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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural – literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura, gastronomia, turismo etc. –, o Blog Bonas Histórias analisa de maneira profunda e completa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 44 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

Filmes: Flow – A animação da Letônia que conquistou o Oscar em 2025

  • Foto do escritor: Ricardo Bonacorci
    Ricardo Bonacorci
  • 5 de mai.
  • 20 min de leitura

Dirigida por Gints Zilbalodis, esta produção independente foi criada por quatro jovens europeus em um programa de computador gratuito. Com uma trama sobre a beleza da amizade entre animais tão diferentes, o longa-metragem encantou o público internacional (e os jurados da Academia de Los Angeles) e faturou a primeira estatueta dourada do cinema letão.

Flow (Straume: 2024) é o filme dirigido por Gints Zilbalodis que conquistou o primeiro Oscar do cinema da Letônia ao ganhar a estatueta na categoria melhor animação

Sei que ninguém mais está falando do Oscar de 2025. Até porque esse assunto dominou o noticiário brasileiro nos três primeiros meses do ano como raramente se viu. De repente, o país do futebol virou, felizmente, a nação da Sétima Arte. Por várias e várias semanas, boa parte dos meus conterrâneos (me incluo nesse grupo, tá!) só discutia as qualidades de “Ainda Estou Aqui” (2024), as desventuras da família Paiva, as polêmicas de “Emilia Pérez” (2024) e as chances de Fernanda Torres de se consagrar mundialmente. Juro que não me lembro de quando o Brasil respirou os ares do universo artístico-cultural com tanta intensidade. Dessa maneira, era natural supor que esse tema esfriasse depois da divulgação dos vencedores do Oscar


Mesmo sabendo do timing equivocado da minha parte em retomar uma questão aparentemente batida em maio, gostaria de comentar no post de hoje da coluna Cinema um filme europeu encantador. Estou me referindo a “Flow” (Straume: 2024), a animação independente da Letônia que faturou a estatueta da Academia de Ciências Cinematográficas de Los Angeles no início do mês retrasado. Você vai tratar de um filme letão que papou o Oscar, Ricardinho?! É isso mesmo, leitor(a) sempre participativo(a) e questionador(a) do Bonas Histórias. Com a proposta de desbravar todas as fronteiras do mundo cinematográfico, o blog chega a um novo território. Uhu!


Confesso que foi a primeira vez que conferi um longa-metragem desse pequeno país báltico que está situado ao Sul da Escandinávia, a Oeste da (cada vez mais perigosa) Rússia e ao Norte da Europa Oriental. Se nos ofendemos quando um gringo não consegue apontar onde o Brasil fica no mapa-múndi, o(a) convido a dizer onde fica a Letônia no mapa europeu! Admito que só consegui passar as coordenadas geográficas depois de uma boa olhada no Google Maps. E ainda assim, vivo confundindo Letônia com Estônia. Ai, ai, ai. Além disso, proponho outra reflexão: se os brasileiros ficaram felizes com o primeiro Oscar, imagine a reação da nação com menos de 2 milhões de habitantes (tamanho da cidade de Curitiba) com a conquista da sua inédita estatueta dourada!


“Flow” foi dirigido por Gints Zilbalodis, jovem cineasta letão de 31 anos. O filme encantou o público cinéfilo nos quatro cantos do mundo (e, por supuesto, os jurados do badalado evento de Los Angeles) ao apresentar uma trama comovente sobre a beleza da amizade em tempos de caos climático. Contudo, o mais legal foi perceber que essa produção vestiu o uniforme de Davi e venceu os Golias da indústria do cinema internacional. E isso ocorreu justamente no setor em que o peso da tecnologia e a força dos orçamentos vultuosos são historicamente mais significativos: a animação. Ou alguém em sã consciência poderia imaginar que o longa-metragem criado de forma independente por quatro jovens do Leste da Europa e tendo como software um programa de computador convencional faturaria o Oscar de Melhor Animação, hein?!

