Crônicas: Tempos Portenhos - Episódio 5 - Sentando-se à Mesa com os Argentinos
- Ricardo Bonacorci
- 24 de fev.
- 51 min de leitura
No quinto relato da série narrativa sobre como é viver em Buenos Aires, faremos um passeio completo pela cena gastronômica da capital argentina. Confira a riqueza e a variedade da culinária local, que muitas vezes passam desapercebidas pelo turista brasileiro.

Asseguro que o novo capítulo de “Tempos Portenhos”, a coletânea desta temporada da coluna Contos & Crônicas, está muito apetitoso. Ou como diriam los hermanos: está rico. Re rico! Afinal, hoje debateremos a comida e a bebida argentina. A ideia é apresentar em detalhes as surpresas e os encantos que Buenos Aires, uma das capitais gastronômicas da América Latina, reserva a visitantes e moradores. Quando a atividade é sentar-se à mesa nas margens do Rio da Prata, temos muito o que falar (e, por supuesto, degustar). Por isso, puxe uma cadeira, se acomode aí e prove esta página que tem cheirinho de assado e sabor de vinho Malbec, mas não possui as calorias dos alfajores de doce de leite. Conhecendo o paladar de meus conterrâneos, não duvido que o quinto episódio de meus relatos sobre como é para um brasileiro viver na capital da Argentina seja disparado o mais aguardado.
Para quem aportou por aqui só agora – bienvenido(as)! –, aviso aos novos navegantes que já tratamos em “Tempos Portenhos” da sensação de segurança de caminhar pelas ruas de CABA (Ciudad Autónoma de Buenos Aires), tema do Episódio 1 – Distopia Paulistana (ou Carioca), e da paixão dos moradores locais pelas atividades outdoor, assunto do Episódio 2 – Vida ao Ar Livre. Na sequência, discutimos a capital argentina como o paraíso dos pets, em Episódio 3 – Dogland: Cães Felizes, e as particularidades do castelhano rio-platense, em Episódio 4 – O Espanhol Argentino. Sei que sou suspeito para opinar, mas acho que tal conjunto de textos está bem legal e vale a consulta. Se você pretende visitar ou morar por esses lados, seguem dicas preciosas. E se você só tem sede de conhecimento internacional, “Tempos Portenhos” também pode ser uma boa pedida.
Já deu para perceber que a proposta desta série não ficcional é justamente revelar a rotina e a identidade da metrópole que escolhi para viver nos próximos anos, né? Estou em BsAs (ou Baires, escolha o apelido que preferir) há um ano e meio e, nesse período, reuni impressões e informações suficientes para compartilhar com os leitores do Bonas Histórias. Até o final de 2026, trarei discussões sobre a paixão dos argentinos pelo futebol (Episódio 6 – La Verdadera Cancha del Fútbol), a riqueza da cena artística local (Episódio 7 – A Programação Artístico-cultural de BsAs), as alegrias e os perrengues de uma economia pra lá de imprevisível (Episódio 8 – Montanha-russa Chamada Economia), as diferenças das principais regiões da Capital Federal (Episódio 9: Passeio pelos Bairros de CABA) e os relacionamentos afetivos com as nativas (Episódio 10: Amores e Desamores). Sei que temos muuuuuuuuita coisa para discutir e não tenho pressa em trazer todo o conteúdo na coluna Contos & Crônicas.
Contudo, vamos focar agora no tema de hoje. Para a conversa sobre a culinária da Argentina e a gastronomia de Buenos Aires ficar minimamente organizada, dividi este post em cinco grandes blocos. Assim, além de separar os vários assuntos por seção, dá para fazermos pequenos intervalos durante nossa prosa – quase usei o termo “dedo de prosa”, mas acho que o bate-papo será mais longo do que isso. A ideia é usar essas paradas estratégicas para repor os petiscos na mesa e trocar a erva da cuia.
Antes que alguém fale que não precisa, aviso que Dona Júlia me ensinou a sempre oferecer comes e bebes a quem entra em casa. Não seria diferente no minúsculo monoambiente de Saavedra, transformado em uma espécie de Consulado brasileiro informal dos amantes da literatura, da cultura e das artes. No menu inicial que sirvo de bom grado aos gulosos visitantes do blog, trago uma fornada de empanadas clássicas – de carne suave, jamón y queso e queso y cebolla. Apesar dos argentinos falarem que essa iguaria local não combina com o mate, confesso que aprecio essa combinação.

Tá bom, tá bom! Não precisa ficar bravo(a) comigo. Sei que já enrolei demais. Até para os padrões do Bonas Histórias, em que a corda do texto parece não ter limite para ser esticada, esticada, esticada, esticada e esticada, acredito que tenha exagerado. Desculpe-me, senhoras e senhores. Prometo que não vai acontecer novamente (ao menos não nos próximos cinco minutos). Vou parar com o blábláblá sem graça e a conversa aleatória e, ufa, entrar efetivamente no novo assunto de “Tempos Portenhos”. Até porque, convenhamos, a fome está batendo e precisamos comer algo.
Aí vamos nós, meu povo!
1) Indo muito além da carne e do vinho – a grande variedade culinária da Argentina
Quando falamos de Argentina e de sua charmosíssima capital, as primeiras coisas que vem à mente dos brasileiros são carne e vinho. Faça você mesmo o teste, magnânimo guru. Pergunte para um(a) conterrâneo(a) o que ele(a) gostaria de comer e beber em Baires e a respostas será, em 80% das vezes (número respaldado pela última pesquisa do DataRicardinho), parrilla e Malbec. A estatística só não é maior devido ao crescimento considerável nos últimos anos de vegetarianos e abstêmios – onde esse mundo irá parar, Santo Deus?!
Para quem não gosta de dados quantitativos e prefere os estudos empíricos, relato de bom grado o comportamento padrão de amigos e familiares que vem me visitar em Mi Buenos Aires Querido. Ainda nas dependências do Aeroparque ou no saguão de desembarque de Ezeiza, eles me questionam sobre qual churrascaria e loja de vinhos irei levá-los. Dá para garantir que essa é uma das obsessões de todos os viajantes que falam português que vou buscar no aeroporto. Não importa a região do Brasil que chegam. Eles só pensam naquilo. Naquilo, no caso, é carne e vinho.
Eduardo Villela, meu amigo de infância e diretor da EV Publicações, conseguiu a proeza de nem sequer falar “oi” e “tudo bem?” ao chegar em CABA em dezembro. Tão logo me viu na ala de desembarque do Aeroparque, ainda com as malas em mãos, suas primeiras palavras foram: “Ricardo, em qual parrilla vamos almoçar?!”. Só não fiquei chateado porque, em compensação, Dudu trouxe uma mala cheia de café e de queijo de Minas para mim. Isso a Globo não fala, né?!
Paulo Sousa, outro de meus melhores amigos, escritor de mão-cheia e diretor da Epifania Comunicação Integrada, passou duas semanas em Saavedra em março de 2024. Sua alimentação jamais saiu da combinação carne e vinho. Inclusive, disponibilizei seu relato Buenos Aires – Experiências etílico-gastronômicas nas colunas Passeios e Gastronomia. Esse texto está imperdível. Não deixe de conferir. O único problema (que me sinto na obrigação de informar aos visitantes do Bonas Histórias) é que um leitor acusou aumento considerável de colesterol só de ler a crônica do Paulinho. Juro que não duvido.

Mesmo sabendo disso tudo, gostaria de desconstruir a ideia de monocultura gastronômica da cidade que mais amo e moro. Não é porque o brasileiro tem fixação por um só tipo de cardápio que necessariamente Buenos Aires seja uma localidade previsível e monótona. É justamente o contrário. Estamos numa metrópole extremamente rica e versátil. Pois foi a constatação do quão variado e plural é seu repertório culinário que me encantou – tá bom, tiveram outros motivos, mas esse ajudou! Obviamente, para realizar tal descoberta é necessário tempo, disposição e criatividade para fugir das obviedades, elementos que muitas vezes faltam aos apurados visitantes.
Se você não acredita em minhas palavras, serei obrigado a apresentar as justificativas da minha tese. Então vamos a elas, senhoras e senhores. O que há além da carne e do vinho em BsAs capaz de maravilhar os bons comensais?! Logo de cara me vem à memoria a culinária italiana. Não por acaso, estamos em uma das cidades mais italianas do mundo. Nesse quesito, como apresentei no post Pizzarias de Buenos Aires – Diferenças e encantos das pizzas portenhas, a capital argentina é muuuuuito mais parecida com a Itália do que São Paulo, que se orgulha dessa possível semelhança.
Além das pizzarias que abrem de segunda a segunda (inclusive no Natal e em 1º de janeiro) das 7h (da manhã) às 2h (da madrugada) – sim, se come pizza aqui em qualquer horário –, temos em Baires excelentes cantinas e belíssimos bodegones. Você não sabe o que é um bodegón? Tá vendo o que perdemos ao não mergulhar na culinária local! Prometo que voltarei à coluna Gastronomia só para detalhar esse tipo de restaurante, que é um dos meus favoritos (não fico uma semana sem visitá-lo) e foi trazido pelos imigrantes italianos (ou teria sido pelos espanhóis?! – agora não sei). O que posso adiantar é que se trata de uma ótima opção para se comer bem e barato em qualquer momento do dia e da noite. O cardápio dos bodegones é muito mais variado, acredite em mim, do que o menu servido nas padarias paulistanas.
Já que falamos da gastronomia internacional, Buenos Aires é farta em oferecer restaurantes franceses, espanhóis, alemães, gregos, peruanos, venezuelanos, paraguaios, brasileiros, cubanos, japoneses, chineses, sul-coreanos, vietnamitas, indianos, árabes, sírios, turcos, judaicos etc. Paradoxalmente, quem visita com mais frequência esses estabelecimentos são os moradores de CABA e não tanto os turistas. Enquanto os visitantes gringos fazem fila e pagam fortunas no Don Julio, no La Cabrera e no Siga La Vaca, por exemplo, (também conhecidos como casas pega-turistas), os portenhos legítimos preferem a culinária global. Para muitos argentinos, o melhor local para se comer carne é em casa. Quando saem para comer fora, eles gostam de novidade e variedade.
Por falar nisso, há bairros especializados em um ou em alguns tipos de culinária. O Barrio Chino, como o próprio nome indica, concentra vários estabelecimentos asiáticos. É uma delícia caminhar por suas ruas e provar de corn dog e melona a mapo tofu e bolo da lua. Belgrano e Once, por outro lado, têm vários restaurantes voltados à comida kosher. Em Liniers, encontramos bastante oferta de gastronomia boliviana (desculpem-me argentinos e uruguaios, mas as empanadas bolivianas são as campeãs!!!). E há bairros que são famosos por mesclar as várias culinárias, em uma espécie de Torre de Babel da boa mesa. Quando andamos por Palermo Soho, Palermo Hollywood, Recoleta ou mesmo Belgrano, é comum encontrarmos um restaurante espanhol ao lado de um francês, que está grudado a um bar brasileiro, que é vizinho de um japonês, que fica em frente a uma casa de comida peruana.

