Publicada em espanhol em 2020 e traduzida para o português em 2022, a ficção científica da escritora uruguaia mistura pandemia, caos ambiental e dramas familiares em um enredo extremamente premonitório.
Ler ficção científica é olhar para o futuro. Não se trata obviamente de realizar presságios ou adivinhações. Para o ótimo trabalho literário, usa-se os indicativos mais fortes da realidade para fazer suposições sobre o amanhã. Às vezes, as narrativas dos autores ficcionais chegam a ser assustadoramente certeiras. Nessa hora, pensamos boquiabertos: como eles conseguiram chegar tão próximos da verdade, hein?! É o que acontece, por exemplo, com “O Conto da Aia” (Rocco), distopia de Margaret Atwood que descreve o fundamentalismo cristão nos Estados Unidos da atualidade, “Não Verás País Nenhum” (Global), romance clássico de Ignácio de Loyola Brandão que é um alerta ecológico para o Brasil do século XXI, e “A Máquina Parou” (Iluminuras), novela de E. M. Forster que cita o desenvolvimento tecnológico que estamos visualizando recentemente. De tão reais, essas obras impressionam os leitores pelas semelhanças com nosso dia a dia e com a rotina contemporânea.
Estou falando sobre isso na coluna Livros – Crítica Literária de hoje porque no último final de semana fui positivamente impactado por um romance com tintas premonitórias. Estou me referindo a “Gosma Rosa” (Moinhos), primeiro título ficcional da escritora uruguaia Fernanda Trías a ser lançado no Brasil. O mais chocante dessa ficção científica é notar o timing impecável de sua publicação. No começo de 2020, quando o mundo vivia o confinamento provocado pela Covid-19, “Gosma Rosa” chegou às livrarias do país vizinho abordando um cenário pandêmico no qual as pessoas adoeciam, eram isoladas em hospitais e tinham a circulação restrita pelas cidades.
Para quem ficou assustado com a coincidência entre o enredo da ficção e a maior crise sanitária dos últimos 100 anos, aviso aos leitores do Bonas Histórias que Trías foi ainda mais feliz nesta produção literária. Como um bom vinho Tannat, sua obra parece melhor com a passagem do tempo. Em “Gosma Rosa”, a autora apontou como causa do pandemônio social os efeitos da crise climática do planeta e não às ações do vírus que invade o sistema imunológico humano.
Assim, o livro se torna ainda mais real para os brasileiros nesta incandescente temporada de 2024. Enquanto assistimos ao céu do nosso país ficar laranja, à lua se tornar vermelha, à chuva ficar preta e aos rios (que ainda não secaram totalmente) ganharem tonalidades inexplicáveis, sentimos na pele as temperaturas dispararem em pleno Inverno, vemos as florestas (e algumas cidades!) serem consumidas pelo fogo de incêndios incontroláveis e constatamos a mortandade da fauna e da flora nos vários biomas nacionais. Seria possível alguém ter previsto essa catástrofe há alguns anos? A romancista uruguaia conseguiu. Sua narrativa ficcional relata com fidedignidade esse mesmíssimo cenário. Incrível, né?!
Publicado em meados de 2020 no Uruguai e no começo de 2021 nos demais países de língua espanhola, “A Gosma Rosa” é o quarto romance de Fernanda Trías. Ele sucedeu a “La Azotea” de 2001, “Cuaderno para un Solo Ojo” de 2002 e “La Ciudad Invencible” de 2014, nenhum com edição em português. No portfólio ficcional da autora de 47 anos (su cumpleaños es el 12 de octubre, una fecha especial para alguien muy especial – beso Julie!!!), ainda constam as coletâneas de contos “El Regreso” de 2012 e “No soñarás flores” de 2016, também sem tradução para nosso idioma.
Nascida em 1976 em Montevideo, Trías é, além de escritora, tradutora e professora de Escrita Criativa na Universidad de los Andes. Vivendo há quase uma década em Bogotá, a capital da Colômbia, ela se consolidou como uma das principais figuras da Literatura Uruguaia Contemporânea e da Ficção Literária Sul-americana. Não é errado enxergá-la como uma mistura, do outro lado do Río de la Plata, de Selva Almada, autora de “Não é Rio” (Todavia), e Mariana Enriquez, autora de “Os Perigos de Fumar na Cama”. Pelo menos é assim que a vejo.