Produção independente dirigida por Gints Zilbalodis, Flow (Straume: 2024) é a animação letã que superou Divertida Mente 2 no Oscar de 2025 e faturou o prêmio de melhor animação do ano

Diante da comoção da nossa imprensa pelo principal prêmio da história do cinema brasileiro, aposto que você ouviu/assistiu/leu pouquíssimo sobre a recente proeza do cinema da Letônia! Não se martirize. Muita gente não percebeu que, por maior que tenha sido o feito cinematográfico de “Ainda Estou Aqui” na cerimônia hollywoodiana, nada supera a façanha hercúlea de “Flow”. Na última edição do Oscar, o longa de Zilbalodis bateu nada mais, nada menos do que “Divertida Mente 2” (Inside Out 2: 2024), a animação mais assistida de todos os tempos. Dá para crer na dimensão dessa conquista?! Os cineastas europeus até então desconhecidos no cenário global colocaram no bolso os profissionais e os equipamentos de ponta da Pixar, um dos estúdios mais inovadores e criativos dos Estados Unidos. É de cair o queixo, senhoras e senhores!!!  


Em dimensão, podemos comparar a premiação de “Flow” à vitória em 2020 de “Parasita” (Gisaengchung: 2019), filme sul-coreano que subverteu a lógica da indústria norte-americana da Sétima Arte e derrubou os pesos-pesados de Hollywood para levar para casa a estatueta mais reluzente do Oscar. Algo que, convenhamos, “Ainda Estou Aqui” não alcançou, pois foi superado por “Anora” (2024) na categoria principal do evento californiano. Há também quem aponte o longa-metragem letão como uma das produções mais marcantes da história de seu gênero, tal qual “Bambi” (1942), “Toy Story” (1995), “Monstros S.A.” (Monsters, Inc: 2001), “Shrek” (2001) e o próprio título original da franquia “Divertida Mente” (Inside Out: 2015). Será que é para tanto?! É isso o que vamos descobrir no post de hoje da coluna Cinema.


Por falar nisso, a história da conquista do Oscar por “Flow” (não confundir o filme com o podcast homônimo que ficou famoso no Brasil por dar vazão a vozes ignorantes e reacionárias) é tão boa, mas tão boa (além de surpreendente), que merecia realmente uma publicação detalhada no blog. Afinal, o Bonas Histórias nasceu justamente com tal finalidade: contar as boas histórias que descobrimos nas mais diferentes manifestações artistico-culturais no Brasil e no mundo. Por isso, não me importo com o possível atraso deste texto que seus olhinhos estão percorrendo agora. Até porque, se a premiada animação já saiu de cartaz do circuito comercial de cinema, ela pode muito bem ser acessada nas plataformas de streaming. Sei que há muita gente (diferentemente de mim que nem aparelho de televisão tenho em casa) prefere ficar no sofá do lar a ir à poltrona das salonas escuras.


Assisti a “Flow” no finalzinho de fevereiro, tão logo ele estreou nas salas de cinema da América do Sul. Enquanto no Brasil a animação letã entrou em cartaz em 20 de fevereiro, na Argentina (país que moro há um ano e meio) ela chegou ao circuito comercial quatro dias mais tarde. Atualmente, o longa-metragem de Gints Zilbalodis está disponível para os assinantes brasileiros da Prime Video no canal de streaming Filmelier+. Desconheço se alguma rede de cinema verde e amarela ainda o mantenha em cartaz. Em Buenos Aires, por exemplo, sei que o Multiplex de Belgrano, a sala mais perto do meu apê e aquela que frequento com mais assiduidade, tirou esa película de la cartelera na última semana de março.


Orçado em 3,5 milhões de euros (uma pechincha em se tratando de uma animação multipremiada – além do Oscar, ganhou o Globo de Ouro em sua categoria), “Flow” foi roteirizado pela dupla letã formada por Gints Zilbalodis e Matīss Kaža. O time de produtores teve ainda o francês Ron Dyens e o belga Gregory Zalcman. Basicamente foi esse o quarteto de artistas do audiovisual que confeccionou o filme de ponta a ponta. A trilha musical e os efeitos sonoros ficaram sob as responsabilidades, respectivamente, do compositor letão Rihards Zalupe e do designer de áudio francês Gurwal Coïc-Gallas.

