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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 42 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

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Livros: 62 Modelo para Armar - O terceiro romance de Julio Cortázar

Publicada em 1968, essa narrativa longa do escritor argentino nasceu de um capítulo de O Jogo da Amarelinha.

62 Modelo para Armar é o livro de Julio Cortázar que foi publicado em 1968

Julio Cortázar ficou mundialmente conhecido pela sua produção de contos. Contudo, o escritor argentino também concebeu romances. Curiosamente, seu livro mais famoso não é uma coletânea de narrativas curtas e sim uma narrativa longa“O Jogo da Amarelinha” (Companhia das Letras), obra-prima da literatura argentina e da ficção em língua espanhola. Esse título é, inclusive, considerado por muita gente como um dos mais importantes do século XX. O que poucas pessoas sabem é que “O Jogo da Amarelinha” acabou gerando uma extensão.


A partir de trechos aparentemente despretensiosos de seu livro mais celebrado, Cortázar desenvolveu “62 Modelo para Armar” (Civilização Brasileira). E é justamente essa obra, o terceiro romance do autor, que vamos analisar hoje no Bonas Histórias. Para quem está acompanhando o Desafio Literário de Julio Cortázar, informo que “62 Modelo para Armar” é o oitavo e último título do argentino que discutimos nesse bimestre.


É importante dizer que Julio Cortázar publicou em vida quatro romances: “Os Prêmios” (Civilização Brasileira) em 1960, “O Jogo da Amarelinha” em 1963, “62 Modelo para Armar” em 1968 e “Livro de Manuel” (Nova Fronteira) em 1973. Após sua morte em fevereiro de 1984, foram editadas mais duas narrativas longas: “Divertimento” (Civilização Brasileira), escrito em 1949 e publicado em 1986, e “O Exame Final” (Civilização Brasileira), produzido em 1950 e lançado nas livrarias argentinas em 1986. Ou seja, Cortázar tem em seu portfólio literário seis romances (e onze coletâneas de contos e microcontos, além de incontáveis ensaios, três antologias poéticas, quatro peças teatrais e muitas, muitas traduções).


Publicado em 1968, “62 Modelo para Armar” foi lançado dois anos depois do excelente “Todos os Fogos o Fogo” (Best Seller), a melhor coletânea de contos de Julio Cortázar, e cinco anos após “O Jogo da Amarelinha”, best-seller quase que instantâneo que alçou o nome do argentino para a primeira prateleira dos autores contemporâneos. Essa contextualização é importante para entendermos muitas das características narrativas de “62 Modelo para Armar”. Vivendo o auge artístico e um raro período de reconhecimento público (após três décadas de certa obscuridade como escritor comercial), Cortázar resolveu intensificar nesse romance as experimentações literárias iniciadas em 1962 com “Histórias de Cronópios e de Famas” (Best Seller) e estendidas depois em “O Jogo da Amarelinha” e “Todos os Fogos o Fogo”.

Julio Cortázar, escritor argentino.

O resultado é um tanto polêmico. Há quem veja “62 Modelo para Armar” (e “O Jogo da Amarelinha”) como um exemplo concreto da genialidade de Julio Cortázar, capaz de desconstruir boa parte das estruturas narrativas que molda até hoje as bases da ficção literária. Para outras pessoas, esse livro (a décima publicação autoral do escritor) não passa de mais um experimentalismo de Cortázar, que sempre gostou de chocar os leitores e a crítica literária com textos caóticos, herméticos e amalucados.


Confesso que fiquei inclinado a concordar mais com o segundo grupo. Até hoje, admito um tanto envergonhado: não consigo enxergar nem mesmo “O Jogo da Amarelinha” como uma obra tão espetacular assim – o que direi, então, de “62 Modelo para Armar”, hein!? Não atirem pedras, por favor! Na minha humilde visão, Julio Cortázar tem livros muito melhores do que esses. Posso citar “Os Prêmios” (exemplar dos romances) e “Todos os Fogos o Fogo” (para incluir as produções de contos). Esses títulos são sim verdadeiramente espetaculares. Ao mesmo tempo em que possuem narrativas ousadas e diferentes, eles têm textos palatáveis e com significados claros. Essas últimas características (textos palatáveis e com significados claros), infelizmente, não podem ser ditas de “O Jogo da Amarelinha” nem de “62 Modelo para Armar”. Em meio às maluquices narrativas propostas por Cortázar, ambas as produções perdem força e sentido (gerando mais confusão do que admiração).