Como capital da Argentina, Buenos Aires também tem a propriedade de reunir o melhor da gastronomia regional. É como se cada província levasse o que tem de mais saboroso para a grande metrópole do país. Assim, você encontrará de restaurantes especializados em comida de Tucumán (prove as empanadas de lá, são imperdíveis), Salta (tamal de charqui), Mar del Plata (o alfajor salgado é o melhor), Patagonia (cordeiro patagônico e doce de Calafate), Mendoza (tomaticán) etc. Isso porque não estou falando da influência dos outros países sul-americanos na culinária argentina. Os vizinhos trouxeram para BsAs pratos como o mondongo (Colômbia), a chipa – que sempre pensei que fosse argentina – e mandi'o chyryry (Paraguai – beijão, Super Alba!), cevic e lomo saltado (Peru) e porotos granados (Chile).
É uma variedade tão grande que chega a ser um pecado gastronômico se alimentar só de carne de churrasco. Por isso, adoro quem se propõe a fazer passeios gastronômicos menos tradicionais. No início deste ano, recebi a visita de um trio muito animado e amalucado de São Paulo – beijo, Marcelinha e Mara, e abraço, Luís. Por mais que tenha curtido algumas vezes la parrilla argentina (e muito Malbec), a galerinha da Dança & Expressão mergulhou pra valer foi nas pizzarias locais. Praticamente comemos pizzas todos os dias – cada louco com sua mania. Aí eles puderam conhecer diferentes sabores como Jamón y Morrones (minha favorita!), Fugazzetta (uma das sete maravilhas da gastronomia moderna) e até a pizza com ovo frito (o prato da vida do Luís). Sim, pizza com ovo frito por cima.
Vale a pena ressaltar que todos esses sabores são tipicamente argentinos – invenções feitas por pizzaiolos portenhos ou por pizzaiolos europeus que vieram morar aqui. Portanto, saiba que você não encontrará essas combinações em outros lugares, nem mesmo em São Paulo. Se eu falar para um(a) paulistano(a) que sua visita às pizzarias de Buenos Aires proporcionará inesquecíveis experiências gastronômicas, certamente ele(a) me chamará de louco. Onde já se viu superar a metrópole paulista quando o assunto é as redondas italianas, hein?! Para quem pensa assim, só tenho uma coisa a dizer: sabe de nada, inocente!
2) Hábitos alimentares distintos – as quatro (ou cinco) refeições diárias na Argentina
Os brasileiros que vem viver em Buenos Aires (há muitos estudantes de Medicina que cruzam as fronteiras atrás de universidades gratuitas ou de mensalidades com preços realistas) precisam se habituar com as enormes distinções culturais. Elas aparecem em vários aspectos do cotidiano. E não seria diferente na culinária, né? Por mais próximos geograficamente que sejam Brasil e Argentina (são países vizinhos), quando falamos de gastronomia assistimos por vezes ao estabelecimento de grandes distâncias. Não tem jeito. É sentando-se à mesa que constatamos as diferenças entre os povos. Vou listar, a seguir, algumas surpresas que tive em minha experiência como morador de Baires. Nesse instante, o mote da análise será as características das refeições diárias dos argentinos.
Começo tratando da merienda, algo que definitivamente não existe em São Paulo, minha cidade natal. Pelo menos não no último quarto de século – isso era coisa do tempo das minhas avós. Diferentemente dos paulistanos, os portenhos ainda hoje adoram merendar. Merienda é o lanche da tarde. Porém, não é qualquer paradinha rápida no meio da rotina, não! Ao invés de só enganar o estômago com alguma bobagem ou promover um pequeno intervalo no meio do expediente para um cafezinho (como os brasileiros poderiam supor), los hermanos gostam de fazer uma paradona que dura no mínimo uma hora. Repare que usei a expressão “no mínimo”. Essa refeição tem caráter formal, principalmente nos dias de semana, e acontece entre 15h e 19h. Porém, o horário é variável, podendo ser mais cedo, substituindo o almoço, ou mais tarde, ganhando tons de merencena – mistura de cena com merienda, conforme me foi ensinado por Albita.

Esse foi um dos bons hábitos que adquiri em Buenos Aires. Dependendo do dia, quando não paro para almoçar (a vidinha de escritor não é tão tranquila como pensam meus familiares e amigos), aproveito para merendar. E o que rola nessa refeição? Tudo. Desde pizza, empanada, tarta e sanduíche até salada de fruta, alfajor, torta (enquanto a tarta é sempre salgada, a torta é doce), iogurte e chipa. Dá para comer tomando café, suco, mate, refrigerante, chá, vinho, cerveja ou água. O mais legal não é apenas o lanche da tarde em si, um hábito que veio do chá da tarde dos ingleses no século XVII (obrigado, Duquesa de Bedford!!!) e que persiste inabalável em pleno século XXI. E sim ver o quanto merendar faz parte da cultura da capital argentina e o quão prazeroso ele é na prática.
É comum amigos combinarem de se encontrar no meio da tarde para conversar e, aproveitando, comer algo. Vejo estudantes saindo das escolas e das faculdades e indo forrar o estômago (até porque o jantar é servido normalmente bem tarde na Argentina). Os funcionários das empresas fazem paradas estratégicas no meio do expediente vespertino para descansar e, claro, se alimentar. A coisa é tão séria que mais de uma vez precisei esperar os lojistas (tanto do shopping center quanto do comércio de rua) voltarem desta refeição. É algo inimaginável na cultura paulistana, em que não se para de trabalhar nem para o almoço, imagine só para o lanchinho!?! Aqui, eles fecham as portas do estabelecimento no meio da tarde como se todos os clientes fossem entender o motivo.
É super comum o portenho agendar dates para as meriendas – juro que me lembrei agora do filme “Encontro Marcado” (5 to 7: 2014), comédia romântica de Victor Levin com os excelentes Anton Yelchin e Berenice Marlohe. Acho esse hábito excelente. As melhores citas que tive em CABA foram justamente nesse horário – aprendo rápido com as melhores práticas locais. Afinal, só há vantagens ao se reunir mais cedo com a(o) pretendente, principalmente se for um primeiro encontro. O dia ainda está claro, o que permite ver melhor a nossa companhia (meu Deus, falei agora como o lobo mal!!!). A cidade está bem movimentada, o que aumenta o ar de segurança. E merendar não é normalmente tão caro quanto cenar (desculpem-me o comentário monetário, mas sou pobre e isso é importante para mim). Para completar o pacote de benefícios da cita de la tarde, se você não gostar da pessoa e do papo, dá para soltar uma desculpa que tem algo mais tarde para fazer e se mandar (quem nunca?!). E se você gostar do crush e sentir que o date mexeu com seu coraçãozinho, dá para emendar um cineminha, um barzinho ou um parque na sequência. Perfeito, não?!
Dessa maneira, a primeira diferença gastronômico-cultural que senti em Buenos Aires foi a presença da merienda. Pelos meus estudos de espanhol, aprendi que merienda (com “i”) é a refeição e merendar (sem “i”) é o ato de fazer a merienda. Se eu estiver errado, por favor, alguém me avise. Meu espanhol segue péssimo. Perdão!
Ainda na linha das refeições portenhas, temos a cena (jantar) muito tarde. E põe tarde nisso! O jantar em BsAs é quase uma ceia – será por isso que cena e ceia são termos foneticamente parecidos, hein?! O que sei com segurança é que a cena acontece normalmente depois das 22 horas. É nesse momento em que as famílias se reúnem e comem comida para valer. Nada de refeiçãozinha leve para ir para a cama. Nananinanão. O lance é pratão com massa, carne e tudo mais o que se tem direito. Pelo que notei, essa é a principal refeição do dia dos argentinos. Se as demais refeições são supérfluas, inclusive o almoço, ninguém renuncia a um belo e substancial jantar.

Confesso que esse hábito (ainda) não adquiri. Não gosto de comer à noite e odeio fazer refeições pesadas antes de dormir. Para você ter uma ideia, minha última boa refeição é, quando muito, a merienda às 17h, 18h. Para não ficar com a barriga totalmente vazia, gosto de tomar um chá entre 19h e 20h. E olha que estou dormindo tarde (para o padrão brasileiro): entre meia-noite e uma da manhã. Porque essa mania de ficar acordado até a madrugada, algo intrínseco da cultura portenha, abracei tão logo coloquei os pés por aqui. Em São Paulo, ia para a cama no máximo às 21h.
Com a comilança noturna, não é surpresa que os moradores de Buenos Aires não tomem café da manhã – desayuno no idioma deles. Pelo menos não como nós brasileiros fazemos, com pão, bolo, salgado, omelete e mais um monte de coisinhas gostosas. No máximo, eles tomam um café preto (café negro, em espanhol) ou um mate (beeeem amargo!) antes de sair de casa em direção ao trabalho e aos estudos. Por isso, sou quase um E.T. em Saavedra. Sinto que os portenhos (no caso, as portenhas) se assustam vendo que acordo com fome e com disposição para engolir tudo o que há na geladeira de casa. Nenhuma das minhas namoradas argentinas comia algo de manhã. No máximo tomavam um cafezinho ou um mate.
Prova maior desse hábito dos moradores de não comer nada (ou quase nada) ao acordar é que as padarias (e as cafeterias) da cidade abrem muuuuuuuito tarde. No meu bairro, por exemplo, é comum elas erguerem as portas só depois das 9h. Isso no verão, claro. No inverno, quase nada funciona antes das 10h. É complicadíssimo dar tal notícia para os paulistanos, que adoram tomar cafezinho com leite (cortado no espanhol da Argentina) e comer pão na chapa (com saída de requeijão) às 6 horas da matina. Quantas vezes já fiz isso em São Paulo, Santo Deus! Quem não estiver com a saúde mental em ordem, certamente precisará de orientação psiquiátrica tão logo descubra que as padocas (panaderías, no caso) de seu bairro não abrem antes das 9h ou 10h. Até hoje tenho pesadelos com as portas fechadas.
Por falar em diferenças culturais, as padarias em Buenos Aires param de operar por volta das 20h. As três que rodeiam minha casa, nem isso. Às 19h estão completamente cerradas. Desconfio que, nesse horário, os funcionários já chegaram em seus lares. Por incontáveis vezes, voltando da caminhada pela Costanera de Vicente López ou da corrida vespertina pelo Parque Saavedra, dei com a cara nas portas abaixadas. Ao olhar no relógio: 19h02. Que raiva!
Ah, e esqueça a pegada das padarias paulistanas em que é possível chegar a qualquer hora, sentar-se à mesa e provar uma refeição gostosinha ali mesmo. Em Baires, padaria é só delivery, senhoras e senhores. Com raras exceções, se você quiser se sentar para comer e beber, terá que procurar uma cafeteria, um bodegón ou uma pizzaria. Sim, é isso mesmo o que você leu, querido(a) leitor(a) do Bonas Histórias. Algumas pizzarias portenhas servem café, medialunas, tostados e salgados nas mesas durante los desayunos y las meriendas. E as panaderías não. Para completar o drama, nem perca seu tempo procurando pão na chapa. Ninguém por aqui faz ideia do que seria isso. Note que não é por acaso que sinto muuuuuuuuuuitas saudades das padarias de São Paulo!!!