Criado por quatro jovens cineastas europeus em um programa de computador gratuito e de código aberto, Flow (Straume: 2024) é a animação mais premiada da última temporada cinematográfica

“Flow” começou a ser desenvolvido em 2019 e levou pouco mais de cinco anos para ser concluído. Sua equipe usou o Blender, software de produção gráfica gratuito e de código aberto, para criar todas as cenas da animação. TODAS! Ou seja, os cineastas recorreram à tecnologia que eu e você poderíamos ter usado para criar um longa-metragem. E, o mais incrível, é que o resultado ficou primoroso – o que prova que cinema de qualidade se faz com ótimas ideias, talento artístico e excelente execução e não necessariamente com equipamentos e recursos de última geração.


Apesar da utilização de meios aparentemente simples, “Flow” recebeu o aporte financeiro de órgãos do governo letão: Centro Nacional de Cinema da Letônia e Fundação Capital Estatal da Cultura da Letônia. Além disso, o filme teve o apoio do Centre National du Cinéma et de l'image Animée, ARTE France, Eurimages, RTBF e do Belgian Tax Shelter. Portanto, do ponto de vista formal, esta é uma coprodução de três nações: Letônia, França e Bélgica. Em outras palavras, poderíamos dizer que o longa-metragem teve a contribuição material, humana, logística e tecnológica do cinema francês e do cinema belga, muito mais tradicionais no cenário da Sétima Arte do Velho Continente (essa dupla de países tem vários títulos analisados aqui no blog), para catapultar o cinema letão para alturas até então inimagináveis.


A estreia oficial de “Flow” ocorreu em maio de 2024 no Festival Internacional de Cinema de Cannes, onde foi muito aplaudido. Seu lançamento no circuito comercial de cinema da Letônia se deu no final de agosto. Algumas semanas depois, ele já estava à disposição do restante do público europeu. Nos Estados Unidos e no Canadá, o filme estreou em novembro. E no restante do planeta, América Latina incluída, ele chegou às salas de cinema entre janeiro e fevereiro de 2025.


O enredo de “Flow” começa mostrando o dia a dia de um simpático e solitário gatinho preto. Ele mora em uma confortável casa abandonada no meio da floresta. Sua rotina é extremamente agradável. Sem humanos por perto e tendo a natureza selvagem à disposição, o protagonista da animação gosta de passear pela mata em busca de água e alimento. O único inconveniente é quando topa com uma ou outra matilha. Aí o mais recomendado para um pequeno e indefeso felino é fugir para longe dos sanguinolentos cachorros. É isso o que ele faz sem titubear quando se vê em perigo.


Contudo, nenhum problema é comparável ao caos ambiental que está para se instalar na floresta (e no mundo inteiro). O cotidiano idílico do gato é interrompido por uma gigantesca tragédia climática. As águas do oceano invadem de repente a floresta, em uma espécie de inundação de proporções bíblicas. Em poucos minutos, a fauna e a flora submergem e o planeta adquire novas feições. Surpreendido pela força das águas e sem entender o que está acontecendo ao redor, a personagem principal do filme procura qualquer abrigo para se salvar. Nessa hora, todos os subterfúgios para se livrar dos efeitos do aguaceiro são bem-vindos.

Roteirizado por Gints Zilbalodis e Matīss Kaža, Flow (Straume: 2024) é a belíssima animação que colocou o cinema letão em destaque no cenário mundial

Depois de contar ora com a sorte, ora com a astúcia para sobreviver à enxurrada, o gatinho preto consegue pular dentro de um pequeno barco a vela que aparece milagrosamente diante de si. Felizmente, a embarcação surge no momento exato em que o destino do protagonista do longa-metragem seria submergir no fundo do mar que tomou a antiga floresta. Tão logo pisa no veleiro, ele nota que está acompanhado. Uma capivara já está presente no barco e o aceita sem problema como novo companheiro. Diferente do gatinho, a capivara é barulhenta, dorminhoca e atabalhoada. Ao menos, ela possui grande habilidade de nadar, característica fundamental no novo cenário.      


A dupla inicia a viagem pelo barquinho no agora mundo alagado. À medida que navegam por cenários desconhecidos, eles vivenciam aventuras de tirar o fôlego. Em alguns lugares que passam, conhecem animais que precisam de ajuda. Três decidem pular no barco e integrar a cada vez mais versátil trupe de bichanos. Assim, a dupla rapidamente se transforma em um quinteto de aventureiros. Além do gatinho e da capivara, o grupo é composto por um cachorro (labrador retriever amarelo), uma ave de rapina (do tipo secretário de grande porte) e um macaquinho (lêmure). As diferenças se potencializam. O labrador é brincalhão, carinhoso e bonachão. O secretário é inteligente, corajoso e com aptidão para a liderança. E o lêmure é egoísta, acumulador de bugigangas e possessivo.