Como adiantei, “62 Modelo para Armar” nasceu basicamente de um capítulo do romance “O Jogo da Amarelinha”. Qual capítulo seria esse?! Como o próprio nome do novo livro indica, o capítulo referencial é o 62. Nesse trecho do best-seller de Julio Cortázar, Morelli, personagem ficcional que é um escritor admirado por Horacio Oliveira (o protagonista) e por seus amigos intelectuais (integrantes de um grupo chamado de Clube da Serpente), faz reflexões existencialistas. A ideia de Morelli era canalizar suas concepções filosóficas em um livro que apresentasse, através de uma trama ficcional, as condutas sociais. Essas condutas representariam a teoria química do pensamento formulada por um psicólogo sueco. Assim, seria possível explicar a existência de um tipo de interação natural que age como uma bola de bilhar em meio à sociedade humana. A partir dessa dinâmica, os indivíduos padeceriam sem saber os motivos. Seus sofrimentos pessoais e seus dramas sentimentais só seriam mais tarde compreendidos e esclarecidos.


Apesar do conceito de Modelo para Armar ser apresentado com mais detalhes no capítulo 62 do “O Jogo da Amarelinha”, é importante destacar que as primeiras referências a Morelli, à sua concepção existencialista e à ideia de um livro que abordasse tais questões surgem bem no começo da obra-prima de Julio Cortázar. Já no capítulo 4 de “O Jogo da Amarelinha”, temos uma clara menção ao tal Modelo para Armar. Nesse trecho inicial do romance, assistimos aos primeiros encontros de Lucía (chamada carinhosamente de Maga) e Horacio Oliveira. Nesse momento da trama, Maga fala ao novo namorado sobre as amigas de Montevidéu e conta sobre a existência de um filho pequeno, Carlos Francisco (chamado de Rocamadour). Por sua vez, Oliveira apresenta a moça para os amigos do Clube da Serpente.

Livro 62 Modelo para Armar de Julio Cortázar

Em uma das primeiras visitas de Maga ao clube de intelectuais do namorado, o grupo fala da literatura de Morelli, um autor que todos admiram. Em seu livro mais ambicioso, Morelli desejava construir uma trama que fosse uma bola de cristal onde o microcosmo e o macrocosmo se unissem em uma visão aniquiladora. Ao ver que Maga não estava entendendo muita coisa do que eles explanavam, Etienne, um dos melhores amigos de Horacio Oliveira, diz para a moça: “Impossível explicar (o que seria o livro de Morelli). Isso é um jogo de armar, o Meccano número 7, e você mal chegou ao 2”.


De certa forma, “62 Modelo para Armar” é o livro que Cortázar disse que sua personagem iria escrever. Em se tratando de metalinguagem literária e da construção de um universo ficcional mais amplo e interativo, essa proposta editorial é maravilhosa. Se você analisar à fundo o novo romance de Julio Cortázar irá perceber que seu enredo faz jus às promessas de Morelli. O problema, no caso, é que Morelli é um intelectual excêntrico e muito chegado às divagações filosóficas. Em outras palavras, “62 Modelo para Armar” acaba refletindo essas características (para desespero da maioria dos leitores!).


É legal dizer que “62 Modelo para Armar” foi publicado originalmente na Argentina pela Editorial Sudamericana, editora em que Cortázar trabalhava como autor ficcional e tradutor. Após o sucesso estrondoso de “O Jogo da Amarelinha”, que se transformou em pouquíssimo tempo em uma obra aclamada pela crítica e pelos leitores nacionais e internacionais, os editores da Sudamericana não seriam loucos de recusar um novo lançamento de Julio Cortázar. Eles já tinham feito algo desse tipo com “Histórias de Cronópios e de Famas” seis anos antes. Essa coletânea de contos (na verdade, coleção de microcontos) acabou saindo pela Editorial Minotauro, então uma pequena e jovem editora de Buenos Aires. Nesse período, vale a explicação, Cortázar era um escritor de pouquíssima vendagem.


