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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 43 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

Foto do escritorRicardo Bonacorci

Livros: História do Novo Sobrenome - O segundo romance de Elena Ferrante da Série Napolitana

Publicada em 2012, esta obra apresenta a juventude de Elena Greco e Rafaella Cerullo, as protagonistas de A Amiga Genial.

História do Novo Sobrenome é o romance de Elena Ferrante que dá sequência à série Napolitana, o maior sucesso da autora italiana

Continuemos falando da Série Napolitana, o maior sucesso de Elena Ferrante. Na semana passada, analisamos no Desafio Literário “A Amiga Genial” (Biblioteca Azul), o primeiro romance da saga de Elena Greco e Rafaella Cerullo (ou será que deveria chamá-la aqui de Rafaella Carracci?), as duas protagonistas que se amam e se invejam na mesma proporção. No post de hoje do Bonas Histórias, vamos comentar “História do Novo Sobrenome” (Biblioteca Azul), o segundo livro da Tetralogia Napolitana. Vale a pena dizer que a conceituada série literária da principal romancista italiana da atualidade é complementada com “História de Quem Foge e de Quem Fica” (Biblioteca Azul) e “História da Menina Perdida” (Biblioteca Azul). Essas duas obras, respectivamente os volumes 3 e 4 da saga, serão discutidas em detalhes ainda nesse mês no Desafio Literário de Elena Ferrante.


Publicado em 2012, “História do Novo Sobrenome” apresenta a juventude das protagonistas de “A Amiga Genial”. Se no romance anterior assistimos à infância e à adolescência de Elena Greco e Rafaella Cerullo (período compreendido entre o início da década de 1950 e o comecinho dos anos 1960), agora ingressamos nos primeiros anos da idade adulta das personagens. Basicamente, a trama do segundo volume da Série Napolitana vai do começo da década de 1960, quando as amigas tinham 16 anos de idade, até o final daquela década, quando elas possuíam em torno de 25 anos e já tinham trilhado caminhos de vida bem distintos.


Por se tratar da continuação de uma narrativa, não preciso dizer que é necessário ter lido o romance anterior da coletânea para compreender o que se passa em “História do Novo Sobrenome”, né? Essa tetralogia não é constituída de enredos independentes, caso você tenha cogitado essa ideia. Pelo contrário: trata-se de uma história só que precisou ser dividida em alguns volumes por causa de sua grande extensão, conforme Elena Ferrante explicou em “Frantumaglia – Os Caminhos de Uma Escritora” (Intrínseca), título que reúne cartas, ensaios e entrevistas da autora italiana. Se você me permitir um conselho, leia toda a Série Napolitana em sequência. Ou seja, acabou um livro, já comece o seguinte. Fiz isso e não tive qualquer dificuldade na leitura (ao menos até esse ponto).

Elena Ferrante, escritora italiana

O principal desafio em se tratando da Tetralogia Napolitana é se lembrar dos nomes de todas as personagens que participam diretamente do enredo, número que alcança facilmente a casa de meia centena. É muita gente mesmo! Apesar de termos à disposição, no início de cada obra, uma lista com as personagens citadas (inclusive, essa parte contém um pequeno resumo do que rolou no(s) título(s) anterior(es) – vale a pena lê-lo para refrescar a memória), é legal ter em mente o que cada pessoa fez e sua importância para a narrativa, sem precisarmos de cola ou de ajuda. Por isso, a importância da leitura em um intervalo curto entre os volumes. Porém, se mesmo assim o leitor se esquecer de alguém da trama, saiba que há a lista de personagens para ajudar nessa questão.


A edição brasileira de “História do Novo Sobrenome” foi publicada pela Biblioteca Azul, selo da Editora Globo, em 2016, alguns meses depois do lançamento de “A Amiga Genial”. Esse período de alguns meses ou até mesmo de um ano entre a chegada dos títulos da coletânea às livrarias, vale a menção, foi uma prática que aconteceu em boa parte do mundo (inclusive na Itália). Mesmo com o texto integral da série estando pronto nas mãos dos editores (Elena Ferrante entregou os originais dos quatro livros para Sandra Ozzola e Sandro Ferri, os editores da Edizioni e/o, a editora italiana da romancista), por fins mercadológicos e comerciais optou-se pela publicação fracionada.