Enquanto percorre os quatro cantos do planeta molhado sem se desgrudar, o grupo precisa aprender a lidar com as diferenças de seus integrantes e somar forças para encarar as dificuldades de um planeta destruído (e, por consequência, cada vez mais perigoso). Dessa forma, nasce uma forte e bonita amizade entre as personagens. E com a construção desse relacionamento, o inusitado e carismático bando vislumbra as chances de sobrevivência no mundo pós-apocalíptico. Ainda assim, as aventuras e os riscos não vão dar colher de chá para o charmoso quinteto de animaizinhos a bordo da pequena embarcação. Será que eles vão escapar da morte?


“Flow” possui pouco menos de uma hora e meia de duração. É indiscutivelmente um filme rápido. A sensação de celeridade é ainda maior porque seu roteiro foi muito bem construído e a trama se desenrola sem grandes paradas. Por falar nisso, o primeiro elogio que preciso fazer a esta produção é para seu ritmo narrativo. Ele é impecável, ainda mais se considerarmos que estamos diante de um longa-metragem sem nenhum diálogo. Eu disse/escrevi NENHUM diálogo!!! Incrível, né?


Quando foi a última vez que você assistiu a um filme em que as personagens não emitiram uma só palavra, hein? No meu caso, foi “De Quem é o Sutiã?” (The Bra: 2018), comédia-dramática do alemão Veit Helmer. No caso de um protagonista mudo, talvez a referência mais recente seja “EO” (IO: 2022), drama psicológico do polonês Jerzy Skolimowski. Ambos os títulos são excelentes e foram comentados na coluna Cinema. Também me recordo do genial “O Artista” (The Artist: 2011), comédia romântica do francês Michel Hazanavicius que conquistou cinco estatuetas do Oscar em 2012. Não por acaso, esse é o longa-metragem mudo mais premiado do século XXI.

Flow (Straume: 2024) é a premiada animação da Letônia que aborda a bonita amizade de um grupo de cinco animais que foi afetado por uma inundação de enorme proporção

Por mais que encontremos produções sem diálogo aqui e ali, precisamos reconhecer que essa é uma característica cinematográfica ousada e perigosíssima. Se o roteiro não for muito bem construído, certamente as plateias das salas de exibição (cada vez mais impacientes e com o paladar infantilizado para o audiovisual, reflexos do deslizar frenético das telas das redes sociais) vão chiar. Não foi o caso de “Flow”. Eu gostei bastante e senti que o pessoal ao meu redor na sessão de cinema do Multiplex de Belgrano na véspera do Carnaval também o adorou. E olha que o público era bem eclético: pais com filhos pequenos, casais de namorados na casa dos 20, 30 anos, grupos de adolescentes, senhoras e senhores de cabelos bem branquinhos. É legal notar que a animação deixou há muito tempo de ser um gênero voltado apenas para a criançada e se tornou um programão de toda a família – inclusive de gente que não tem meninada à tiracolo.


Acho até que quanto mais madura e com repertório cultural for a plateia deste filme, maior a chance de ela gostar da experiência cinematográfica e da história transmitida. Vejamos o que estou dizendo. “Flow” é a releitura moderna do mito da “Arca de Noé”. A diferença é que não há uma família humana designada por Deus para colocar na embarcação um casal de cada espécie de animal do mundo, conforme relato das páginas do Velho Testamento. No filme de Gints Zilbalodis, a seleção é feita por acaso e tem um único exemplar de pouquíssimos tipos de animais. Ou seja, a temática não é religiosa nem tem como protagonista os seres humanos e as forças divinas. A luta é dos bichos selvagens pela sobrevivência frente à enorme inundação de seu habitat natural.   


