Publicada 34 anos depois de sua concepção, a obra da escritora paulistana dialoga com a metalinguagem literária e o caos narrativo.
Nesse final de semana, li uma obra extremamente diferente e instigante. “Livro” (Feminas) é a prosa poética de Lúcia Leal Ferreira, tradutora e escritora paulistana nascida em 1961 e que só recentemente teve sua produção ficcional (re)valorizada. “Livro” (sim, o nome do livro é “Livro” mesmo!) brinca o tempo inteiro com a metalinguagem literária (daí seu título) e o caos narrativo (o que inclui um projeto gráfico disruptivo, a ponto de não termos, por exemplo, o nome da autora na capa). O resultado é uma experiência de leitura rica e desafiadora, digna das pequenas preciosidades que só descobrimos no trabalho de garimpo das pequenas e zelosas editoras nacionais. É preciso dizer também que essa publicação possui uma proposta editorial contemporânea e muito original, que flerta com o nonsense e o surrealismo.
Ganhei de aniversário “Livro” no comecinho do mês passado. O presente me foi dado por Paulo Sousa (valeu, Paulinho!), autor do romance “A Peste das Batatas” (Pomelo) e da coluna Miliádios Literários. Nas palavras de Paulo, eu precisava conhecer um título inusitado e interessante de sua tia. Lúcia, como soube naquele momento, é casada há dez anos com o tio do colunista do Bonas Histórias. Para ser sincero, achei inicialmente que os elogios fossem coisa de sobrinho carinhoso e dedicado e que visava a divulgação do trabalho de um ente da família. Contudo, bastou abrir o livro para entender que Paulo Sousa tinha razão. Essa obra de Lúcia Leal Ferreira é encantadora e possui características de dar água na boca nos leitores com um paladar literário mais requintado.
Publicado em março desse ano, “Livro” foi desenvolvido em 1987, quando Lúcia, aos 25 anos, cursava faculdade de Letras na Universidade de São Paulo (USP). Naquela época, a obra ganhou algumas edições caseiras feitas pela própria autora e foi distribuída aos amigos e familiares que ficaram maravilhados com a iniciativa da jovem autora e com a proposta do livro. Somente agora, 34 anos mais tarde, uma editora comercial resolveu lançá-lo. A (re)descoberta (e consequente publicação) do “Livro” é uma iniciativa de Sandra Regina de Souza, editora e proprietária da Editora Feminas, empresa de autopublicação voltada para a promoção dos trabalhos de artistas do sexo feminino. Foi com Celinas, o selo direcionado às autoras estreantes em carreira solo, que a Feminas lançou esse título.
“Livro” é o primeiro livro de Lúcia Leal Ferreira, mas não é o único. Há cerca de 17 anos, a escritora paulistana também lançou “Presente”, uma narrativa infantil. Assim como está acontecendo com sua obra de estreia, Lúcia terá “Presente” (re)publicado comercialmente no ano que vem. Dessa maneira, podemos dizer que somente agora o público brasileiro está tendo a oportunidade de conhecer os textos dessa autora. Seu portfólio literário, por enquanto, é original das décadas de 1980 e 1990. Porém, não duvido que, com a repercussão positiva desses (re)lançamentos, Lúcia Leal Ferreira resolva produzir textos novos ou decida republicar aquilo que tem guardado há tanto tempo em suas gavetas.
Para quem ficou curioso para saber como “Livro”, uma narrativa deliciosa e desafiadora, ficou tanto tempo esquecido, Lúcia atribuiu o seu distanciamento do mercado editorial a certo trauma adquirido no processo de publicação desta obra quando era estudante da USP. Além disso, ela afirma nunca ter se sentido à vontade no meio literário, principalmente no passado (leia-se, anos 1980 e anos 1990). Apenas recentemente, mais madura e confiante no papel de autora, Lúcia conseguiu encarar outra vez e numa boa os contatos com as editoras e os processos de editoração. Ainda bem!
Curiosamente, a nova versão de “Livro” não é exatamente idêntica àquela de 1987. A parte textual é até muito parecida (somente um ou outro texto foram alterados). A grande mudança está na parte estética, que, queiramos ou não, influencia decisivamente na experiência de leitura. O projeto gráfico e a capa foram desenvolvidos por Guilherme Wanke, designer natural de Jundiaí e que mora há anos na cidade de São Paulo. Apesar do acabamento mais simples, “Livro” tem um visual caótico e original. Antes que você se assuste, saiba que o projeto gráfico acompanha a pegada anárquica e metalinguística do texto de Lúcia. Nesse sentido, ele é perfeito e contribui consideravelmente para a experiência de leitura e a intertextualidade literária atingir níveis elevados.