Por falar na adaptação nacional de “História do Novo Sobrenome”, é legal notar o cuidado que a Editora Globo teve com a Série Napolitana. O tradutor brasileiro foi o mesmo nos quatro volumes (Maurício Santana Dias), o que ajuda os leitores a trafegar sem quaisquer complicações entre os títulos. Afinal, temos acesso a um texto com expressões e termos padronizados (algo que poderia ter se perdido no caso de mais de um tradutor ter se envolvido com o projeto). Há também uma grande uniformidade visual – o projeto gráfico dos títulos é único e espetacular. Admito que gosto de ler obras que conversam textual e visualmente entre si. Por mais óbvios que esses cuidados pareçam, não foi em todos os países que eles foram seguidos. Por falar nisso, achei as capas brasileiras dos livros dessa coleção de Elena Ferrante as mais bonitas do mundo. Elas são até mesmo mais impactantes do que as da versão italiana. A escolha de ilustrações com pegada vintage (ao invés de fotos, como nas obras originais) se mostrou acertadíssima.


Em Portugal, o segundo volume da Tetralogia Napolitana foi intitulado de “História do Novo Nome” pela Relógio D´Água, editora lisboeta fundada em 1982 e que detém os direitos sobre os livros de Elena Ferrante no lado português da Península Ibérica.

Livro História do Novo Sobrenome de Elena Ferrante, volume 2 da Série Napolitana

O enredo de “História do Novo Sobrenome” começa na Primavera de 1966. Aos 22 anos, Elena Greco, a narradora da trama, já não vive em Nápoles faz um tempinho e, dessa maneira, não tem acesso diretamente ao que se passa em sua cidade natal. Ela agora estuda em uma faculdade de Pisa e volta apenas nas férias de Natal para as casas dos pais. E nesses retornos esporádicos, ela fica apenas alguns dias entre familiares e velhos amigos. Sua rotina agora está definitivamente longe do sul da Itália.


Em Pisa, Elena continua estudando muitíssimo, recebe ótimas notas, ganha a admiração dos professores e namora rapazes (primeiro Franco Mari e depois Pietro Airota) que ela não gosta muito. Contudo, na sua opinião, essa parte da narrativa não merece muito destaque por não ter muita graça. Sua atenção está totalmente voltada para o que acontece em Nápoles e, principalmente, com Rafaella, sua melhor amiga de infância e adolescência. Lila, como Elena a chama carinhosamente, deixou de ser a Srta. Cerullo e se tornou a Sra. Carracci desde o casamento com Stefano (conforme vimos na última cena de “A Amiga Genial”).


Para narrar o que aconteceu com Rafaella a partir da cerimônia de matrimônio, Elena Greco retorna ao passado e relata tudo o que aconteceu a partir de então. Ela usa desde observações diretas e conversas que teve com Lila (obviamente antes da mudança para Pisa) até os diários da jovem amiga que lhe foram entregues e o que amigos e familiares lhe contaram. Diferentemente do que podíamos imaginar, o casamento de Rafaella com Stefano Carracci desandou logo de cara. O motivo da primeira briga foi a entrega para Marcello Solara, a pessoa que Lila mais odeia, do sapato que os irmãos Cerullo construíram na adolescência. Depois de ver a jovem esposa fazer birra já na festa de casamento por causa do sapato, o novo marido bateu nela tão logo chegaram ao hotel da Lua de Mel. Ao ser espancada (e depois violentada) por Stefano na noite de núpcias, Rafaella descobriu que jamais amara e jamais conseguiria amar aquele homem vulgar, violento e insensível com quem se casara.

Livro História do Novo Sobrenome de Elena Ferrante, volume 2 da Série Napolitana

A descoberta da falta de amor e a constatação do lado agressivo e ambicioso do marido levaram a amiga de Elena a ter uma relação fria e meramente protocolar com o cônjuge desde o início. A falta de um filho também contribuiu significativamente para melar ainda mais a tênue paz conjugal dos Carracci. Stefano acusava Lila de não querer ter um filho com ele, o que gerava comentários maldosos sobre a virilidade do rapaz pelo bairro pobre de Nápoles. Indiferente aos apelos do esposo e da família para se tornar uma dona de casa convencional e a mãe de um belo rebento, Rafaella preferia seguir no comando dos negócios do clã. Isso até ela se apaixonar pela primeira vez. Intempestiva com os desmandos do coração, Lila não se furta em se lançar em um tórrido relacionamento amoroso fora do casamento. Sim, a personagem principal de “História do Novo Sobrenome” adquire um amante. E por ele, Rafaella não mede consequências e não se preocupa com o que vizinhos, amigos, familiares e antigos colegas irão pensar.