Já que trouxe o relato de três refeições, não custa nada completar o ciclo e comentar sobre o almoço, né? Mas o que teria para falar sobre el almuerzo? O almoço argentino, de modo geral, é parecido com o dos brasileiros. As principais diferenças estão no seu horário e na sua duração. Ele ocorre normalmente mais tarde do que no Brasil. Durante a semana, os restaurantes estão vazios das 12h às 13h. O movimento pra valer começa a partir das 14h. Aos finais de semana, jogue uma ou duas horas mais tarde. Já fui almoçar às 16h aos sábados e domingos e os lugares estavam bombando.
Outra distinção cultural muito perceptível é que os argentinos não têm pressa à mesa. Nem durante a semana, quando se imagina que o expediente do trabalho e/ou do estudo exija alguma celeridade. Nesses dias, um almoço entre colegas de profissão demanda entre uma hora e meia e duas horas. E ninguém se desespera para voltar correndo ao batente, não! Aos finais de semana, é possível ver famílias por três ou quatro horas sentadas no restaurante conversando e comendo tranquilamente. Sei disso porque costumo marcar no relógio. Antes que alguém me olhe estranho, aviso que gosto de calcular o tempo em que as pessoas ficam à mesa e a quantidade de cachorros que andam com os passeadores de cão.
Por falar em calma, é importante avisar, principalmente para os paulistanos que foram picados há muito tempo pelo vírus da pressa crônica, que o serviço de mesa em Buenos Aires é mais parecido ao do restante do Brasil (talvez um pouco mais lento do que a média brasileira) do que ao de São Paulo. Dou esse toque porque vejo muitos amigos e familiares nervosos com a demora dos garçons daqui. Eles não são lentos nem têm má vontade em atender aos brasileiros, como alguns turistas pensam equivocadamente. É só o timing deles que é diferente do pessoal de fora (no caso, da galerinha de São Paulo). Se você entender que ninguém será tratado como rei ou rainha num restaurante portenho (não é porque se paga que tudo tem que acontecer instantaneamente ao seu sinal ou às suas ordens), certamente a experiência gastronômica não será frustrante.
Por falar em garçom, pegue o hábito de deixar os 10% da propina (gorjeta). Esse valor não vem estipulado na conta porque é convenção deixá-lo na mesa. Infelizmente, alguns brasileiros não sabem disso (imagino que o problema seja o desconhecimento, tá?) e vão embora sem pagar pelo serviço prestado pelo funcionário. É bom avisar que, diferentemente dos políticos que elegemos, alguns garçons não têm salário fixo e vivem só da propina. Portanto, se não pagamos, eles trabalham de graça. Como consequência, muitos atendentes adquirem birra dos turistas que falam português. Na visão deles, somos um povo ingrato, folgado e muquirana. Às vezes, não tenho como defender meus compatriotas dessas acusações. Para não haver mal-entendidos, é só deixar os 10% na mesa antes de ir embora. Simples assim.
Em relação à comida do almoço, talvez o mais surpreendente para os brasileiros de primeira viagem seja a ausência do bom e velho arroz com feijão. Como assim almoçar sem colocar arroz e feijão no prato?! É, querido(a) filhote de caimão, você terá que superar essa falta/ausência culinária. O lance é que os argentinos nem sequer sabem direito o que é feijão (poroto em espanhol). O arroz surge esporadicamente em risotos ou em alguns pratos bem específicos em que há mistura com carne, omelete e vegetais. O fato é que os dois ingredientes mais tradicionais da culinária diária dos meus compatriotas não estão presentes na rotina de Buenos Aires e não são encontrados facilmente nos restaurantes de comida argentina. Durma com essa bomba!

A boa notícia é que é relativamente fácil achá-los nos supermercados e feiras – principalmente o arroz. Há alguns mercadinhos especializados em comida brasileira no Centro de Buenos Aires que são a salvação da lavoura. Vou muito ao Neway Market, misto de mercado e barzinho verde-amarelo que fica na Callao y Corrientes (na divisa entre os bairros San Nicolas, Congreso e Balvanera). Lá há inclusive arroz Tio João, o meu favorito. Também aproveito as visitas mensais ao Neway para comprar tapioca. Confesso que até vivo sem arroz e feijão, mas não passo sem a tapioquinha matinal.
Para achar arroz e feijão nos restaurantes portenhos, a dica é procurar por estabelecimentos de comida cubana (que tem feijões mais gostosos até que os brasileiros), comida paraguaia (eles amam arroz assim como os brasucas) e comida chinesa (com o imperdível arroz primavera). Ou ir aos negócios voltados para turistas brasileiros. Nos famosos pega-turistas, certamente você achará porções desses alimentos, principalmente o arroz. Lembro que quando morei pela primeira vez na Argentina, coisa de vinte anos atrás, minha melhor experiência gastronômica foi no La Brigada, tradicional casa de carnes de San Telmo. Tudo porque, depois de vários meses de completa abstinência do cereal branco (nunca curti feijão), pude comer um belo ojo de bife com uma porção de arroz. Aquele foi um dos grandes dias da minha primeira temporada em CABA.
Para encerrarmos esse segundo bloco da nossa prosa gastronômica de “Tempos Portenhos”, me sinto na obrigação de falar sobre o onipresente mate. Ele adquire o caráter de uma “refeição curinga” ou de um quinto momento para se comer e beber. Exagero da minha parte? Então vamos à explicação pormenorizada, desconfiado(a) leitor(a).
O mate, para quem não sabe, é o chimarrão da Argentina. Servido frequentemente bem amargo e quente, ele é degustado de manhã à noite, até no verão. Qualquer ocasião, principalmente encontros sociais, é motivo para se compartilhar a cuia. A obsessão é tão grande do povo local pela bebida que, assim como os gaúchos fazem no Rio Grande do Sul, eles levam para cima e para baixo a garrafa térmica, a cuia e o pote de ervas. É super comum encontrarmos os portenhos caminhando na praça ou pegando ônibus com a malinha do mate embaixo do braço. E, claro, degustando a bebida em todos os cantos da cidade.
Pelo que entendi das falas e comportamentos da minha antiga professora particular de mate (saudades, July!), mais do que um hábito alimentar trata-se de um código social gravado no DNA da cultura argentina. Se você vai se encontrar e/ou prosear com um(a) argentino(a) seja em casa, na rua, no parque, na sala de aula, na praia ou na costanera, não dá para fazer no seco. Alguém precisa levar o mate. É uma obrigação moral e cívica. Assim, a dinâmica de partilhar a cuia ao longo das horas é sinal de amizade e companheirismo. Admito que me apaixonei por essa prática. Se quando vivi em Porto Alegre demorei para me afeiçoar ao chimarrão, aqui me entreguei facilmente aos prazeres do mate. Principalmente no inverno. Reconheço que no calorzão é difícil tomá-lo. Já quando a temperatura cai para baixo dos 10ºC, bebo inclusive sozinho em casa. Por curiosidade, enquanto escrevo essas linhas, estou degustando um. Sou ou não sou um portenho agora, hein?!

