive no final da leitura de “Refém da Memória”. O que mais me incomodou nessa parte foi descobrir a escolha de Lucas – fique tranquilo(a), não costumo dar o spoiler dos livros analisados – já nos primeiros parágrafos. Aí o restante do capítulo ficou um pouco arrastado. Se tivéssemos uma surpresa guardada para as últimas linhas e se tivéssemos um desfecho ligeiramente aberto, acredito que a experiência literária como um todo teria sido mais completa e intensa.
Para encerrar esse post da coluna Livros – Crítica Literária, gostaria de reproduzir aqui as palavras que coloquei lá no Prefácio de “Refém da Memória”. Como aquelas linhas foram profundamente sinceras da minha parte, as reafirmo em alto e bom som para todos ouvirem/lerem também no Bonas Histórias:
Esse primeiro romance (novela) de Helio Martins Jr. é tão saboroso que ficarei torcendo para o cineasta-escritor não priorizar apenas o cinema daqui para frente. Sei que sua grande paixão é a sétima arte, o que o faz pensar, respirar e esboçar rotineiramente novos roteiros. Porém, a literatura brasileira também precisa de autores talentosos e que saibam cativar os leitores.
A vontade que tenho é que Helio mescle, a partir de agora, a produção de novos longas-metragens ao desenvolvimento de mais romances (novelas). É um exagero da minha parte um pedido como esse?! Ao ler “Refém da Memória”, você entenderá minha empolgação e, na certa, se juntará à minha torcida por novos títulos literários de Helio Martins Jr.
Boa aventura!
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