Não é preciso dizer que em uma Itália machista, patriarcal, religiosa, sanguinolenta, passional e conservadora de meados dos anos 1960, a vida de Rafaella Carracci se torna um inferno. A impressão é que o mundo cai em sua cabeça quando seus segredos mais íntimos estão para ser revelados para os moradores do bairro suburbano. Antevendo a desgraça da amiga, Elena Greco preferiu romper com ela. Ao longo desse romance, foram quatro os momentos em que as protagonistas da saga acabaram seguindo para caminhos opostos e ficaram muito tempo sem se falar: após a festa na casa da professora Galiani (quando Lila tripudiou as amizades e o estilo de vida que Elena adquirira no liceu), após a viagem de férias à Ischia (quando Lila começou um relacionamento extraconjugal), com a gravidez de Rafaella e, por fim, com o ingresso de Elena à faculdade na Toscana.


“História do Novo Sobrenome” possui 472 páginas e está dividido em 125 capítulos. Pelo volume extenso de páginas (são quase cinco centenas, né?), esse livro requer um maior fôlego por parte do leitor. Li essa obra no último final de semana. Precisei de quase todo o sábado e o domingo para concluir integralmente seu conteúdo. Devo ter levado aproximadamente 12 horas (6 horas em cada dia) para ir do primeiro ao último capítulo do romance de Elena Ferrante.


Por ser a continuação de uma saga dramática, “História do Novo Sobrenome” mantém boa parte das características estilísticas de “A Amiga Genial”. Assim, seguimos acompanhando uma trama com os seguintes elementos narrativos: narradora pouco confiável; o centro do romance é a inveja que Elena Greco sente de Rafaella Cerullo/ Rafaella Carracci; ambientação noir (violência, machismo, pobreza, sujeira, bagunça, barulho, caos familiar e social...); relacionamentos amorosos, famílias e amizades geralmente tóxicos; personagens contraditórias (na Teoria Literária, chamamos essas figuras de redondas); e mergulho na história, na política, na cultura, na economia e nas mazelas sociais italianas, principalmente em relação à realidade de Nápoles e do Sul do país. Em outras palavras, em relação aos componentes formais da ficção romanesca, o volume 2 da Série Napolitana não apresenta grandes novidades quando o comparamos a “A Amiga Genial”. Os destaques estão essencialmente no conteúdo de sua narrativa.

Livro História do Novo Sobrenome de Elena Ferrante, volume 2 da Série Napolitana

O primeiro ponto que gostaria de comentar sobre “História do Novo Sobrenome” é a sensação ainda maior de que a protagonista da trama é Rafaella e não Elena. Já havia ficado com essa impressão no romance anterior, quando as duas personagens tiveram suas histórias narradas e a vida de Lila recebeu um ligeiro destaque (algo em torno de 60% das páginas de “A Amiga Genial” se voltaram para ela, enquanto os outros 40% atentaram-se para Elena Greco). Em “História do Novo Sobrenome”, esse equilíbrio desaparece definitivamente. Agora, a narradora-protagonista se atém quase que exclusivamente para os dramas da amiga. Elena praticamente se anula ao longo desse livro. Se precisasse definir um indicador numérico para a participação de cada uma das personagens centrais, diria que temos Rafaella 90% do tempo em cena e Elena em apenas 10% do enredo. É muita coisa para uma vilã (papel que caberia a Lila em uma análise inicial). Por isso mesmo, cresce minha sensação de que ela é a maior protagonista da saga napolitana (se não for, ao menos em “História do Novo Sobrenome” ela é) e não Elena Greco (como pensaríamos de início).


Para justificar esse mergulho na vida da amiga da narradora do romance, Elena Ferrante apresenta algumas justificativas aparentemente plausíveis do ponto de vista da verossimilhança literária: (1) Rafaella entregou seus diários para Elena Greco; e (2) a filha do sapateiro se tornou alvo dos comentários de boa parte dos habitantes do bairro. Ou seja, não faltaram registros (no primeiro caso) e pessoas dispostas a contar (no segundo caso) para a estudante de Pisa o que se passava na casa de Stefano e Lila. Se os boatos me pareceram bem factuais (só quem morou em regiões suburbanas sabe o quanto o rádio peão rola solto pela comunidade), por outro lado, não me pareceu muito verossímil que Lila escrevesse anotações pessoais relatando o que se passava na sua intimidade (ainda mais com um marido tão violento e ciumento por perto). Essa talvez seja a única peça um pouco solta do enredo.