O argentino bebe tanto mate, mas tanto mate que às vezes tenho a impressão de que esse hábito se configura quase que em uma refeição informal. Porque enquanto toma a erva com água quente, sempre dá vontade de comer algo. Inclusive, minha professorinha me ensinou que não se deve beber mate em jejum. Dessa maneira, sempre tínhamos algo para beliscar. Podia ser salgado ou doce, não importa. O importante era forrar um pouco o estômago durante a hidratação. Como consequência, após a ingestão de litros e litros da bebida e de alguns incontáveis petiscos, não sentíamos/sentimos fome por um longo período. Será que é esse o segredo para as argentinas (juro que não reparei na silhueta dos argentinos) serem tão magrinhas? Desconfio que sim. Não sei se tem alguma relação (quanto maior o consumo de mate, mais magra é a pessoa), mas depois que passei a incluir a cuia e a garrafa térmica em minha rotina, emagreci dez quilos em três ou quatro meses. Acredite se quiser.
O que está tocando? Essa música se chama “Guacamole”. É a minha canção favorita. É boa, não é?! O cantor é Kevin Johansen. Sou tão fã dele que comentei há alguns anos sobre seu repertório e sua trajetória artística na coluna Músicas. E no ano passado, fui a “Quiero Mejor”, seu mais recente show em Buenos Aires. Ouça essa parte: “Vamos a comer a lo de Beto, que nos hizo guacamole!/Carne con frijole', carne con frijole'!/Cuchufrito, habichuela, hot tamale, trucha al escabeche/Con café con leche, con café con leche/Chimichurri, zucundún con chequendengue, Caraguatatuba/Y uma caipiruva y uma caipiruva/Un poquito de manteca, cuatro cucharada e' milanesa/Queso con frambuesa, pongan bien la mesa!”. Não é ótima?!
3) Novidades do cardápio – aproveitando o melhor da culinária argentina
Algo que aprendi ao morar em muitos lugares diferentes (às vezes, me sinto quase que como um andarilho) foi aproveitar o melhor da culinária de cada localidade. Ao invés de ficar me lamentando ou reclamando da falta disso ou daquilo, simplesmente abraço com empolgação as novidades e curto as particularidades da região em que estou vivendo. Há quem chame esse hábito/comportamento de maturidade. Até pode ser. Ainda assim, prefiro vê-lo como hedonismo de alguém que é maluco, maluquinho pelos prazeres à mesa.
Em Porto Alegre, me encantei com o arroz carreteiro, o churrasco, a pizza de strogonoff e a à la minuta, além, claro, com o cachorro-quente do Rosário e o X-salada da Lanchera. No Sul de Minas (que saudades de lá, meu Deus!), a paixão foi pelos pães de queijo, pela cocada (na verdade, por todos os doces desse pedacinho do Brasil), pelo cafezinho tirado na hora e pelo feijão tropeiro (e olha que nunca fui muito de feijão). Em Varginha especificamente, fiquei fã dos hamburgueres – quem é de lá entenderá a referência. Do Nordeste, trouxe o hábito da tapioca matinal e a admiração pelo bolo de rolo, pela carne de sol e pelo cuscuz (se bem que ainda prefiro o cuscuz marroquino). De Manaus e Curitiba, sinto saudades do abacaxi (melhor abacaxi do muuuuuuuuuuundo) e do pão no bafo, respectivamente. Do interior de São Paulo, minhas memórias afloram com o suco de milho e o bolo de milho. Ai, ai, ai. Por que fico lembrando dessas coisas?!
Deu para notar que não sou gordinho à toa, né? Mesmo dez quilos mais magro (ou menos roliço), ainda falta bastante para eu chegar a uma circunferência digna. Quando volto a morar em São Paulo, aí me delicio com os quitutes tradicionais da minha terrinha. Quem disse que Sampa não tem uma gastronomia característica, hein? Meus lugares favoritos na selva de pedra sempre foram as padarias (bauru, coxinha de frango com catupiry e pão na chapa com saída com requeijão – se acompanhados com uma longa prosa com Paulinho, Enzo e Debinha melhor ainda!), as feiras-livres, no caso as pastelarias delas (pastel com caldo de cana é o suprassumo da culinária outdoor), e as pizzarias (qualquer pizza paulistana me agrada).
Com a crença inabalável de não olhar o que estou perdendo e sim o que estou ganhando no novo lugar em que passo a morar, Buenos Aires foi uma gratíssima surpresa. Vou listar nessa parte da quinta crônica de “Tempos Portenhos” os hábitos alimentares que adquiri na capital argentina. Por supuesto, não me esquecerei de citar também as ciladas e as esquisitices que encontramos nessa charmosa cidade.

Começo pela medialuna, item indispensável na culinária local e maior paixão argentina da Marcelinha (depois da Mafalda). E não vai pensar que se trata de croissant. Medialuna é uma coisa, croissant é outra coisa. Só não sei explicar a diferença. Perdão pela ignorância! O que posso garantir com a convicção dos gordinhos felizes é que as minhas medialunas favoritas são as de manteca. Elas são perfeitas para um desayuno mais requintado ou para una rica merienda.
Curiosamente, em São Paulo, comia croissant duas ou três vezes AO ANO. Em BsAs, compro medialunas pelo menos uma vez POR SEMANA. É uma diferença substancial. E apesar dos protestos das argentinas (e até da uruguaia de Belgrano), não consigo comer medialuna de manteca sem nada – como os locais fazem com muito gosto. Sempre passo muito requeijão ou mesmo manteiga. “Mas já tem manteiga, Ricardo! Não precisa colocar mais!”. Pode até não precisar, minhas queridas, mas que fica bom com o complemento, ah isso fica. Pensando bem, talvez ainda falte muito para eu me tornar um legítimo portenho.
Outro item que foi incorporado naturalmente à minha rotina alimentar foi a empanada. Se antes de vir para cá comia raramente esse quitute (geralmente quando a Tia Gê lembrava de fazer), agora não passo a semana sem prová-lo. Vou frequentemente às unidades do Tomasso ou do Big Pizza, redes populares que vendem pizzas e empanadas, mais perto de casa e faço a festa. Sei que os produtos desses lugares não são os melhores que podemos encontrar na cidade, mas dá para o gasto. Minhas favoritas são as empanadas de queso y cebolla, jamón y queso e carne suave, nessa ordem. Quase sempre, monto um mix desses três sabores em minhas visitas às empanaderías. Na minha cabecinha curta (ou seria no meu estômago longo?), as empanadas combinam perfeitamente com la merienda – só não fale isso perto dos argentinos, por favor.
Ainda na linha “não comia antes e agora não vivo sem”, preciso falar do alfajor. Em São Paulo, quando muito, o provava uma vez por ano. Talvez uma vez a cada dois anos. Sei lá. Esse é um doce que passa desapercebido da rotina dos brasileiros. Comigo não era diferente. Contudo, agora em Buenos Aires, os compro semanalmente. Juro que não consigo ficar muitos dias sem me lambuzar com um alfajor de chocolate ou de doce de leite. Aí podem ser os industrializados mesmo (bon o bon triple e Cofler Block double são os melhores) ou os caseiros (o da cafeteria Moshu em frente de casa é um espetáculo!).
Outro dia estava pensando sobre tal mudança de hábito/comportamento. Em Buenos Aires, o pessoal não come muito chocolate, daqueles que compramos nos caixas das padarias no Brasil. Os chocolates aqui são caros e não são gostosos. Dessa maneira, para aplacar a vontade de doce que vive batendo na gente no meio do dia ou à noite, a melhor alternativa é o alfajor. Ele é gostoso, barato (mais barato do que os chocolates) e aplaca a necessidade de açúcar.

Talvez a maior surpresa que eu tenha vivenciado nessa passagem por Buenos Aires foi a mudança da minha relação com o doce de leite. Nunca gostei muito dele. Verdade verdadeira. Sempre o achei muito forte, adocicado e enjoativo. Só o comia quando surgia como ingrediente de um bolo e de uma receita que me eram servidos numa festa ou numa visita à casa de alguém. Óbvio que eu não recusava. Ninguém é gordo por acaso. Sin embargo, nunca he sido fanático de los dulces de leche. Assim, dificilmente o consumia no dia a dia. Era impensável, por exemplo, comprar bolacha de doce de leite no supermercado ou pedir um sorvete desse sabor. E o que dizer, então, de adquirir um pote no mercado para levar para casa? Impossível. Impossível, no caso, no Brasil.
Na Argentina, esse item se tornou rotineiro na minha lista de compras. Juro que não sei como esse milagre se efetuou. Só sei que, após alguns meses por aqui, uma das atrações gastronômicas do meu apê é comer bolacha de chocolate (de preferência a Chocolinas, que não tem gosto de nada) com doce de leite geladinho. Hummmmm. Essa combinação é perfeita. Sabendo disso, quando hospedo brasileiros em casa, a primeira coisa que ensino é o caminho até a geladeira e o poder da mistura das galletitas com os dulces de leche. Dos meus hóspedes mais recentes, os maiores fãs dessa dobradinha foram Menino Paulo (e olha que ele não é de doce) e Menina Mara (que não nasceu efetivamente formiga por um detalhe da composição do DNA).
E qual doce de leite você costuma comprar, Ricardo? Boa pergunta, intrépido(a) amigo(a) imaginário(a) que insiste em visitar meus textos. Para sua ótima indagação, apresento a resposta mais rasteira do meu portfólio: o mais barato. Como me ensinou uma linda médica natalense (ou futura médica, como preferir), todos os doces de leite argentinos são excelentes. Então, vá pelo preço (no caso, o menor) que você não se arrependerá. Muito sagaz essa moça, não?! A partir desse insight, só compro o que estiver em promoção.
Já que entramos na seara dos doces, o que falar do sorvete argentino?! Mamma Mia! Asseguro que ele é maravilhoso. Juro que ainda não tomei helado ruim em Buenos Aires. Se você não der sorte e porventura entrar num lugar em que eles não são ótimos, no pior dos casos serão muito bons ou só bons. Porém, aviso: será complicado não os adorar. Geralmente vou ao Grido Helado, uma das mais baratas redes de sorveterias da Capital Federal. Como já disse, sou pobre e não tenho muito dinheiro para gastar. No Grido, quase sempre peço o Bombón Escocés – Sub-30, você tinha razão, o Bombón Escocés é muito melhor do que o Bombón Suizo. Ainda assim, todos os produtos dele são incríveis. E olha que essa é uma heladería chinfrim (para o padrão portenho, claro).
Em outras palavras, se eu já gostava de provar os sorvetinhos no Brasil, chegando à Baires aumentei bastante as visitas a esses estabelecimentos. Mesmo na friaca que faz na maior parte do ano, é impossível não entrar e pedir um helado. Nessas horas, costumo ir de vanilla, chocolate clásico e dulce de leche. No Freddo, meu preferido é o chocotorta – mistura de chocolate e doce de leite. O ser humano (se foi um ser humano...) que inventou isso terá seu lugarzinho reservado no céu, no caso de ainda não ter batido às botas.