“Gosma Rosa”, cujo título original é “Mugre Rosa”, foi produzido com o apoio do Prêmio SEGIB-Eñe-Casa de Vélasquez e com o incentivo do Programa de Escritor em Residência da Universidad de los Andes. O texto distópico ficou pronto em dezembro de 2019, três meses antes da América do Sul sofrer com os efeitos da Covid-19. Quando a população do continente e de boa parte do mundo precisou ficar confinada dentro de casa, o livro de Fernanda Trías que relatava justamente um perrengue pandêmico já estava indo para as gráficas. Por isso, a sensação de perplexidade que muitos leitores uruguaios tiveram ao ver a própria realidade transposta para as páginas da história recém-lançada.
Este romance conquistou o Premio Sor Juana Inés de la Cruz na Feira Internacional do Livro (FIL) de Guadalajara (México) e o Premio Bartolomé Hidalgo (Uruguai). A edição brasileira teve a tradução de Ellen Maria Vasconcelos e foi publicada pela Editora Moinhos em julho de 2022, conforme apresentado no post dos lançamentos do quarto bimestre daquele ano na coluna Mercado Editorial.
Nos últimos anos, este livro ganhou versões em inglês, italiano, alemão e mais um punhado de idiomas. Atualmente, “Gosma Rosa” está à venda nas livrarias de vários países europeus, além da Espanha. Curiosamente, em Portugal, ele só está disponível no idioma original. Nenhuma editora lusitana se prontificou a adquirir os direitos autorais das obras da escritora uruguaia. Faço esse aviso antes que os leitores portugueses do Bonas Histórias reclamem da dificuldade para encontrar a inexistente edição local. Talvez o caminho mais fácil para eles seja adquirir a versão do Kindle da Editora Moinhos. Morando em Buenos Aires há mais de um ano, essa foi a alternativa que precisei recorrer.
Como uma boa distopia, o enredo de “Gosma Rosa” se passa numa data indeterminada do futuro e em um local não especificado. A trama é narrada em primeira pessoa por uma protagonista que também não tem o nome identificado. O que sabemos dela é que é uma mulher de mais ou menos 40 anos que vive em uma cidade litorânea assolada por uma pandemia. O litoral no caso é uma mescla de mar e rio – quem visitou Montevideo ou Buenos Aires entenderá essa confusão entre enxergar um mar quando se olha o horizonte quase infinito do Rio da Prata e se sentir num rio quando se adentra as águas doces da praia de cor barrenta.
O drama da narradora-personagem é fruto tanto do caos externo quanto do caos interno. A cidade em que ela vive foi colapsada por um evento ambiental catastrófico. A poluição matou os peixes e fez com que as aves desaparecessem dos céus. O problema maior foi o surgimento de nuvens tóxicas em tom vermelho sobre o mar. Quando esses ventos sopram para a zona urbana do litoral, eles trazem doenças sérias que fazem a pele das pessoas cair e podem levá-las à morte. É tanta gente adoentada que foi criado hospitais para abrigar exclusivamente as vítimas da contaminação.
Além disso, os bairros litorâneos foram abandonados por quase toda a população. Com medo das nuvens tóxicas, grande parte das pessoas se mudou para o interior. Para avisar da chegada dos ventos maléficos, foram criados protocolos. O governo controla a circulação dos cidadãos, a comunicação da mídia é supervisionada, áreas da capital do país foram evacuadas e hospitais de campanha são administrados com rigor. Ou seja, temos uma nação que é administrada quase que ditatorialmente. Esse é o cenário pós-apocalíptico que a protagonista precisa encarar.
Por não querer abandonar sua casa perto do porto, a narradora é uma das poucas moradoras que permanecem vivendo no bairro perto do rio/mar. Ela visita rotineiramente a mãe, que se mudou para uma região outrora próspera da cidade, e o ex-marido, que está internado em um dos hospitais criados para a pandemia. Após a separação, Max foi atingido por uma nuvem tóxica, perdeu a pele e agora está na ala dos doentes crônicos. A única visita que recebe é da ex-mulher. Os dois se conheceram na infância, casaram-se e, após várias brigas matrimoniais, se separaram antes que tivessem tido um filho.