Já que estamos falando dos homo sapiens (se esse post fosse escrito pela brilhante e inesquecível Sra. Rousseff, ela completaria a frase com “e das mulheres sapiens”), é bom dizer que essa espécie ruidosa, pouco inteligente, insensível e extremamente destruidora não aparece em nenhum momento do longa-metragem. Qual o motivo da ausência de seres humanos? Não sabemos, pois a produção de Zilbalodis oculta as explicações pormenorizadas. Teria a humanidade sucumbido ao caos climático ou a alguma guerra planetária que devastou as cidades mais populosas? Pode ser. Essas são linhas interpretativas que o público intuitivamente faz. A própria inundação de proporções apocalípticas não ganha uma justificativa formal. Teria sido o superaquecimento da Terra, que derreteu geleiras e fez o nível dos oceanos subir, o responsável pela destruição da fauna e da flora da floresta (e de boa parte da vida não aquática da Terra)? É possível.


Adorei a ausência de descrições detalhadas das causas dessa história. Cabe aos espectadores, cada qual com sua bagagem de conhecimento, visão de mundo, concepção ecológica e crenças (ou descrenças) religiosas, tecer seus próprios julgamentos. Por isso, tenho certeza de que quanto mais madura for a plateia, maior será o encantamento provocado por “Flow”. Um bom exemplo é a cena lá no final do filme – fique tranquilo(a) que não damos o spoiler nos posts do Bonas Histórias – envolvendo a subida do gatinho e do secretário ao cume de uma montanha. Dificilmente as crianças terão o mesmo tipo de leitura dos adultos do que aconteceu no alto da cadeia montanhosa, uma das passagens mais bonitas e simbólicas deste longa-metragem.


Além do ritmo narrativo veloz, da construção da trama sem diálogos e da pegada interpretativa do roteiro, outra questão marcante de “Flow” é a tecnologia utilizada para a estruturação de suas cenas. Se você estiver acostumado(a) às produções extremamente realistas que deixam as animações parecidas aos filmes convencionais (como se estivéssemos diante de uma filmagem e não de um desenho), saiba que o filme letão não vai por esse caminho digamos modernoso. Temos aqui uma animação-raiz. Vemos que é um desenho e, mesmo assim, ficamos maravilhados com as imagens recebidas.

Coprodução do cinema letão, do cinema francês e do cinema belga, Flow (Straume: 2024) é o filme de animação ambientado num mundo devastado pela crise climática e pelo desaparecimento dos seres humanos

Esse aspecto talvez mereça mais um ou dois parágrafos de comentários neste nosso debate. Não sou contra a tecnologia de ponta e não me oponho ao retrato cada vez mais realista das animações. É muito legal ver um desenho com cara de filmagem. O que me incomoda às vezes é que muitos títulos empregaram esses recursos de última geração e se esqueceram dos elementos básicos: histórias cativantes e experiências cinematográficas genuinamente impactantes. Quando isso ocorre, saio da sessão refletindo: gastaram uma fortuna, ficaram por anos e anos produzindo o longa-metragem e empregaram os recursos mais modernos do cinema para... para... entregarem uma trama fraca e um pacote audiovisual pouquíssimo inspirador.


Repito: não é definitivamente essa a reação que temos em “Flow”. Notamos desde as primeiras cenas que o emprego da tecnologia, que não é a mais moderna do mercado, é voltado para a história contada e se casa perfeitamente com a proposta sinestésica dos cineastas. É aquele lance: é preferível um carro mais ou menos nas mãos de um excelente piloto do que um carro de alto nível no comando de um motorista limitado. Juro que, durante o filme letão, não sentimos falta dos recursos realistas dos grandes estúdios de animação. Para ser bem sincero com quem me lê na coluna Cinema, é até mais legal acompanharmos o que artistas independentes e de enorme talento conseguem extrair dos recursos audiovisuais e de designer que eu e você poderíamos recorrer se quiséssemos produzir um longa-metragem.  


É paradoxal falar sobre isso. Apesar do aspecto de desenho e dos recursos simplórios utilizados, uma das características mais marcantes de “Flow” é a sua fotografia deslumbrante. As “tomadas de câmera” (vamos chamar assim esse recurso de olhar para as cenas) são diferenciadas. O espectador recebe os enquadramentos de maneira poética. Contempla-se a natureza sem pressa: pôr do sol e nascer do sol, o brilho das estrelas, o balançar das árvores, o caminhar da maré, o voo das aves, o bailar dos cardumes, o navegar do barquinho etc.