Para ninguém pensar que me transformei em um sacaromaníaco (eu, imagina!), trago para o debate as frutas argentinas. Esse país tem cada fruta deliciosa. Acho que muitos brasileiros já conhecem o sabor das maçãs daqui. Elas são as melhores que já provei. Não consigo fazer compras para casa e não trazer meia dúzia das mais vermelhinhas. Por outro lado, confesso que não acho as peras daqui tão apetitosas. As do Brasil me parecem mais saborosas (principalmente a pera portuguesa, minha predileta). O que não tem comparação são os morangos. O que são os morangos vendidos em Buenos Aires, senhoras e senhores?! Além de gigantescos, são muito doces. Dá para comê-los sem acompanhamento nenhum. Só acrescento creme de leite ou doce de leite porque sou safado, mas precisar, precisar, não precisava.
Talvez as frutas expliquem bem a importância de nos adaptarmos à realidade local. Em São Paulo (Rio Grande do Sul, Minas Gerais etc.), adorava comer melancia, melão e caqui. E não vivia sem devorar uma bela salada de fruta à tarde. Na minha cumbucona com granola e aveia, iam mamão, banana e maçã. Em poucos dias em CABA, percebi que não seria possível fazer essa combinação afrutisíaca – perdão pelo neologismo! Em primeiro lugar, o mamão daqui é muito caro e ruim. Risquei-o da lista de compras na primeira semana. A banana também tem uma qualidade discutível. A cada três compras, fico frustrado em duas. Além de estragarem rapidamente (muitas vezes já chegam passadas e pretas), não são tão gostosas. Dessa maneira, passei a comer a maçã sozinha (adeus, salada de fruta). E a melancia, o melão e o caqui, Ricardo? Esquece, querido(a) leitor(a) do Bonas Histórias. Os dois primeiros são caros e deixam a desejar. O último não vi em lugar nenhum (nem sequer sei o nome dele em espanhol).
Talvez a maior frustração para um paulistano, como eu, seja o pão portenho. Se até aqui listei essencialmente as boas novidades que encontrei em Buenos Aires, preciso abrir espaço para uma gigantesca decepção. A panificação local é uma tragédia. Pelo menos do ponto de vista de alguém vindo da capital de São Paulo. Não sei explicar o que se passa, só sei que é assim. Até Chicó, que jamais veio para esses lados nem foi para Sumpaulo, iria concordar comigo. Os pãezinhos da minha terra natal são muuuuuuuuuito mais gostosos do que os da minha nova cidade. Talvez tenha ficado mal-acostumado. E olha que já visitei várias panaderías em BsAs e já provei todos os tipos de pães argentinos.
A coisa é tão louca, mas tão louca, que os melhores pães que você provará em piso hermano não serão servidos nas padarias e sim nos restaurantes. Muitas casas de carne, cantinas e bodegones fabricam seus próprios pãezinhos. E, acredite se quiser, eles são geralmente deliciosos e chegam quentinhos à mesa. Quanto melhor for a comida principal, melhor costuma ser a entrada. Portanto, depois de enfrentar a dificuldade para achar uma padaria operando (lembre-se que elas abrem super tarde e fecham super cedo) e sofrer para decorar os vários nomes dos produtos no espanhol rio-platense (flauta, flan, milonga, baguete, mignon, pan francés, pan flute, flauta dulce etc.), sua experiência de consumo não será das mais agradáveis. Ouço até os brasileiros de fora do estado de São Paulo reclamando. Portanto, não é coisa só de paulista chato.
Tenho uma teoria que os próprios argentinos sabem que seus pães não são bons. Pelo menos os atendentes das panaderías de Buenos Aires têm ciência disso pelo comportamento demonstrado no dia a dia. Porque a maneira como eles tratam os produtos vendidos diz muito sobre a qualidade do que é ofertado. Faça você mesmo o teste que vou relatar a seguir. Eu o tenho realizado há meses e nunca o script é diferente. É hilário. Depois de um tempo, começamos a achá-lo tragicômico. Do jeito que falo/escrevo, até pode parecer um texto de ficção, coisa de um escritor com a mente criativa. Porém, não é invenção da minha parte, não! É a realidade nua e crua da cidade em que vivo (e tanto gosto!).

Vá a uma padaria (pode ser qualquer uma) e peça medialunas (ou algumas facturas de sua preferência). E repare na postura do rapaz ou da moça do outro lado do balcão. Logo de cara é perceptível que seus olhos brilham. A alegria deles é contagiante. Eles pegam uma bandejinha de papelão para depositar o que foi solicitado. Às vezes, colocam um papel vegetal sobre a bandeja. Em seguida, vestem um par de luvas descartáveis e, com uma pinça em mãos, retiram delicadamente as medialunas/facturas do cesto ou da vitrine. Como se fossem cirurgiões em momentos-chave da intervenção médica, colocam com todo o capricho do mundo os produtos no suporte de papelão. Depois, acrescentam mais um papel vegetal por cima.
Aí embrulham o pacote em um bonito papel com o emblema do estabelecimento. Ainda passam durex, para se certificar que o embrulho, tal qual um presente de Natal ou um recém-nascido bem agasalhado, não abrirá no caminho até a casa do cliente. Por fim, colocam a compra no melhor saquinho plástico que encontram na padaria. Para encerrar com chave de ouro a operação que pode durar alguns minutos, independentemente da fila que vai se formando no salão de vendas, entregam para você o pedido com um enorme sorriso no rosto. A impressão é que a maior felicidade não é de quem provará o quitute e sim daquele que o embalou. Só diz que o desfile das escolas de Samba no Carnaval do Rio de Janeiro é o maior espetáculo da Terra quem nunca assistiu aos argentinos embalarem as medialunas nas panaderías de Mi Buenos Aires Querido.
Vá neste estabelecimento nos dias seguintes no mesmo horário. E faço um novo pedido para o(a) mesmíssimo(a) atendente. Só que dessa vez, peça alguns pãezinhos. Pode ser qualquer pão: flauta, flan, milonga, baguete, mignon ou francés. Eu quase sempre compro flautas. Só não pode solicitar medialuna ou qualquer outra factura, tá? Tem que ser pão. Só pão para essa segunda fase do nosso teste empírico ter validade.
Feita a requisição, repare no quão diferente é a reação dos funcionários. De repente, o sorriso que nutriam com sua chegada desaparece. A cara que fazem é: “não acredito que vou ter que pegar pão comum para esse sujeitinho aí!?”. Com toda a má vontade do mundo (alguns arrastam o pé como se tivessem acabado de descobrir um problema grave de locomoção), vão até o cesto/vitrine e retiram o que foi pedido com as mãos. Com as mãos! Se você tiver o mínimo de sorte, os atendentes se lembrarão de colocar um saco plástico na palma (luvas descartáveis nem pensar para essa situação) antes de manusear o produto. Aí eles jogam (não estou exagerando quando uso o verbo “jogar”) o pão no primeiro saco de supermercado que seus olhos acham por perto. Saquinho de padaria? Esquece, meu/minha amigo(a). Esse artigo não tem por aqui. E se tem, é usado exclusivamente para embalar as medialunas e as demais facturas – em uma nova camada de papel que deixa o embrulho impecável.
A primeira vez em que vemos o pão sendo atirado brutalmente no saco de supermercado nos sentimos mal. É uma cena realmente forte, muito forte, principalmente para quem adora os pãezinhos (e tem algum cuidado com a higiene alimentar). Contudo, garanto que você se acostuma. Da terceira ou quarta vez em diante, não se incomodará. É mais ou menos o que os argentinos passam quando vão morar em São Paulo ou no Rio de Janeiro. Na primeira vez em que têm os celulares roubados na rua, eles se assustam e ficam mal. Depois da terceira ou quarta vez, aquilo entra na rotina e não há mais surpresas. É tudo questão de hábito e de se adaptar à cultura local.

Voltando para a padaria portenha... Aí os funcionários atiram (outro verbo escolhido para descrever com perfeição à reação da bem treinada e motivada equipe do local) o saco plástico quase sempre xexelento em cima do balcão. Se você não estiver atento, pode ser que ele caia no chão. Por isso, não dê bobeira. Agarre se algo pular para fora do balcão. Nesse instante, os atendentes olham para você com cara de poucos amigos e fazem a delicada pergunta: “Algo más?!”. Se você, meu/minha querido(a) e inocente brasileirinho(a), falar “nada más”, saiba que você terá feito um inimigo implacável no bairro. Enquanto você não voltar lá e não pedir algumas medialunas, sua pessoa e toda a sua família serão odiadas. Não está acreditando em mim? Faça, então, essa experiência. O resultado é assustador.
Agora falando sério: dá para viver bem sem pãozinho de qualidade? Dá. Existem várias alternativas para suprir a ausência desse item na mesa. A medialuna de manteca é uma belíssima opção – entendeu agora o porquê a incorporei no cardápio?! Os pães de forma também são outra possibilidade. Como já disse, costumo recorrer à tapioca, que compro no Neway Market ou que a brasileirada me traz. O que não concebo é viver sem um bom café em casa. Pelo menos no meu lar, isso é impensável. É só falar de café na Argentina que aí o caldo entorna para os brasileiros. Não por acaso, tal aspecto foi o que mais me assustou quando cheguei a Buenos Aires. Se a questão do pão foi uma decepção, o problema do café é uma tragédia. Se os produtos oferecidos pelas cafeterias da cidade são excelentes (alternativa preferida dos turistas), os vendidos nos supermercados são péssimos e caros (a opção principal dos moradores de Baires). E falo com propriedade de causa: testei vários. VÁRIOS! NENHUM pode ser considerado minimamente aceitável.
Após algumas semanas de sofrimento, passei a fazer cappuccino caseiro – receita da Dona Cidinha que desenterrei. Era melhor do que os cafés argentinos vendidos nos mercados. Qualquer coisa era melhor do que os pacotes dos hermanos. Mesmo assim, admito que não estava totalmente feliz. Meu cappuccino era/é razoável (houve até lotes exportados para o bairro de Almagro, na época da imersão cultural com a geração Z), mas não era/é um café, caféééé, daquele que aquece a alma e alimenta o espírito. O drama durou até a chegada da primeira leva de visitantes brasileiros. Como requisito para hospedá-los em casa, comecei a cobrar uma singela comissão: pacotes de café brasileiro.
A partir daí, fez-se a luz. Agora, o problema é arranjar espaço no armário para armazená-los. Cada grupo de visitante que desembarca em CABA e fica em Saavedra quer superar em quantidade o grupo anterior. Eduardo Villela apareceu em dezembro com doze pacotes (eu disse DOZE!!!), recorde absoluto até agora. Importante avisar que recordes servem para serem batidos. Jejeje. Não é preciso dizer que Dudu ganhou um cantinho no céu. No meu apê, a geladeira e a dispensa até podem viver vazias (algo normal em fase de câmbio cada vez mais desfavorável para o pobre e combalido real). Porém tenho café para alguns anos. De todos os sabores e marcas. Ufa!
4) Não dá para negar a realidade – Buenos aires é mesmo o paraíso da carne
Estamos conversando há um tempão sobre comes e bebes da capital da Argentina e não entrei ainda no tema preferido de 8 entre 10 conterrâneos (novamente a fonte é o DataRicardinho). Claro que estou me referindo à dupla imbatível “carne e vinho”. Sendo sincero no nosso bate-papo, até trouxe esse assunto no começo deste post de “Tempos Portenhos”. Aposto que você se lembra. Entretanto, o intuito foi desconstruir a ideia de que Buenos Aires seria uma cidade de uma só nota (está bem, duas notas) melódica(s). Nota(s) melódica(s) no quesito culinário, tá? Na cabecinha da maioria dos brasileiros, BsAs é sinônimo de carne & vinho e vinho & carne. Se fui minimamente bem-sucedido na minha argumentação, acho que ficou mais ou menos evidente a pluralidade da cena gastronômica do lugar que escolhi para viver. Por melhor que seja essa combinação (e ela é!), vejo como um desperdício de tempo, energia e experiência sinestésica se limitar às parrillas e às copas de vinos quando se busca bons momentos à mesa.