Antes da pandemia, a personagem principal do livro trabalhava como editora de uma revista chamada Bem-Estar. Após o colapso climático, ela pediu demissão e agora atua como cuidadora de um menino obeso que tem uma síndrome rara. Ele sente uma fome incontrolável, capaz até de levá-lo à ingestão de lixo e de objetivos. Sem a supervisão integral de um adulto, a criança corre o perigo de se matar involuntariamente ao engolir o que não deve. Para distraí-lo da vontade de comer, a cuidadora precisa ter paciência e criatividade dia e noite. A mãe do menino, sem a menor didática para se relacionar com um filho tão diferente, preferiu contratar alguém para olhá-lo. Assim, o garoto passa longas temporadas na casa de sua cuidadora. Em troca deste trabalho, ela ganha um salário polpudo.
É essa a rotina da protagonista do romance. Nas semanas que cuida do menino, ela fica fechada em casa com ele. Quando a mãe do garoto vem pegá-lo para uma curta temporada na residência familiar, ela aproveita para visitar a mãe e o ex-marido. Cada vez que circula pela cidade é uma aventura nova. Ao mesmo tempo que precisa ficar de olhos abertos nos ventos tóxicos e deve fugir da polícia que proíbe o ir e vir, ela tem que arranjar táxi (artigo cada vez mais escasso), comprar comida (vendida apenas em estabelecimentos clandestinos) e escapar da violência urbana (o caos ambiental e o abandono da cidade fazem obviamente o crime explodir).
“Gosma Rosa” é um romance enxuto. Suas 226 páginas estão divididas em 26 capítulos. Levei aproximadamente quatro horas para concluir integralmente essa leitura no final de semana retrasado. Basicamente, fiz uma sessão vespertina de pouco mais de duas horas no sábado e uma sessão matutina de quase duas horas no domingo. Ou seja, essa é uma obra de leitura rápida que dá para se ir da capa à contracapa no mesmo dia. Quem tiver bom fôlego literário, tenha ciência que dá até para ler o mais recente romance de Fernanda Trías em uma única sentada. Contudo, creio que o melhor seja dividir a atividade em duas (como eu fiz), três ou quatro sessões.
O primeiro elemento que gostaria de comentar nesta análise da coluna Livros – Crítica Literária é a mistura de gêneros narrativos. “Gosma Rosa” mescla ficção científica, distopia, terror, romance noir, naturalismo, suspense dramático, drama pessoal, reflexões existencialistas e thriller apocalíptico. Os leitores assíduos do Bonas Histórias bem sabem que adoro obras literárias com versatilidade estilística. Por isso, aprovei o fato de a narrativa de Trías caminhar por distintas estantes ficcionais. Como prova desta pluralidade, gostaria de comentar com mais profundidade nos próximos três parágrafos o tipo de suspense da trama, o teor filosófico de algumas partes da obra e o tom naturalista do texto da escritora uruguaia.
O suspense de “Gosma Rosa” não é sobre o que está acontecendo e sim sobre o que vai acontecer. É válido destacar essa distinção pois não há qualquer preocupação por parte da autora em explicar o que levou ao caos climático. Talvez nem mesmo as autoridades e as personagens do livro saibam exatamente o que está se passando com o planeta (qualquer semelhança com a nossa realidade não é mera coincidência). Portanto, uma vez colocado o cenário pandêmico, a protagonista da ficção precisa se virar como pode. Aí está a tensão dramática da história. Por mais que a personagem principal viva olhando para o passado, é a indefinição de seu futuro o que atiça a curiosidade dos leitores do livro. Achei esse efeito narrativo espetacular.
Todo início de capítulo tem um diálogo ou mensagem filosófica. O tom existencialista do texto é ora divertido, ora dramático. Para entender essa parte tragicômica do romance, é legal enxergar tais inserções como uma seção única (apesar de virem fragmentadas ao longo dos capítulos) e conectadas à trama principal da obra (quem seria o casal que vive discutindo, hein?). Certamente essas são questões que vão suscitar a curiosidade dos leitores mais exigentes. Juro que esse pedaço da ficção de Fernanda Trías me lembrou o conto “Colinas como Elefantes Brancos” de Ernest Hemingway, que li no primeiro semestre do curso da Pós-Graduação de Formação de Escritores do Instituto Vera Cruz.