O olhar contemplativo não deixa o filme lento ou parado em nenhum momento – um risco natural desse expediente visual-narrativo. Pelo menos essa foi a sensação que tive. Não sei como as crianças e o público com o paladar mais infantilizado podem encarar essa temática. Não duvido que terá a galerinha muito ansiosa e com baixíssimo nível de concentração que achará o filme tedioso e/ou sonolento. Contudo, aí o problema não é da produção cinematográfica em si e sim do perfil e da faixa etária da plateia. Por mais abrangente que seja um título, não dá para agradar gregos e troianos nas salas de cinema.


Se fosse uma música, certamente “Flow” seria uma Bossa Nova contagiante e carismática que teríamos vontade de ouvir várias e várias vezes. Sua batida musical leve e delicada seria ideal para as almas mais sensíveis e refinadas. Refletindo agora sobre essa comparação inusitada que surgiu na minha mente nem um pouco comportada, lembrei de “O Barquinho” de Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli (“Dia de luz, festa de sol/E um barquinho a deslizar/No macio azul do mar”), e “O Pato” de João Gilberto (“O pato/Vinha cantando alegremente/Quém, quém/Quando um marreco sorridente pediu/Para entrar também no samba/No samba, no samba/O ganso gostou da dupla/E fez também/Quém, quém, quém/Olhou pro cisne/E disse assim: Vem, vem/Que o quarteto ficará bem/Muito bom, muito bem”).

Flow (Straume: 2024) é a animação da Letônia protagonizada por um quinteto de animais muito diferentes: um gato preto, uma capivara, um cachorro labrador retriever, uma ave de rapina do tipo secretário e um macaquinho lêmure

Para completar meu comentário sobre o olhar das cenas de “Flow”, os animais são retratados pelos reflexos na água, pelas tomadas aéreas, pelas sombras no barco ou em terra e pelo zoom em seus rostos. Acompanhamos os acontecimentos tanto pela perspectiva da altura dos olhos das personagens quanto pelo distanciamento de um possível observador externo mergulhado no mar ou posicionado no mastro do barco a vela. Uma das brincadeiras mais interessantes para quem curte cinema de qualidade é ficar imaginando onde se posicionaria a equipe imaginária de cameramen para pegar aquele determinado ângulo. Como eles filmariam várias cenas do filme (se ele não fosse uma animação, claro!) e como alcançariam alguns takes específicos?! Dá para pirar ao ver o primor de como os desenhos foram concebidos.


Já que entramos em aspectos técnicos do audiovisual, outro destaque desse longa-metragem foi a minuciosa construção sonora. Por se tratar de uma trama sem diálogo, era natural que a trilha musical e os efeitos sonoros ganhassem relevância para o espectador nas salas de cinema. Contudo, o que Rihards Zalupe, responsável pelas músicas, e principalmente Gurwal Coïc-Gallas, encarregado do design de áudio, fizeram merece aplausos efusivos. A trilha musical é gostosa e condizente com a proposta do filme. E os sons dos animais são extremamente realistas. Não por acaso, o barulho feito por cada bicho foi captado diretamente da natureza. Com exceção da capivara, que tinha um assobiar natural que não caiu bem quando colocado nas telonas e precisou ser alterado, as demais personagens ganharam versões fidedignas de seus ruídos. É ou não é incrível um trabalho desse tipo, hein?     


Em relação à narrativa propriamente dita, “Flow” fala da força e da beleza da amizade. Por mais que a história tangencie outras temáticas como crise climática, efeitos negativos dos seres humanos no planeta, tragédias naturais, vida depois da morte, poder de superação e capacidade de adaptação, o assunto principal é mesmo a importância de se criar uma rede de amigos confiável. Por mais diferentes que sejam as personalidades dos vários integrantes do grupo, o respeito mútuo e a compreensão das necessidades dos outros permitem a construção do relacionamento e a solidificação da união.


Note a importância da versatilidade dos viajantes do veleiro. Mesmo surgindo brigas e desentendimentos aqui e acolá por causa das enormes diferenças de personalidades, crenças e estilos de vida (o convívio entre os opostos causa naturalmente choques e faíscas), o quinteto de animais só consegue superar as incontáveis adversidades da aventura porque possui integrantes com características complementares (é essa justamente a grande vantagem da equipe heterogênea). Em cada dificuldade vivenciada, uma personagem distinta se apresenta como a mais apta para resolver o problema em questão. Assim, todos são igualmente importantes: gato, ave, capivara, cachorro e primata.