Agora o panorama tinha mudado completamente. Por pior que fossem os novos textos do autor e por mais amalucadas que fossem suas novas narrativas, Cortázar era, depois de “O Jogo da Amarelinha” um artista admirado pelos críticos e muitíssimo requisitado pelo público. A partir da segunda metade dos anos 1960, Julio viveu o que chamo de “Efeito Jack Kerouac” – qualquer texto que fizesse ou fosse descoberto em suas gavetas seria lançado com estardalhaço independentemente da qualidade. Obviamente, o que chamo de “Efeito Jack Kerouac” tem relação com a trajetória de Jack Kerouac após o sucesso de “On The Road – Pé na Estrada” (L&PM Editores). Se pensarmos bem, “O Jogo da Amarelinha” é talvez uma obra tão supervalorizada quanto “On The Road – Pé na Estrada”, se bem que Julio Cortázar foi um escritor cem vezes melhor do que Jack Kerouac.

Livro 62 Modelo para Armar de Julio Cortázar

No Brasil, “62 Modelo para Armar” é publicado em português desde o início da década de 1970 pela Civilização Brasileira, então uma editora independente, hoje um selo da Editora Record. A profissional responsável pela adaptação do texto de Cortázar para nosso idioma foi Gloria Rodríguez, uma das principais tradutoras nacionais da literatura espanhola e do portfólio de Julio Cortázar. Das obras do argentino, Rodríguez traduziu, além de “62 Modelo para Armar”, “Os Prêmios”, “Histórias de Cronópios e de Famas” e “Todos os Fogos o Fogo”.


O enredo de “62 Modelo para Armar” começa em Paris em uma véspera de Natal. Na noite de 24 de dezembro, Juan, um tradutor argentino que vive na França há algum tempo, vai sozinho ao restaurante Polidor. Logo depois de fazer o pedido, de abrir um livro de Michel Butor recém-adquirido e de beber os primeiros goles de um Sylvaner, ele ouve um cliente gordo em uma mesa próxima pedir um Castelo Sangrento. A coincidência entre o nome do prato do menu e as lembranças da condessa leva Juan a um intenso processo reflexivo.


A partir daí a história do romance se divide em três. Cada parte da trama é ambientada em uma cidade europeia e enfoca um grupo de amigos de Juan, além do próprio protagonista. Juan está agora em Viena. Ele viajou à trabalho – atua como intérprete e tradutor em uma organização supranacional. Para não ficar sozinho na capital austríaca, ele levou Tell, sua amante dinamarquesa. A moça o acompanha na maioria das viagens internacionais. Contudo, Tell não demonstra amar verdadeiramente Juan. Por sua vez, Juan é apaixonado por Hélène, uma jovem francesa que trabalha como anestesista e que parece não dar muita bola para ele. Para passar as horas em Viena de um jeito diferente, Juan e Tell brincam de espiões. Eles seguem os passos de Frau Marta, uma senhora austríaca que está hospedada em um hotel no centro da cidade. Para inquietação e curiosidade do casal que veio da França, Frau Marta tem, às vezes, a companhia de uma jovem turista inglesa.


Quem é apaixonada por Juan é Nicole. Nicole trabalha como ilustradora e namora Marrast, um conceituado escultor francês. O casal está passando uma temporada em Londres ao lado da inseparável dupla de amigos argentinos Calac e Polanca. Enquanto Nicole pinta gnomos, Marrast organiza a compra de pedras de oleado para uma escultura que foi encomendada por uma prefeitura francesa. Contudo, a atenção de Marrast parece recair mesmo para um quadro que ele viu no Courtauld Institute. A pintura o deixou perturbado. Nem mesmo o amor platônico de Nicole por Juan e as obrigações profissionais (ele nem sequer começou a fazer a escultara encomendada) consegue tirar Marrast do sério como o quadro exposto no museu londrino.

Livro 62 Modelo para Armar de Julio Cortázar

Calac e Polanca, por sua vez, passam os dias brigando um com o outro, passeando furtivamente pela capital inglesa e fazendo amizades. O novo amigo da dupla é Austin, um alaudista inglês que já integrou o grupo dos Neuróticos Anônimos. Quem viaja à Londres para se integrar ao grupo é Osvaldo, chamado por todos de “meu paredro” (seja lá o que isso queira dizer!).


Em Paris, ficaram, do grupo de amigos, apenas Hélène, que continua trabalhando no hospital normalmente, Célia, uma estudante menor de idade que decidiu sair de casa, e Feuille Morte, talvez a personagem mais misteriosa do livro (ou aquela que menos aparece na trama), além de Curro, o atendente do café em que o grupo frequentava antes de se dissipar pela Europa. Para ajudar a amiga mais jovem, Hélène aceita hospedar Célia em seu apartamento, apesar do tamanho diminuto da residência e do jeito folgado da adolescente. Tudo para a menina não ficar sem um teto nem desamparada pela cidade.