Agora que alinhamos o mindset (há mais ou menos dez anos não usava essa palavra), podemos retornar ao início da nossa prosa e falar de carne e vinho sem medo da consciência ficar pesada – só a barriga pode se avolumar. Porque sim, estamos no paraíso das carnes bovinas e dos vinhos Malbec. Tudo o que você ouviu (e não ouviu) de positivo a respeito dessa temática era verdade. Só não dava para abrir meus relatos por tal seara, né? Do contrário, meu texto pareceria recheado de clichês culinários e temperado com o sabor do mais do mesmo. Você pode acusar o Bonas Histórias e a coluna Contos & Crônicas de tudo, menos de cair no senso comum e de trazer conteúdos rasos. Cruz-credo!
Seguramente não há metrópole no planeta que permita que comamos carne tão bem quanto Buenos Aires. Meus amigos uruguaios vão me desculpar, mas mesmo Montevideo não chega aos pés de sua vizinha do outro lado do Rio da Prata. A diferença entre as duas capitais do cone Sul do continente não está na qualidade do que é ofertado. Ambas são excelentes e ganham avaliação máxima no quesito churrasco – CHURRASCO, noooota 10!!! Se há algo que argentinos e uruguaios são disparadamente os melhores do mundo é na arte de preparar e servir uma memorável parrilla. A principal distinção está no porte de seus cenários gastronômicos. Como Baires é uma cidade maior e mais dinâmica, as opções se potencializam. Em Montevideo, a sensação é que falta movimento e variedade. Sempre que vou à capital uruguaya, fico com a impressão de ter visto tudo e de que não surgiu nada de novo nos últimos anos.
Aí está o grande mérito de Buenos Aires. Você encontra boas carnes em todos os lugares. Além disso, estão sempre surgindo novidades. Estou há um ano e meio aqui e sigo descobrindo pérolas ocultas. A última grata revelação foi o La Entrañita, em San Telmo. Numa portinha pouquíssimo convidativa para turistas na Calle Venezuela, se encontra um vacio delicioso a um custo-benefício que nem mesmo o câmbio desfavorável é capaz de estragar. Tudo num ambiente extremamente simples para quem não é afeito à badalação e à pompa. Notei que os clientes estavam ali por causa do sabor da comida e não pela beleza da ambientação ou pelo status do estabelecimento. Não por acaso, eu era o único gringo nas apertadas mesas do barulhento salão.
Apesar do meu exemplo acima, os bons restaurantes não estão concentrados no Centro nem no setor turístico da cidade. Eles estão espalhados por dezenas e dezenas de bairros. Para ser bem franco com quem me lê, até acho que as melhores casas de carne são aquelas que atendem aos moradores e não aos visitantes. Aqui em Saavedra, uma localidade no extremo da Zona Norte onde se vive prioritariamente argentinos (acho que sou o único brasileiro nas redondezas, pois o maior contingente de estrangeiros é de russos e ucranianos), tem algumas excelentes parrillas. A minha favorita é Los Amigos de Siempre, que visito semanalmente – “Martina, te pido, por favor, un bife de chorizo con papas fritas del menú executivo”. Mas não é a única. Tem várias churrascarias primorosas! Em Núñez, bairro vizinho, sou fãnzaço do BesAres Parrilla. Quase sempre saio rolando de lá e com um sorrisão no rosto. Em Chacarita, numa caminhada um pouco mais longa, gosto de ir ao Barcelona Asturias. Eles têm uma carne al horno con papas españolas que é uma coisa. Se bem que essa última citação é um bodegón e não uma churrascaria.
É possível notar a cultura da parrilla em Buenos Aires principalmente aos domingos e feriados. Proponho um novo teste para você. Caminhe pelas ruas e avenidas portenhas entre 11 e 16 horas. Se der, visite algum parque ou dê um pulo na Costanera (calçadão à beira do Rio da Prata). Um dos elementos que mais chamam minha atenção até hoje é o cheiro de churrasco que a cidade exala nos dias de descanso. A sensação é que todos estão fazendo parrilla. Quando volto do passeio dominical (geralmente faço uma caminhada de algumas horas pela Costanera de Vicente López) e dou uma olhada pelo terraço do meu apartamento, noto que não se tratava de uma mera impressão. Boa parte dos vizinhos está mesmo entretida nas churrasqueiras de suas varandas. Porque é impensável uma casa ou um apartamento daqui sem um local para preparar as carnes. E aqueles que não estão entretidos no preparo do almoço, certamente estão visitando um dos restaurantes do bairro que bombam naquele horário.

A variedade das carnes acompanha a pluralidade de locais para degustá-las. Há cortes nobres que podem ser pedidos em qualquer lugar, como o bife de chorizo (seria a nossa alcatra), ojo de bife (uma espécie de contrafilé), asado de tira (mais ou menos como a costela), lomo (nosso filé mignon) e solomillo (lombinho). Se você não quer errar, vá de um deles. São todas carnes bovinas de primeira e proporcionam uma experiência magnífica aos mais exigentes comensais.
Confesso que raramente vejo um portenho pedir ou fazer ribeye, filet mignon, T-bone ou picanha brasileira. Vamos combinar que esses são itens voltados para fazer a cabeça da turistada pouco conhecedora da gastronomia argentina. Por isso, desconfie se o restaurante em que você estiver oferecer esses cortes como as melhores alternativas da carta. Certamente, você está num legítimo pega-turista – estabelecimento que não oferece a melhor experiência culinária local e ainda assim cobrará beeeeeeem caro pelo que lhe foi entregue na mesa.
Para quem não quer ficar só nos cortes nobres, há outras excelentes opções, como vacio, tapa de cuadril e costillita (juro que até hoje não sei a diferença do asado de tira para a costillita, mas tudo bem). Sou suspeito para falar, pois sou apaixonado tanto pelo vacio quanto pelo tapa de cuadril. Comeria essa dupla tranquilamente todos os dias. Dói no coração pensar que não são carnes nobres. Só na Argentina para algo desse tipo acontecer, né? Porque em qualquer outro país esses cortes seriam considerados de primeiríssima linha. Só não curto muito a costillita pela quantidade de ossos, mas é inegável que seja uma carne saborosíssima. Também não peço muito asado de tira pelo mesmíssimo motivo. Pode ser coisa minha (ou de um paulistano que não entende nada da cultura churrasqueira), mas os termos “osso” e “churrasco” não combinam um com o outro. Sei lá. É coisa da minha cabecinha.
Os melhores temperos das parrillas são o chimichurri, molho picante feito com salsinha, alho, cebola, pimenta, orégano, pimentão, mostarda, vinagre, azeite de oliva e mais alguns condimentos, e a salsa criolla, uma espécie de vinagrete latino-americano feita à base de cebola, pimentão, tomate, vinagre, azeite e mais algumas coisas que não sei o que são. O chimichurri e a salsa criolla são colocados nas carnes no momento de comê-las. Muitos hermanos gostam de misturar um pouco de cada. Eu prefiro colocar um ou outro para sentir seus sabores. O churrasco ganha outra dimensão quando complementado com esses molhos. Como a carne argentina é servida sem sal, quando colocamos o chimichurri e/ou a salsa criolla estamos temperando o prato. Aí ele fica apetitoso. Quem não quiser utilizá-los, certamente terá que colocar sal na carne para sentir o sabor. Por falar nisso, quase nenhuma comida servida na capital argentina vem temperada. Essa é uma tarefa que os comensais fazem na mesa.
Só tome cuidado com o hábito argentino de comer carnes pouco aceitáveis para o paladar dos brasileiros. Ou, no caso, da maioria dos brasileiros. Talvez os sulinos (beijinho, Gaby) e quem foi criado em fazendas no interiorzão (abraço, Dudu) consigam entender a adoração dos hermanos pelas partes esquisitas das vacas e dos porcos. Quer deixar um argentino feliz é lhe servir chinchulin (intestino delgado), riñones (rins) e morcilla (espécie de linguiça ou salsicha com SANGUE!). Repare que nem os nomes são convidativos: chinchulines, riñones e morcillas. Aos meus ouvidos sensíveis, soam como filmes de terror. Sempre que os vejo no cardápio ou na churrasqueira, me afasto como se estivesse diante do capeta.