Para completar o apanhado estilístico do livro (conceito que, segundo a Teoria Literária, também pode ser chamado de tipologia narrativa), é nítido o tom naturalista do texto da escritora uruguaia. “Gosma Rosa” é quase uma obra neonaturalista por excelência. Suas páginas mostram a condição animalesca dos seres humanos e relatam as patologias das personagens ficcionais nas esferas biológicas, psicológicas e sociais. Exatamente por isso, talvez esta narrativa possa incomodar um pouco as almas mais sensíveis. Eu aprovei esse efeito no texto, pois a história se tornou mais potente, colorida e ácida.
É impossível falar de “Gosma Rosa” e não comentar a sua atmosfera sombria. Não por acaso, esse é o elemento narrativo que salta aos olhos do público leitor desde as primeiras páginas. O clima de terror é construído com névoas tóxicas, decadência ambiental, colapso social, sujeira, tristeza, solidão, bairros e cidades abandonadas, poluição, violência, zonas de exclusão, contaminação da água, do solo e do ar, restrição de circulação da população, governo opressor, comida artificial, famílias arruinadas, êxodo em massa, territórios do país abandonados, desaparecimento misterioso de animais, surgimento de doenças etc.
Como já disse, a narração é em primeira pessoa. Ao contar a história, a protagonista mistura os diferentes acontecimentos do espaço temporal. Assim, presente e passado nos chegam embaralhados no texto. Não há, portanto, uma linha cronológica pré-estabelecida ou sequencial. Além disso, há a inserção de sonhos e de divagações da mente da personagem principal. Mesmo com esse pot-pourri narrativo, vale a pena dizer que o texto de Fernanda Trías é extremamente claro e convidativo. Dificilmente alguém ficará confuso por muito tempo ao acompanhar o relato da narradora-protagonista.
Já que falei um pouco do espaço temporal, deixe-me contar sobre o espaço narrativo. Não por acaso, essa é uma das boas surpresas de “Gosma Rosa”. A cidade onde se passa a maior parte da ação é descrita como um local litorâneo. Contudo, muitas vezes há a citação de um rio ao invés de um mar. Então seria um município à beira-rio e não uma localidade à beira-mar? Sim e não. A explicação é que muito provavelmente a inspiração de cenário para o romance de Trías tenha sido Montevideo, sua cidade natal. É impossível não olharmos para a dimensão do Rio da Prata e não se sentir diante do mar. Portanto, não há equívoco nem confusão por parte da autora. A mistura de sensações é totalmente natural e fidedigna para os moradores às margens do rio com cara de mar.
Diante do caos pandêmico e da destruição do ambiente natural, a personagem principal do romance segue com suas aflições de caráter pessoal. Também adorei isso! A protagonista vai se acostumando com a deterioração da cidade, do país e do meio-ambiente. O que ela não consegue superar são as aflições íntimas: o casamento arruinado (o ex-marido ainda assim exige atenção e cuidados, principalmente agora que está hospitalizado), a péssima relação com a mãe desde a infância, as lembranças amargas do passado, o sonho (ou a desculpa) de acumular dinheiro e o apego à criança que cuida.
É legal o leitor notar as enormes contradições da figura central de “Gosma Rosa”. Ao mesmo tempo que diz o tempo inteiro que quer deixar o país e ir viver no Brasil – curiosamente uma vontade que constatamos em várias personagens da ficção argentina e uruguaia, como em “A Uruguaia” (Todavia), a divertida novela de Pedro Mairal –, ela não consegue largar sequer o bairro natal nem a rotina enfadonha, por piores que sejam no dia a dia. Andei notando que o Brasil permeia o imaginário rioplatense como um local quente, agradável, próspero, amigável e bom para se viver. Não é raro encontrarmos pessoas reais por essas bandas que sonham imigrar para nosso país (mesmo com o brasileiro que deixou São Paulo há pouco insistindo que essa não é a melhor ideia do mundo...). Esse talvez seja um traço cultural recente tanto dos habitantes da capital uruguaia quanto da capital argentina.