“Livro” possui 80 páginas e reúne 13 textos: (1) “Orelha de Pessoas”, (2) “Contra a Capa”, (3) “Páginas e Páginas de Rosto”, (4) “30 Maneiras de Enfrentar um Dia de Cão”, (5) “Folha do Guarda”, (6) “Capítulo Anterior”, (7) “Capítulo Seguinte”, (8) “Próximo Capítulo”, (9) “Capítulo-Quarto”, (10) “G no Ar”, (11) “Era Uma Vez um Pássaro Ferido...”, (12) “Essa é a Minha Metafísica” e (13) “Melhor Esperar Um Pouco”. Esse último texto é uma espécie de prefácio epistolar (intitulado no “Livro” de carta de referência) elaborado pela escritora Penélope Martins e guardado encantadoramente em um bolso na terceira capa.
Dá para ler esta obra em menos de uma hora (e em uma única sentada). Esse foi mais ou menos o tempo que levei para percorrer integralmente seu conteúdo no último sábado. Comecei a leitura às 15 horas e antes das 16 horas já tinha encerrado. Entretanto, confesso que não fiquei em uma só leitura. Terminada a publicação, senti a necessidade de relê-la. E fiz isso imediatamente.
O elemento que salta aos olhos logo de cara em “Livro” é a metalinguagem. Não faltam aspectos metalinguísticos nesta obra de Lúcia Leal Ferreira. Já na capa temos um título inusitado – um suprassumo desse recurso dialógico. O próprio projeto gráfico dela, totalmente clean e minimalista, potencializa esse efeito. Contudo, a metalinguagem não para por aí e se estende por todas as partes da publicação. Veja o início do texto da quarta-capa, uma das melhores e mais poéticas apresentações que já li:
“Este Livro não foi bem escrito por mim. Não sou mais a moça de 25 anos que o concebeu, em 1987. Se calhar, sou a mãe dela. De lá para cá, nós três (somos próximos) vagamos de cá pra lá, mudamos de lá, voltamos pra cá, um mandando o outro calar a boca, um outro passando a mão na cabeça do um, um mesmo pondo a mãe no meio (...)”.
Incrível, né?! Ainda mais se compreendermos a história por trás do lançamento do “Livro”. E as brincadeiras metalinguísticas prosseguem. A orelha dessa obra é um poema intitulado “Orelha de Pessoas”. O que seria a contracapa é um texto chamado “Contra a Capa”. Os capítulos centrais da narrativa de Lúcia são, nessa ordem, “Capítulo Anterior”, “Capítulo Seguinte”, “Próximo Capítulo” e “Capítulo-Quarto”. E seguindo essa paródia, a folha de rosto é “Páginas e Páginas de Rosto” e a folha de guarda é “Folha do Guarda”.
Note que dentro do “Livro” temos um outro livro, também chamado “Livro”, com direito a capa, título, subtítulo, capítulos e encerramento próprios. De maneira perspicaz, o projeto gráfico da publicação valoriza essa segregação entre as duas partes (“Livro” versus “Livro do livro”). Como isso é possível?! O designer encarregado dessa obra de Lúcia não inseriu nenhum elemento visual (ilustrações) dentro do “Livro do livro” (as ilustrações são exclusividades do “Livro”) e empregou tipologia, diagramação e espaçamento distintos para cada parte (o que dá uma sensação de anarquia visual em um primeiro momento, principalmente se você não compreender que são dois livros - “Livro” e “Livro do livro”). Papo meio louco, né?!
Só por essas maluquices, “Livro” já valeria a leitura. Entretanto, esta obra vai além da simples metalinguagem ficcional. Lúcia Leal Ferreira acrescenta doses generosas de intertextualidade literária à sua narrativa. A principal delas é a citação indireta (ou seria direta mesmo?!) a “Alice no País das Maravilhas” (Cosac Naify), o título mais famoso de Lewis Carroll. A autora paulistana faz isso ao usar e abusar das ilustrações originais do clássico inglês. Confesso que em um primeiro momento não gostei dessa apropriação dos desenhos de “Alice no País das Maravilhas”. Somente quando cheguei ao final de “Livro”, entendi (e adorei) a referência. Realmente, nos sentimos durante esta leitura como Alice de Carroll, uma criança perdida em um mundo mágico, a procura de um caminho racional e ansiando por uma lógica/sentido para o que vivencia. Certamente, Lúcia Leal Ferreira não conseguiria provocar esse tipo de efeito nos leitores se usasse outra espécie de ilustração (por mais original e exclusiva que fosse).