O problema é que esses são itens indispensáveis numa boa parrilla (churrascada). Aqui vale a pena um parêntese. A palavra parrilla tem quatro significados distintos em espanhol, que em português ganha quatro palavras diferentes. Pelo menos foi essa a interpretação que fiz e que adquiriu algum sentido lógico no meu mundinho. Se eu estiver errado (o que não é difícil), por favor alguém me corrija. Parrilla pode ser: (1) a churrasqueira (onde se prepara a carne); (2) o churrasco em si (a carne do churrasco); (3) a churrascaria (restaurante especializado na venda do churrasco); e (4) a churrascada (evento social/familiar em que o prato principal é o churrasco). Por isso, sinalizei algumas vezes no texto o real sentido da palavra parrilla em nosso idioma.
Estou mencionando tal questão porque se você for convidado para uma parrilla, pode ser que seja para ir a uma churrascada. Antes de se empolgar, saiba que a churrascada argentina é constituída por muitos chinchulines, riñones e morcillas. Eca! Quase sempre, essas são as carnes mais esperadas pela galerinha local e, portanto, têm em grande quantidade. Em outras palavras, a tradicional parrilla argentina (no sentido de churrascada) é sinônimo de cilada para os brasileiros sem a alma rural. E tenha a certeza de que pela amabilidade dos anfitriões desse tipo de evento, eles vão querer que você experimente “só uma porção” dessas iguarias. Não sei se você é como eu, mas prefiro pular na piscina e tentar um afogamento do que provar rins e intestinos bovinos e linguiça com sangue. Se não tiver piscina, tento o suicídio numa pia de banheiro mesmo.
A parrilla (churrascada) é servida em muitos restaurantes e parrillas (churrascarias) de Buenos Aires. O turista brasileiro desavisado pensa que se optar por esse item do cardápio receberá ótimos cortes e excelentes carnes. Em muitos casos, é inclusive propagado que o prato dá para três ou quatro pessoas (o que é verdade). O que ninguém avisa é que a maior parte do que é servido ali será desprezada pelos brasileiros nascidos nas grandes cidades do Paraná para cima. Se você for fresquinho como eu, conseguirá comer uma pequena porção do que é ofertado. Por mais que chegue à mesa uma bandeja cheia de carne, o maior volume é de chinchulines, riñones e morcillas. Aí não! Pior é que não dá nem para levar para casa o que sobrou. No meu apê por exemplo, não entra essas partes dos bichos mortos. Nananinanão. Eles estão proibidos de passar pela porta.
Uma de minhas paixões do universo da parrilla argentina é o chorizo (linguiça). Porque um bom churrasco não é feito só de carne bovina, certo? Eu não fico sem o choripan (chorizo + pan = choripan), sanduíche de linguiça com chimichurri ou salsa criolla. Sempre peço com chimichurri pois o casamento dele com chorizo é perfeito! Nos jogos do Platense, simpático time do bairro de Saavedra, passo no A Mofar, considerado o melhor restaurante de 2024 pela crônica CABA que não acaba, e devoro um choripan con fritas. Se as partidas do Timão no Pacaembu pediam pastel (não ria, sou do tempo em que os duelos do Coringão eram no Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho), aqui la comida de la cancha del fútbol é outra. Quando o passeio dominical é pela Costanera de Vicente López, San Isidro, San Fernando e/ou Tigre, a melhor opção é o choripan do El Chaqueño, restaurante pequeno e familiar do ladinho de casa. Ao chegar do rolê pelas margens do Rio da Prata, gosto de ir lá e pegar um lanche com linguiça e batatas fritas que dá para duas refeições (ou para duas pessoas, como queira). É incrível!
Ainda no mundo da carne de porco, um corte que aprecio é a bondiola. Para ser sincero, não faço ideia de que parte do bicho ela vem. Nem tive curiosidade de pesquisar. Talvez seja melhor assim. Vai que... A bondiola tem um gosto forte, bom sabor, é molinha e tem nome agradável (não seria um título de filme de terror). Com esses predicados, já me dei por satisfeito. Costumo colocar bastante limão e salsa criolla, que nesse caso cai melhor do que o chimichurri. Como a bondiola tem um gosto marcante, acho que fica pesado acrescentar um tempero picante. Contudo, é bom dizer que para essa carne ficar realmente boa é preciso saber prepará-la. Na dúvida, não a coma onde você desconhece o talento do cozinheiro.

Para quem deseja sair do roteiro churrasco-churrasco-churrasco ou já se enjoou das parrillas só de ouvir falar delas por intermináveis parágrafos, aí as boas pedidas são a carne de ternera, carne al horno, albóndigas e escalopes. Porque carne não é sinônimo de churrasco, né? Há alternativas de preparo que passam longe da churrasqueira e dos cortes nobres/clássicos.
A carne de ternera é comumente usada nas imperdíveis milanesas – item que não pode faltar na mesa dos argentinos e que entrou definitivamente no meu cardápio semanal. Ao visitar Buenos Aires, prove a milanesa napolitana (com presunto, queijo e tomate/molho de tomate) e a milanesa fugazzetta (com queijo e cebola) de algum bodegón. São realmente deliciosas. Para mim, os bodegones são sinônimos de milanesa – o meu predileto é o La Farola de Saavedra. Além desse prato, é muito comum os restaurantes utilizarem a ternera em outras composições. Se ela estiver presente em algum item ofertado, saiba que você pode pedir sossegado que não haverá risco de decepção.
Já a carne al horno e as albóndigas são, respectivamente, a carne assada e as almôndegas. Escalope é, obviamente, o escalope. Não sei que tipo de carne é usada para fazê-los, mas nunca fiquei desapontado. O que posso assegurar é que, assim como as milanesas, esse trio se constitui em pedidos interessantes para serem feitos nos bodegones. Por falar nisso, como esse tipo de estabelecimento não possui parrilla (churrasqueira), é bom evitar pedir os cortes de churrasco nesses lugares. Parrillas (churrasco) são para serem pedidas nas parrillas (churrascarias) e nas steak houses. Não vá inventar de querer achá-las onde não há. Além de não virem tão saborosas, elas podem surpreender negativamente os incautos turistas brasileiros.
Isso aconteceu com Paulinho. Em sua última visita à CABA, ele conseguiu a façanha de realizar péssimas escolhas em quase todos os restaurantes visitados. Deu dó. Tão bonzinho. Não merecia. Quando fomos ao BesAres, uma das melhores parrillas da Zona Norte, ele pediu uma milanesa de cordeiro. Não!!!!! Milanesa se come em bodegón. Indiferente ao meu apelo do que via como um equívoco gigantesco, Paulo seguiu irredutível em sua escolha. Como tinha mais pessoas conosco, que inclusive pediram o mesmo prato que ele, não deu para eu insistir. É claro que quando chegou meu bife de chorizo e a milanesa dele, meu amigo reconheceu instantaneamente a falha absurda. O curioso é que ele não precisou dizer isso verbalmente. Vi em seus olhos o desapontamento.
Alguns dias mais tarde, estávamos faceiros na mesa do Barcelona Astúrias. Querendo se redimir do vacilo anterior, Paulinho tomou a iniciativa e foi logo pedindo um bife de chorizo para o garçom. O espanto foi duplo: do funcionário do restaurante e da minha pessoa. O problema é que agora estávamos num bodegón. Novamente, dei um toque sutil que o melhor prato ali era a carne al horno e disse que nunca tinha pedido uma parrilla por aquelas bandas. Talvez com a imagem do meu prato no BesAres em mente (ou envergonhado em mudar o pedido depois de ter sido tão enfático com o garçom), meu amigo seguiu convicto em sua escolha. O arrependimento bateu quando ele viu o prato da carne al horno e notou que seu bife de chorizo veio frito. Bife de chorizo frito, Ricardo? Pode isso?! Sinceramente, jamais tinha visto uma atrocidade daquele nível. Nos bodegones, há o risco de fritarem até as carnes nascidas para jazerem felizes na parrilla. Agora pensa num sujeito decepcionado. Esse era Paulo depois daquela refeição. E de ter acumulado os mesmos tropeços ao longo de uma semana inteira.

Não cometa esse erro crasso, por favor. Saiba o tipo de estabelecimento que você está e peça de acordo com o que se oferece de melhor ali. E não com o que você tem vontade na hora. Não é porque Buenos Aires é la tierra de la parrilla que você a encontrará em todos os lugares. Já vi brasileiro entrar numa cantina (não foi o Paulo, tá?) e reclamar que não tinha asado de tira no menu. Não adiantou o garçom explicar com toda a paciência do mundo que ele estava em um estabelecimento de comida italiana e que não havia parrilla no cardápio. A frase hilária que o cliente nervosinho proferiu foi memorável: “Então quer dizer que italiano não come churrasco?!”. Meu conterrâneo, para desespero do resto da comitiva, permaneceu revoltado e ameaçando ir embora. Tem cada um nesse mundo.
Um corte que não sou muito fã é o matambre, que conheci nos tempos em que vivi no Rio Grande do Sul. Trata-se de um pedaço de carne extraído entre a pele do gado e a costela. Acho que é algo nessa linha, pelo que me lembre. Em Buenos Aires, ele é assado e servido quase sempre enrolado, em um grande bolo de carne com alguns condimentos e temperos. No Sul do Brasil, há a alternativa de vir fatiado e colocado dentro do pão. Confesso que até pode existir esse jeito na Argentina, mas eu não o vi ainda.
O meu problema com o matambre é que acho seu gosto muito, muito forte. Não sei explicar. Não curto. Você come um pedaço e fica com aquele sabor na boca por um tempão. Além disso, sempre vi o pessoal colocar muito limão. Por isso, peguei esse hábito, o que ajuda a minimizar seu gosto intenso. De qualquer maneira, essa é uma das últimas opções que cogito na hora de comer carne. Digo últimas opções porque as tranqueiras como chinchulines, riñones e morcillas nem sequer figuram na minha lista de alternativas válidas.
Meu Deus, o quanto já falei de carne. Se vocês deixarem, fico proseando por dias e dias. Contudo, preciso entrar no assunto da próxima seção: o vinho. Vou correndo lá antes que alguém pegue o banquinho e saia de mansinho. Não faça isso! Estamos quase terminando nosso passeio culinário por Buenos Aires. Sirva-se de mais uma chipa, que acabou de sair quentinha do forno, e tome mais um gole desse cafezinho que acabei de passar.
5) Não sei se bebida faz parte da gastronomia – ainda assim, falemos de vinho argentino
Infelizmente, meus conhecimentos sobre essa última pauta do nosso debate são mais limitados, muito mais limitados. Quando a matéria é vinho, sou costumeiramente o pior aluno da turma. Diferentemente de meus amigos mais chegados, que são especialistas nesta disciplina e poderiam muito bem ser professores. Enquanto eles só tiram nota 10 nas provas etílicas e voltam para casa quase sempre alegrinhos, eu nunca tiro nota azul e invariavelmente retorno sóbrio. Mesmo assim, vou tentar falar sobre los vinos argentinos. Compromisso é compromisso!