Outra questão que ganha destaque em “História do Novo Sobrenome” é a relação pouco romântica do ato sexual. Para as personagens da tetralogia Napolitana, o sexo é um fardo para as mulheres e ele está muitas vezes desvinculado do amor. Ele é, na maioria dos casos, uma prática violenta do ponto de vista feminino e uma concessão que as mulheres fazem para os homens (maridos, noivos ou namorados). No caso de Elena Greco, a perda da virgindade tem como motivo exclusivo a necessidade de não ficar tão atrás da amiga casada (em mais uma prova de inveja pura da narradora-protagonista). Interessante notar que esse lado sombrio e violento do ato sexual é um padrão na literatura de Elena Ferrante. Essa questão já tinha aparecido, em menor escala é verdade, em “Um Amor Incômodo” (Intrínseca), “Dias de Abandono” (Biblioteca Azul) e “A Filha Perdida” (Intrínseca), os três primeiros romances da escritora italiana.

Livro História do Novo Sobrenome de Elena Ferrante, volume 2 da Série Napolitana

Por falar em violência, a brutalidade doméstica e o machismo também ganham tintas mais fortes em “História do Novo Sobrenome”. Na cultura conservadora do Sul da Itália da metade do século XX, a esposa é propriedade do marido, sendo obrigada a obedecê-lo incondicionalmente e a cuidar somente do lar e dos filhos. Não à toa, a postura independente e moderna de Lila (vale a pena destacar que ela se torna a mente pensante e o coração pulsante dos empreendimentos da família) é tão malvista por seus conterrâneos. O que dirá, então, quando ela surge com um amante a tiracolo, hein?


Curiosamente, apesar da vida de Rafaella Carracci (passemos a chamá-la aqui apenas pelo sobrenome do marido – esqueçamos momentaneamente do Cerullo) se desmantelar completamente, a inveja de Elena Greco pela amiga não diminuiu nem um pouco. Achei interessante essa questão. Em nenhum momento, a narradora da trama se solidariza com o destino triste de Lila. Pelo contrário: ela parece ficar feliz por se ver, enfim, em uma posição superior à da antiga colega de escola. Se eu já apresentava grande antipatia por Elena, agora posso dizer que a odeio para valer.


Na minha visão, Rafaella não é a vilã que Elena Greco tenta pintar a todo momento. A esposa de Stefano tenta ajudar a todos à sua volta (familiares, amigos de infância, funcionários, vizinhos...) e não tem qualquer atitude que dê margem para uma interpretação negativa de sua personalidade. A impressão é exatamente oposta. A cada capítulo de “História do Novo Sobrenome”, ela se torna mais bondosa. A meu ver, Lila é uma heroína digna de aplausos e admiração do público.


Ao ler o parágrafo anterior, alguém poderia me contrapor indignado(a): ela é uma mulher infiel; Rafaella traiu Stefano Carracci! Não podemos glorificá-la. Jamais! Respeito essa opinião, mas não concordo com esse ponto de vista conservador. O fato de Rafaella ter pulado a cerca não a faz ser mais ou menos digna. Além disso, quem deveria reclamar de ganhar um par de chifres é o marido dela, não a melhor amiga. Se Stefano reclamasse da postura da mulher, beleza, ele está no direito dele (mas, ele não tem o direito de espancá-la!!!). Porém, é Elena Greco quem usa a traição matrimonial para expor negativamente a amiga. Mais uma vez reafirmo: não gosto e não confio nas intenções da narradora-protagonista.

Livro História do Novo Sobrenome de Elena Ferrante, volume 2 da Série Napolitana

Aí outro(a) leitor(a) poderia reclamar: você está louco, Ricardo?! A Rafaella pegou (cuidado, nas próximas linhas desse parágrafo temos um pequeno spoiler do romance!) para amante o rapaz que a melhor amiga amava. Ok. Realmente, Lila fez isso. Entretanto, note que ela não sabia que Elena sempre fora apaixonada por Nino Sarratore. Por várias vezes, Lila questionou Elena sobre seus sentimentos em relação ao filho de Donato Sarratore. E sempre a narradora negou amar Nino ou sentir qualquer coisa por ele. Sempre! Dessa maneira, não me parece uma traição com a melhor amiga o início do relacionamento amoroso-sexual de Lila e Nino. Minha sensação é que qualquer um que Rafaella começasse a namorar naquela altura do campeonato, Elena iria fazer uma tempestade dramática (e iria desejar vingança!).