Outra questão marcante da personagem principal do livro de Fernanda Trías é a maternidade. Em “Gosma Rosa”, as figuras maternas permeiam todas as facetas do enredo. A protagonista tem uma péssima relação com a mãe desde pequena. Ela chega a considerar Delfa, a empregada doméstica e babá da infância, como sua segunda mãe – o que só prova o quanto a mãe biológica foi sempre ausente. De certa maneira, Delfa é a versão literária e uruguaia de Val (interpretação magistral de Regina Casé), a figura central do filme “Que Horas Ela Volta?” (2015). Para completar, a narradora chega aos 40 anos sem ter gerado filho. Não é por acaso o seu apego à criança com problemas psicológicos que tem que supervisionar. Ela não é apenas a cuidadora do menino gordo como se torna quase uma mãe postiça dele (portanto, assume o papel que um dia fora de Delfa).
Além das incongruências da maternidade, acompanhamos uma protagonista extremamente solitária e angustiada. Por mais paradoxal que possa parecer, a maior tempestade acontece na cabeça e na alma da personagem central de “Gosma Rosa” e não no ambiente externo. É como se as pessoas do romance se acostumassem com os efeitos negativos do clima e da natureza, mas jamais conseguem superar as complicações emotivas e as frustrações pessoais.
A realidade ficcional também merece destaque nesta análise do Bonas Histórias. No universo criado por Fernanda Trías, temos: autoritarismo (em períodos de crise, os governantes não resistem as tentações e se tornam déspotas), negacionismo climático e médico (diante do cenário de caos, tapar os olhos ou enfiar a cabeça no primeiro buraco do chão parece ser uma atitude irresistível de muitas pessoas) e propagação de fake news (os taxistas da trama têm uma forte pegada bolsonarista).
“Gosma Rosa” também faz críticas sagazes à sociedade contemporânea. Em sua trama, Trías aborda: a obesidade, o descaso ambiental, as famílias desestruturadas, os casamentos efêmeros, a desconexão social, a aridez dos vários tipos de relacionamentos, a maternidade artificial, a solidão permanente, a força das companhias capitalistas, os alimentos industrializados etc. Boa parte desses elementos foi inserida de maneira sutil e inteligente no meio da narrativa. Assim, não temos nada muito panfletário nem acintoso.
A gosma rosa que foi parar no título do livro é um alimento industrial e artificial criado como substituto à carne in natura (uma heresia à cultura carnívora da Argentina e do Uruguai). Ele aproveita todas as partes do animal abatido e tem o aspecto e o sabor parecido a um chiclete de morango que foi muito mastigado. Obviamente, o nome do produto não é gosma rosa, mas ele é ironicamente chamado assim pela personagem principal da obra ficcional. Também é possível fazer o paralelo da cor e da textura do alimento industrial com a nuvem rosa e tóxica que vire e mexe invade a cidade causando doenças sérias.
Foram poucos os elementos da narrativa de “Gosma Rosa” que não gostei. Um deles foi a mistura dos discursos: o direto e o indireto com o indireto livre. Essa última variação do diálogo ficcional me pareceu esquisita no meio das duas mais comuns. Confesso que não gostei e a achei desnecessária. Dava muito bem para ter transformado o discurso indireto livre em discurso direto ou em discurso indireto simples.
Entretanto, o que mais me incomodou foi a sensação de déjà vu. Sabe quando você percorre um romance e fica com a impressão de já ter lido algo parecido outras vezes? Pois foi exatamente o que senti durante a leitura de “Gosma Rosa”. Para mim, esse livro de Trías é uma mistura de “Não Verás País Nenhum” (pela denúncia ambiental), “Caixa de Pássaros” (Intrínseca), terror de Josh Malerman (pela indefinição do que causou o cenário apocalíptico), “Fahrenheit 451” (Biblioteca Azul), ficção científica clássica de Ray Bradbury (pelo ambiente autoritário e pelo final ao mesmo tempo esperançoso e aberto) e “Sob a Redoma” (Suma das Letras), um dos melhores livros de Stephen King (pelo reflexo social do pandemônio climático). Ou seja, apesar de muito bem escrito e das ótimas sacadas narrativas, ainda assim é uma obra pouco original.
Mesmo com tais senões, é bom que se diga que “Gosma Rosa” é um título ficcional muito acima da média. Passada a pandemia da Covid-19, o que torna as páginas deste romance tão marcantes é o retrato ácido, soturno e realista da derrocada climática. Talvez não haja época mais propícia do que a atual para mergulharmos no drama mais premonitório de Fernanda Trías. Os brasileiros que estão padecendo do colapso ambiental ficarão certamente chocados em assistir o quão rapidamente a ficção apocalíptica se aproximou de sua realidade.
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