O entrosamento e o carinho que as cinco personagens da animação estabelecem vão além da ajuda mútua para as questões práticas da viagem e do dia a dia do barco. Quando alguém está em perigo ou se sente mal, os amigos verdadeiros são os portos seguros em que se pode confiar. Se um integrante do time está em maus lençóis, todos se sentem na obrigação de se arriscar para salvá-lo. Esse é o verdadeiro espírito de equipe que vai se formando. Até as principais decisões passam a ser compartilhadas. O sentido de união contribui para a potencialização da generosidade com aqueles que estão fora do grupo e precisam de auxílio.

Flow (Straume: 2024) foi alçado ao posto de filme mais importante do cinema letão ao ganhar o Oscar de 2025 como melhor animação

Os protagonistas de “Flow” mesclam elementos da realidade (cada animal é muito bem retratado segundo as características de sua espécie) com a humanização de seus comportamentos (cada animal adquire a consciência e a moral dos seres humanos). Essa mistura bem azeitada entre fantasia e drama realista traz, ao mesmo tempo, graça para a história (é divertidíssimo ver o jeito brincalhão do cachorro, a introspecção do gato, o lado egoísta do lêmure, o ar analítico do secretário e a preguiça da capivara) e emoção ao enredo (impossível não seremos tocados com a passionalidade de um grupo de amigos tão especial). Tudo isso embalado em uma aventura com muita ação e suspense.


Por falar em emoção, saiba que a plateia terá reações bem distintas ao longo da sessão de cinema. O filme provoca lágrimas tanto de risada quanto de tristeza. Abre e fecha nossos corações com a mesma facilidade. Também suscita sensações de mistério, medo, terror, indignação, reflexão e suspiro poético dependendo da altura da trama. Não à toa, os elogios a esta produção se espalharam pela crítica cinematográfica internacional. Confesso que não vejo como exageradas as opiniões de quem entende essa animação como uma das mais marcantes das últimas duas décadas. Juro que tento me recordar de um desenho animado que tenha me tocado da mesma forma nos últimos anos e não consigo me lembrar.


Também não me vem à mente quando foi o último desenho animado que comentei na coluna Cinema. Certamente faz seis ou sete anos desde a minha crítica anterior. Dos quase 250 títulos cinematográficos comentados nas páginas do Bonas Histórias, apenas meia dúzia é de integrantes desse gênero: "A Bailarina" (Ballerina: 2016), “Alvin e os Esquilos na Estrada” (Alvin And The Chipmunks - The Road Chip: 2015), "O Bom Dinossauro" (The Good Dinosaur: 2015), "O Pequeno Príncipe" (The Little Prince: 2015), "Shaun - O Carneiro" (Shaun the Sheep Movie: 2015) e "Divertida Mente".


Quem vê essa pequena amostragem pode até pensar que, assim como os filmes de super-heróis, desgosto das animações. Não, isso não é verdade – no caso dos longas-metragens da DC e da Marvel que não são protagonizados pela Scarlett Johansson é verdade verdadeira a suposição que os odeio! Vire e mexe, gosto de ir ao cinema para conferir as novidades produzidas pelos estúdios de animação. O mais recente que apreciei (e adorei) foi “Divertida Mente 2” no final do ano passado. A questão é que poucos desses títulos me sensibilizam ao ponto de querer escrever sobre eles no blog. Para cada preciosidade garimpada nas telas de exibição, muitas pedras de baixíssimo valor passam diante dos meus olhinhos cada vez mais míopes.


“Flow” é um típico road movie – ou road story se preferir. A dinâmica do filme é caracterizada pela viagem incessante do quinteto de amigos pelo mundo pós-apocalíptico. Num primeiro momento, a impressão pode ser que eles navegam aleatoriamente pelos mares cada vez mais volumosos do planeta. Contudo, o olhar atento para o enredo (principalmente para as cenas em que o secretário instiga o gatinho preto a visualizar uma montanha misteriosa e uma cidade cujo cume não está submerso) dão um sentido bonito e eloquente à trama. Só não explico minha interpretação para não estragar a experiência de quem ainda não assistiu ao filme. De qualquer maneira, recomendo ao público buscar uma lógica menos aleatória e banal para a amizade entre a ave e o felino e o caminhar do barco pelas águas.   