Li “62 Modelo para Armar” na última segunda-feira. Levei pouco mais de nove horas para concluir integralmente essa leitura no feriado de 15 de novembro – Salve a República! Precisei de três sessões (uma de manhã, outra à tarde e mais uma à noite) para percorrer as 256 páginas da publicação. Confesso que padeci menos para ler “62 Modelo para Armar” do que sofri para chegar ao final de “O Jogo da Amarelinha”. Apesar de ser mais parado do que o romance anterior de Julio Cortázar (sim, isso é possível!), essa obra é menor (tem quase um terço do tamanho da outra). Assim, ela não cansa tanto – cheguei extenuado ao final de “O Jogo da Amarelinha” ao ponto de querer matar Cortázar (isso é, se ele ainda estivesse vivo).


Isso não quer dizer que “62 Modelo para Armar” seja uma leitura fácil ou tranquila (só disse que não cheguei extenuado ao seu final – o que para mim já é um milagre em se tratando de romances de Julio Cortázar). O que torna tudo complicado é que o livro não tem qualquer separação em partes ou em capítulos. O romance vem em um texto corrido. Além disso, as várias linhas narrativas (foco narrativo, tempo narrativo e espaço narrativo, por exemplo) vem embaralhadas. Muitas vezes, as mudanças de narrador (sim, temos vários narradores simultâneos!), de trama (são pelo menos três enredos distintos que se integram de alguma forma), de espaço (são basicamente três lugares) e de tempo (não há determinação de quando as coisas acontecem) se dão de uma frase à outra no meio do parágrafo. É, amigo(a), quer moleza, então vá comer gelatina. Com Cortázar, não temos uma simples leitura recreativa.

Livro 62 Modelo para Armar de Julio Cortázar

Quem leu “Todos os Fogos o Fogo”, coletânea de contos de Julio Cortázar publicada dois anos antes, entenderá os recursos narrativos utilizados pelo autor nessa obra aqui. É como se “62 Modelo para Armar” usasse as invencionices dos contos “Senhorita Cora” e “Todos os Fogos o Fogo” (conto homônimo que emprestou seu nome ao título da coleção). Nessas narrativas curtas, vale a pena lembrar, Cortázar muda o narrador no meio das frases (gerando uma polifonia de vozes) e apresenta simultaneamente duas tramas que ocorrem em espaços e épocas diferentes (integrando-as pelas semelhanças de cenas e de sentimentos das personagens). Apesar da proposta ousada, o resultado é espetacular nos contos – “Todos os Fogos o Fogo” é para mim o melhor livro de Julio Cortázar ao lado de “Os Prêmios”. Agora, fazer essas mesmas estripulias em um romance com mais de 200 páginas me pareceu loucura. O resultado é obviamente questionável – eu sou categórico em dizer que não gostei.


Outra questão que torna difícil a leitura de “62 Modelo para Armar” é a ausência de um conflito mais evidente. Afinal, o que as várias personagens dessa obra querem?! É difícil apontar. A frustração sentimental parece ser o único elemento que integra as diferentes narrativas e as várias figuras retratadas pelo romance. Se tivesse que resumir esse livro em uma linha só, diria: “Nicole ama Juan que ama Hélène que não ama ninguém”. Não é preciso ser um gênio da literatura para relacionar esse enredo à dinâmica de “Quadrilha”, o famoso poema de Carlos Drummond de Andrade. No caso de uma comparação mais musical, contemporânea e popularesca (na esteira das homenagens à Marília Mendonça), essa publicação de Cortázar poderia usar o refrão de “Todo Mundo Vai Sofrer”: “Quem eu quero, não me quer/Quem me quer, não vou querer/Ninguém vai sofrer sozinho/Todo mundo vai sofrer”.


Outras três características que potencializam a dificuldade do texto desse romance de Julio Cortázar são: a narrativa lenta, a mistura de diferentes planos da realidade e as longas partes reflexivas. A lentidão da narrativa se dá principalmente pela descrição de cenas banais do cotidiano (uma marca da literatura de Cortázar). Acompanhamos, por exemplo, uma refeição em um restaurante chique, uma mulher andando pelas estações do metrô parisiense, um casal bisbilhotando uma senhora por pura curiosidade, um artista analisando um quadro em um museu... Isso por várias, várias e várias (eu disse VÁRIAS!!!) páginas.