É bom avisar que no Brasil eu raramente tomava vinho. Por quê? Porque não tinha esse hábito. Simples assim. Porém, conforme você já deve ter percebido, sou daqueles que gostam de absorver a cultura local. Como diz o velho ditado, que adoro dar uma complementada: em Roma, como os romanos (e coma as romanas). Antes de morar em Minas, não era viciado em café. Difícil de acreditar, né? Hoje não vivo sem um copão pela manhã (e um copinho à tarde). Em Buenos Aires, vivenciei o mesmo processo, só que com os vinhos. Se antes desprezava as taças, agora tenho o maior respeito por elas e as curto de vez em quando. De abstêmio convicto, agora sou um fã amador do universo de Baco.
A mudança ocorreu porque em Buenos Aires se toma muito, muito vinho. Faz parte da cultura da cidade. É muito legal. Há bares só de vinhos, que são uma delícia de ir à dois. A bebida também é servida no menu executivo dos melhores restaurantes. Isso em pleno horário do almoço. Juntamente com o prato principal, escolhe-se o que beber: água, refrigerante ou uma taça de vinho da casa. Por mais que eu siga pedindo água sem gás, noto que o pessoal prioriza a opção mais etílica, ainda que estando no intervalo de meio de expediente. Nessa hora, sempre me recordo de quando era estagiário na Gradiente Eletrônica, no início dos anos 2000. Numa cantina italiana de Pinheiros, em São Paulo, um analista de TI recém-contratado chocou os colegas quando, em pleno almoço de trabalho, pediu uma tacinha de vinho. Na visão de todos ali, o cara era antiprofissional por beber álcool antes do fim do expediente.
Outra questão que ajuda é o preço. Você vai num restaurante portenho e não é extorquido se pede uma garrafa. Confesso que sequer cogitava fazer isso em São Paulo (Porto Alegre, Varginha, Curitiba, Campinas, Recife, Jundiaí, Manaus...). No Brasil, meus olhos nem mesmo iam para a parte das bebidas produzidas pelas vinícolas. Na Argentina, sinto-me convidado a bebericar um tinto. Se você estiver sozinho, dá para pedir una copa (uma taça). Se estiver (bem) acompanhado, é quase que automático pedir um Malbec no jantar. Muitas vezes, admito que comecei a olhar o menu pela carta de vinho.
No supermercado, talvez a questão do preço fique ainda mais evidente. Una buena botella tem valor próximo aos das bebidas não-alcóolicas. Darei como exemplo o rótulo que sempre tenho em casa, o Cordero con Piel de Lobo. Este é um vinho basicão para se consumir no dia a dia. No meu caso específico, dia a dia é figura de linguagem. Não tomo rotineiramente. Só quando recebo visitas e precisamos de uma bebida de uva para acompanhar a pizza, a carne ou mesmo o pão de queijo. Pão de queijo, Ricardo? Claro. Esta é uma casa brasileira com certeza. Eu paguei 6 mil pesos argentinos na minha última compra do Cordero con Piel de Lobo de 750 ml. Isso dá, no câmbio de hoje (fevereiro de 2025 em que 1 real é 200 pesos argentinos), R$ 30,00. Para se ter uma ideia, uma garrafa de 2 litros de suco de laranja natural sai, em promoção, por 5 mil pesos (R$ 25,00). Uma garrafa de Coca-Cola de 2,25 litros (não compro essa porcaria, mas pesquisei só para citar) custa 4 mil pesos (R$ 20,00). Vamos combinar que vinho cabe no bolso da maioria das pessoas de classe média.
Pelos valores citados, deu para ver que o câmbio deixou de ser favorável para quem ganha em real, como é o meu caso. Aquela alegria de a Argentina estar barata para os brasileiros acabou há pelo menos um semestre. Agora está tudo bem caro. Quando me mudei para BsAs, em setembro de 2023, me recordo que encontrava a garrafa do Cordero con Piel de Lobo por US$ 1,20, cerca de 1.200 pesos argentinos ou R$ 5,80. O dólar naquele momento valia, acredite, R$ 4,80. Um bom vinho por menos de R$ 6,00. Pode isso, Arnaldo? Há dois anos, podia.

Lembro com clareza dos números porque foi nessa época que recebi a visita de Daniella (minha priminha brasileira) e Markos (o alemão que torce para o Borussia Dortmund). O casal mais engraçado da Suíça ficou hospedado em Saavedra e, numa tarde chuvosa de verão em que ficamos presos em casa, servi o vinho que tinha no armário. Foram duas garrafas de Cordero con Piel de Lobo com queijo. Eles acharam gostosinho, mas nada demais. É, afinal, um produto corriqueiro. Contudo, o espanto surgiu quando me perguntaram quanto tinha custado. Os dois têm essa mania de perguntar o valor de tudo. Foi Dani quem fez os cálculos do câmbio. E Markinhos só acreditou que aquela garrafa custava pouco mais de um dólar quando a mostrei na gôndola do chino do bairro. Certamente, o alemão voltou para a Europa incrédulo como a Argentina podia se comer carne e beber vinho com algumas moedinhas de euro.
Presente no meu apartamento e sendo opção nos jantares mais divertidos fora de casa, o vinho soube me seduzir com seus encantos. Continuo não entendendo absolutamente nada, mas gosto de provar, principalmente com carne e massa. O que percebi é que os(as) argentinos(as) de mais de 40 anos tomam muuuuito mais vinho do que os(as) brasileiros(as). Já a moçadinha de menos de 30 anos acaba preferindo a cerveja. É uma distinção entre as gerações. Cada idade se embebeda de um jeito. Os velhotes vão de uva etílica e a molecada vai de cevada encorpada. Além disso, em Baires, vinho é uma bebida que normalmente se consome mais fora de casa – exatamente o contrário do que se passa em quase todo o Brasil. Já dentro de casa, os(as) portenhos(as) preferem beber cerveja. Estranho isso, não?
Descobri essa particularidade local com a policial de Belgrano, a primeira amiga que fiz por aqui. Estava há dois ou três meses em Buenos Aires quando, para agradar a gatinha com quem comecei a prosear, a convidei para tomar um vinho em casa. Ela bateu a mão na cabeça com decepção e me questionou: “acho que você está me convidando para tomar uma cerveja na sua casa, né?”. Como estava ainda pouco familiarizado com o idioma, a corrigi. “Não, não. Falei vinho mesmo. Não cerveja”. Até porque odeio cerveja e não tinha uma latinha em casa. Com toda a paciência do mundo, ela bufou e retrucou como se estivesse ensinando uma criança: “Ah, que bom que você está me convidando para tomar cerveja. Porque ninguém toma vinho em casa. Se fosse vinho, não iria. Mas como é cerveja, é claro que eu topo”. Só me restou balançar empolgado a cabeça para cima e para baixo. “Pois foi exatamente isso o que falei – para tomarmos cerveja. Adoro cerveja”.
É bom esclarecer que vinho por essas bandas é quase sempre Malbec. Por mais que haja uma boa variedade de rótulos e sabores, ainda assim a preponderância desse tipo de uva é avassaladora. Como entendo bulufas do assunto, para mim é bom. Ao tomar só Malbec, posso ir aprimorando o paladar para esse tipo de bebida e conhecendo os principais produtores. Além do mais, o Malbec harmoniza (perfeitamente) com carne e (mais ou menos) com massa com molho vermelho. Estando em Buenos Aires, o que mais vocês querem da vida, senhoras e senhores?!
Para encerrar essa crônica, que está ganhando dimensão de um livro, preciso contar a experiência que tive com Eduardo e Paulo, amigos que aportaram em Buenos Aires em dezembro do ano passado e que vivem aparecendo em meus textos. Essa duplinha tem cada história maravilhosa. Eles vieram para os festejos dos 10 anos do Bonas Histórias (versão que eu gosto de acreditar) e para que fizéssemos os planejamentos estratégicos das suas empresas, respectivamente, a EV Publicações e a Epifania Comunicação Integrada (versão que eu não gosto de crer, mas que se aproxima da realidade). Como os dois são fanáticos por vinhos, parte do nosso tempo livre era para visitar lojas de bebida. Uma chatice para mim e uma diversão incalculável para eles. Não podíamos caminhar pelas ruas e avistar uma lojinha bonitinha que lá iam os dois correndo porta à dentro. Isso durou até o dia em que precisamos ir a um chino, os supermercados famosos por oferecer bons preços.

Enquanto fui para a prateleira para pegar o que precisávamos para casa (os dois ficaram hospedados comigo), Dudu e Paulinho foram automaticamente para as estantes de vinho. Às vezes, penso que os corpos deles estavam tão habituados a procurar por bebida que agiam inconscientemente. Foi nessa hora que eles ficaram chocados com os preços. Os mercadinhos simplórios de bairro vendiam os rótulos por quase a metade dos valores praticados nas lojas bonitinhas que eles estavam frequentando. A partir daí, aconteceu o milagre: não precisamos mais ir às lojas. Ufa! Dei graças a Deus. Por outro lado, aí vem a má notícia, tínhamos que entrar em todos os chinos que passávamos em frente. Ai, ai, ai. Como existem muito mais chinos do que lojas de vinhos em CABA, calcule o nível do meu drama. Até hoje, não sei como não enlouqueci naquela semana. Jejeje.
Chegamos ao fim do episódio mais longo (até aqui) de “Tempos Portenhos”. Juro que não acredito que conseguimos concluí-lo. E, por favor, não quero ouvir reclamações. Se você que está lendo se cansou, imagine eu que tive que escrever esse monte de ladainha! Falar de comida e bebida dá mesmo pano para manga. Manga? Que saudades de comer uma. Quando se empurra um gordinho para esse tipo de atividade, dá nisso: ele não para nunca mais de tagarelar. Ainda mais quando está com fome. Falando nisso, posso assar mais algumas empanadas?! Tenho agora só de carne. Pode ser?
Enquanto você pensa se vai ou não comer mais, preciso dizer que, em maio, retornarei à coluna Contos & Crônicas para apresentar um panorama completo sobre o futebol argentino. É ou não é outro assunto fascinante, hein? Como é a paixão dos moradores de Buenos Aires pelos seus times? Como funciona os campeonatos locais? Como são os estádios e a infraestrutura esportiva da cidade? Eles são mesmo mais fanáticos do que a gente? Obviamente, essas reflexões partirão do olhar de um brasileiro que está misturado entre os adoradores de Messi e Maradona. Em suma, essa é a ideia do Episódio 6: La verdadera Cancha del Fútbol.
Não perca o restante da atual série não ficcional do Bonas Histórias. Até lá, galerinha!
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Nona série narrativa da coluna Contos & Crônicas, “Tempos Portenhos” é a coletânea de textos pessoais de um brasileiro que escolheu viver em Buenos Aires. Neste conjunto de memórias, Ricardo Bonacorci revela os detalhes da capital argentina, o dia a dia dos moradores locais e estrangeiros, a cultura da cidade, a história do país e os hábitos portenhos. Cada narrativa abordará um tema específico: o passeio habitual pelos parques; o amor incondicional aos cachorros; a paixão pela carne; a devoção pelo futebol; as particularidades da língua espanhola dos habitantes das margens do Rio da Prata; a segurança e a qualidade de vida na capital argentina se comparadas às das cidades brasileiras; a contradição da crise econômica e da metrópole fervilhante; o custo de vida mais baixo etc. O objetivo aqui é fazer, de 2024 a 2026, um raio-X da alma portenha.
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