Assista, a seguir, ao trailer de “Flow” (Straume: 2024):

É claro que considerei a conquista do Oscar de Melhor Animação pelo filme de Gints Zilbalodis justa. Diria mais: foi muito justa, justíssima! Como experiência cinematográfica, o longa-metragem letão é muuuuuuuuuuito superior a “Divertida Mente 2” (Inside Out 2: 2024). O título da Pixar, vale a menção, também é excelente – conforme detalhei no post “Retrospectiva – Melhores Filmes de 2024” da coluna Recomendações. Não por acaso, “Divertida Mente 2” ficou no top 5 das mais brilhantes produções que conferi no ano passado nos cinemas. O problema é que a animação norte-americana não trouxe grandes novidades para o público. Ela é basicamente uma extensão do universo criado pelo filme original da série. Assim, “Flow” é mais impactante por promover uma overdose de novas emoções e por encantar a plateia de todas as idades com uma trama inusitada.


Por falar em Oscar, é bom dizer que achei todas as escolhas da Academia de Los Angeles sensatas. Pode parecer engraçado mencionar isso, mas ouvi muita ladainha nos últimos dois meses sendo proferida por meus compatriotas. Um dos meus melhores amigos que mora em São Paulo achou um atentado ao bom senso e à lógica o fato de Fernanda Torres ter saído da cerimônia sem a estatueta de melhor atriz. Aí perguntei: você assistiu a “Anora”? Conferiu o desempenho de Mikey Madison? Não, ele não havia visto. Ou seja, estava reclamando do resultado da premiação sem o devido embasamento. Para minha surpresa, o cara de pau ainda soltou: para falar a verdade, ainda não vi “Ainda Estou Aqui”. Ai, ai, ai. Aí fica difícil debater cinema, né? Juro que quando eu saí da sessão de “Anora”, decretei para a amiga russa que me acompanhava que o Oscar de melhor atriz de 2025 já tinha dona. Ele era de Madison. O que a jovem norte-americana fez nesse filme foi simplesmente brilhante e merecedor da estatueta dourada!


Outra amiga, dessa vez brasileiríssima, reclamou no dia seguinte ao Oscar que achou injusta a entrega do prêmio para “Flow”. Na opinião dela, uma psicóloga que estuda Medicina em Buenos Aires, “Divertida Mente 2” (e a série da menina Riley como um todo) era uma das mais brilhantes animações da história e deveria estar no primeiro lugar de sua categoria. Novamente, fiz a pergunta de um milhão de dólares: você viu “Flow”? Claaaaaaro que ela não tinha visto, né? Uma das coisas mais legais de conferir previamente os principais postulantes à maior honraria da Sétima Arte é compreender as decisões dos jurados. Acredite se quiser, mas são poucas as vezes que eles cometem injustiças!


Repito: achei válidos todos os vencedores da última edição da cerimônia californiana. Por mais que tenhamos preferências distintas, não dá para contestar as escolhas dos profissionais do cinema, gente com enorme gabarito e conhecimento! Por exemplo, eu votaria em “O Brutalista” (The Brutalist: 2024) como melhor longa-metragem da temporada passada. Porque o achei mais filme que “Anora”. Ainda assim, seria um absurdo dizer que a produção independente de Sean Baker não foi merecedora da estatueta dourada. Ela é ótima e digna sim da premiação recebida. Se “Ainda Estou Aqui” levasse o prêmio da categoria principal do Oscar (e não apenas o de Melhor Filme Internacional) diria o mesmo. Qualidade para isso a produção de Walter Sales tem de sobra. Portanto, não dá para misturarmos torcida com análise crítica. Como dizia Dona Júlia, minha avozinha falecida: uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa.  


Depois desse pequeno desabafo, informo que por hoje ficamos por aqui, pessoal. Para quem acha que seguir tratando na coluna Cinema dos Vencedores do Oscar de 2025 está virando assunto muito velho (só não escrevi demodê porque essa é uma palavra antiguíssima), aviso que virarei a página, tá? Na próxima análise cinematográfica do Bonas Histórias, prometo trazer algum título recém-saído do forno das telonas. Até porque sigo frequentando as salas de exibição e tem muita coisa boa para comentar com vocês. Não perca as novidades do blog, senhoras e senhores!  


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