Livro 62 Modelo para Armar de Julio Cortázar

Juntamente com o retrato do dia a dia das personagens, temos uma mistureba de vários planos: realidade, sonhos, imaginação, lembranças, frustrações amorosas e desejos íntimos dos protagonistas, passagens literárias e recortes jornalísticos. Tudo isso vem junto e nem um pouco misturado. Para completar, temos longos trechos de reflexões filosóficas. Lembremos que essas características vêm em um texto (como já disse) sem qualquer divisão formal e com vários narradores diferentes (que se alternam de uma linha para outra; e tornam o relato simultaneamente em primeira pessoa e em terceira pessoa). É curiosa a junção dessa overdose de elementos ortodoxos.


A mistura de “62 Modelo para Armar” é completada (calma, ainda não acabaram as maluquices!) pelo uso de vários idiomas. Além do espanhol (na obra original), esse livro tem passagens em francês e em inglês – algo que já tínhamos visto em “O Jogo da Amarelinha”. Respeitando a versão original do romance, Gloria Rodríguez não traduziu para o português os trechos que não estavam em espanhol. Assim, o leitor que não domina o francês e o inglês terá dificuldade para acompanhar alguns diálogos e certas reflexões das personagens.


Diferentemente do que possa parecer, não são apenas pedras no meio do caminho o que encontramos em “62 Modelo para Armar”. Esse livro tem alguns elementos interessantes, dignos de elogios. Gostei muito dos neologismos criados por Julio Cortázar (coitada da tradutora!). Note que o escritor voltou a usar o glíglico, sua própria língua. As discussões travadas entre Calac e Polaco (uma espécie de versão portenha de Dupond e Dupont, célebre dupla de “Aventuras de Tintim”, clássico de Hergé) são hilárias. Os xingamentos dos amigos argentinos são feitos no idioma cortaziano. Por falar em humor, temos na maior parte do tempo uma pegada tragicômica.


Outra questão curiosa desse livro está nas diferentes maneiras de Cortázar em expressar os diálogos. No que se refere ao discurso das personagens do romance, há de tudo em “62 Modelo para Armar”. Nas partes mais ousadas, assistimos às conversas em que não é discriminado objetivamente quem diz o quê nem há os recursos convencionais do discurso (entre aspas ou travessão, por exemplo). A sinalização da mudança do falante é feita, nesse momento, por uma barra (/). Incrível!

Julio Cortázar, escritor argentino.

Por fim, temos uma obra com pitadas de Surrealismo e de Existencialismo. Entretanto, elas vêm em doses menores do que as encontradas em “Os Prêmios” (narrativa profundamente surreal) e “O Jogo da Amarelinha” (trama com enorme carga existencial), os dois romances anteriores do autor. Gostei disso. Às vezes, acho que Cortázar exagera nas doses, tornando seus textos quase que indecifráveis. O que senti falta foi dos elementos de Realismo Fantástico. Esse livro quase não tem componentes mágicos.


Em suma, não gostei muito de “62 Modelo para Armar”. Na minha visão, as maluquices de Julio Cortázar são facas de dois gumes. Ou elas encantam e mexem positivamente com os leitores, como em “Os Prêmios” e “Todos os Fogos o Fogo”, ou atordoam os leitores e geram muitos dissabores, como em “Histórias de Cronópios e de Famas” e “O Jogo da Amarelinha”. No caso de “62 Modelo para Armar”, acho que essa obra fica, infelizmente, mais perto do segundo grupo.


Para encerrar o Desafio Literário desse bimestre, farei a análise completa da literatura de Julio Cortázar no dia 29 (segunda-feira da outra semana). Isso só será possível porque comentei previamente oito livros do autor argentino – “Os Reis” (Civilização Brasileira), “Bestiário” (Civilização Brasileira), “Final do Jogo” (Civilização Brasileira), “Os Prêmios”, “Histórias de Cronópios e de Famas”, “O Jogo da Amarelinha”, “Todos os Fogos o Fogo” e “62 Modelo para Armar”. Todos esses posts estão disponíveis no Bonas Histórias. Com isso, me sinto preparado para agora discorrer sobre o estilo narrativo, as características das principais obras e as escolhas artísticas de Cortázar. Portanto, não perca o próximo post com o panorama aprofundado do portfólio desse escritor polêmico e ousado. Nossa publicação do dia 29 será a última peça do Desafio Literário de Julio Cortázar. Até lá!


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