Repare também que “Livro” dialoga tanto com a década de 1980, época de sua concepção, quanto com nossos dias atuais. De certa forma, essa constatação não seria uma mera coincidência – a cada semana, tenho certeza de que o nosso país hoje é um espelho mais brutal e injusto daquele que tínhamos há quatro décadas. “Livro” apenas escancara essa aproximação de realidades. Note, por exemplo, nas inúmeras semelhanças dessa publicação de Lúcia Leal Ferreira com algumas obras do final dos anos 1970, como “Zero” (Global), o romance mais radical e caótico de Ignácio de Loyola Brandão, “Se Um Viajante Numa Noite de Inverno" (Planeta DeAgostini), o livro mais metalinguístico e amalucado de Italo Calvino, e “Instrução Para Subir Uma Escada”, o conto clássico de Julio Cortázar presente em “Histórias de Cronópios e Famas” (BestBolso).
Então, “Livro” seria um título datado, certo? Nananinanão! Ele também se parece com publicações contemporâneas como “Outros Jeitos de Usar a Boca” (Planeta), a prosa poética de Rupi Kaur, “A Vida Nova” (Editorial Presença), romance de Orhan Pamuk, e “Passatempoemas – Desafios Verbo-lógico-matemáticos” (Quelônio), a coletânea poética de Carolina Zuppo Abed. Esse talvez seja o principal mérito de Lúcia. Seu texto consegue brincar com a metalinguagem do fazer literário de uma maneira que não soa antigo e que, ainda por cima, remete à anarquia típica da linguagem da Internet e das redes sociais.
Outro aspecto muito legal de “Livro” é o bom humor. Ele é leve, inteligente e sutil. Curiosamente, o humor de Lúcia Leal Ferreira é muito parecido ao do sobrinho, Paulo Sousa. Os dois escritores conseguem extrair graça de pequenas coisas do cotidiano de um jeito espontâneo, sagaz e poético. Ninguém tira da minha cabeça que essa é uma habilidade inata da família, algo que passa de geração para geração!
Outro elemento elogiável é a pluralidade textual de “Livro”. É até difícil de classificá-lo. Afinal, esse título seria, o que exatamente?! Ele é um romance fragmentado, uma coletânea de crônicas e contos metalinguísticos, uma prosa poética sobre o fazer literário, uma mistura de narrativas e poemas envolvendo a literatura, uma obra ilustrada de universos paralelos ou um pot-pourri multiautoral? Admito que não sei definir precisamente – talvez seja tudo isso junto.
O que pode ser afirmado de concreto sobre “Livro” é que ele possui uma grande fragmentação textual. Essa obra tem vários tipos de narrativa em prosa (crônica extraída de uma revista feminina da década de 1980, tradução de um pedaço do romance de Dashiell Hammett e contos de Lúcia Leal Ferreira), alguns poemas ou micropoemas (da própria escritora paulistana) e ilustrações de John Trenniel. É uma mistureba danada, hein? Se você gosta de livros desconcertantes, “Livro” é uma ótima pedida.
O que mais gostei dessa obra é que, acredite se quiser, ao final da leitura seu texto faz todo o sentido. Sim! “Livro” possui uma lógica interna que chega para os leitores apenas em seu desfecho. É como se ao chegarmos à sua última página, o livro provocasse um clique em nossas cabeças. E, paradoxalmente, a parte que liga todas as demais é um texto aparentemente banal e de outro autor – o trecho de “O Falcão Maltês” (L&PM Editores), de Dashiell Hammett, traduzido aqui pela própria Lúcia do original em inglês. Fiquei estarrecido (no bom sentido, tá?) quando o clique se deu na minha mente. Aí você terá vontade de recomeçar a leitura, agora com outros olhos. Foi o que fiz. Sempre que fico atraído para ler mais de uma vez um livro, é porque ele é ótimo e polissêmico, além de ter propiciado uma experiência literária muito agradável. Adoro ser confrontado e questionado diretamente por um texto desafiador e que valoriza minha inteligência.
Se você aprecia propostas ousadas e diferenciadas, vai por mim, você gostará de “Livro”. Lúcia Leal Ferreira é uma escritora de muito potencial e com uma narrativa riquíssima. É incrível saber que esse título ficou mais de três décadas esquecido aguardando uma (re)publicação. Quantos livros assim devem existir por aí, nas casas de artistas renegados ou nas gavetas de editores pouco atentos, hein?! Pensar nisso é de assustar!
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