Eu disse no post de “A Amiga Genial” que Rafaella se parecia, na infância, com o menino José de Vasconcelos, protagonista de “O Meu Pé de Laranja Lima” (Melhoramentos), clássico de José Mauro de Vasconcelos, e, na adolescência, com Lea Delmas, a personagem principal de “A Bicicleta Azul” (Best Bolso), romance mais famoso de Régine Deforges. Agora em “História do Novo Sobrenome”, enredo passado na juventude de Lila, ela adquire mais semelhanças com Lea Delmas. Porém, a comparação que me veio à mente com mais intensidade foi mesmo a da célebre criação ficcional de Gustave Flaubert. Afinal, estamos tratando de uma esposa adúltera. Nessa ótica, a amiga de Elena Greco é a versão napolitana e moderna de Madame Bovary. Impossível não nos lembrarmos de Emma e de sua vida entediante no interior francês ao lado de Stefano, quero dizer, de Charles.


Por falar em vingança, esse é outro sentimento que alimenta Elena Greco desde as páginas de “A Amiga Genial”. Se no romance anterior essa questão já tinha aparecido pontualmente, aqui ela ganha mais destaque. A narradora da Série Napolitana é, portanto, uma personagem movida não apenas pela vingança, mas também com sede de vingança. Ela odeia Rafaella Carracci mais do que tudo nesse mundo. Esses dois elementos narrativos (inveja e desejo de vingança) permanecem ocultos em boa parte dos capítulos. Aqui está justamente a excelência da literatura de Elena Ferrante. A autora napolitana tenta mascarar as emoções negativas de sua protagonista, como ela faria se nos estivesse relatando veridicamente sua história. Porém, em algumas partes da trama, Elena Greco acaba não conseguindo segurar sua indignação e seu veneno. É incrível testemunhar um relato com tantas camadas dramáticas.


Por fim, quero destacar nesse post do Bonas Histórias dois aspectos que já tinham aparecido em “A Amiga Genial”, mas que ganharam destaque em “História do Novo Sobrenome”: a dicotomia idiomática – italiano versus dialeto napolitano; e a intertextualidade literária e cinematográfica dessa narrativa de Elena Ferrante.

Livro História do Novo Sobrenome de Elena Ferrante, volume 2 da Série Napolitana

Quanto à questão do idioma, é legal reparar no que significa para as personagens da Série Napolitana falarem italiano ou falarem o dialeto local. O domínio e o uso recorrente da língua italiana mostram a erudição e a posição social mais elevada do indivíduo (em um claro sinal de preconceito linguístico) e dão um ar mais cosmopolita para seus falantes. Por isso mesmo, o estranhamento da família Greco quando a primogênita volta de Pisa se expressando mais em italiano do que no dialeto materno. Por outro lado, falar exclusivamente o dialeto napolitano indica que a pessoa é vulgar, de baixa posição social e provinciana, algo inadmissível em alguns círculos e ocasiões sociais. Como não temos dialetos no Brasil, assistir a esse tipo de conflito idiomático é muito rico.


Em relação às intertextualidades cinematográficas e literárias, “História do Novo Sobrenome” possui uma lista interminável de citações e referências multiculturais. Caminhar pelos capítulos desse romance é acompanhar simultaneamente menções a filmes e a livros que fizeram parte da juventude da narradora. Quem gosta dos clássicos do cinema e da literatura, na certa irá curtir esse passeio cultural. Além disso, os fãs da ficção poderão assistir a um enredo metalinguístico. Afinal de contas, Elena Greco dá vazão ao sonho de infância e escreve um romance autobiográfico, o que gera admiração do público (a obra apresentou ótima vendagem) e perplexidade entre os amigos da moça (há cenas picantes envolvendo a perda de virgindade de uma adolescente com um homem mais velho e por quem ela não sentia nada além de mera curiosidade).


Para continuar analisando a Série Napolitana e a literatura de Elena Ferrante, a autora contemplada no Desafio Literário desse bimestre, o próximo livro que comentarei aqui no blog é “História de Quem Foge e de Quem Fica” (Biblioteca Azul). Publicada em 2013, essa obra é o terceiro volume da tetralogia de Ferrante que se tornou um best-seller mundial. O post sobre “História de Quem Foge e de Quem Fica” estará disponível no Bonas Histórias na terça-feira da semana que vem, dia 10. Não perca. Até lá!


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