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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 42 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

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Livros: Cenas Londrinas - A coletânea de crônicas de Virginia Woolf

Publicado entre 1931 e 1932, esse conjunto de textos não ficcionais da escritora inglesa apresenta um panorama de Londres antes da Segunda Grande Guerra.

Cenas Londrinas é a coletânea de crônicas de Virginia Woolf

Nos primeiros dias de 2022, li “Cenas Londrinas” (José Olympio), a coletânea de crônicas de Virginia Woolf sobre a capital inglesa. Reconheço que esse livro não está entre os trabalhos mais famosos da escritora britânica. Ele não se situa nem mesmo entre os títulos não ficcionais mais destacados do portfólio woolfiano – postos atualmente ocupados pelos ensaios “Um Teto Todo Seu” (Tordesilhas) e “O Leitor Comum” (Graphia). Portanto, não se martirize se você nunca ouviu falar dessa coleção textual. Até pouco tempo, eu também a desconhecia.


Por tudo isso, eu excluí “Cenas Londrinas” da lista de publicações analisadas no Desafio Literário de Virginia Woolf. Para quem não acompanha o Bonas Histórias com regularidade, preciso contar que, em julho de 2020, comentamos detalhadamente, na coluna Desafio Literário, seis das principais obras de Woolf. Naquela oportunidade, os livros selecionados para debate foram: “A Viagem” (Novo Século), romance de 1915, “Mrs. Dalloway” (L&PM Pocket), obra ficcional de 1925, “O Passeio ao Farol” (Rio Gráfica), marco do Modernismo inglês de 1927, “Orlando” (Penguin), outro grande sucesso da autora de 1928, “Um Teto Todo Seu”, ensaio famosíssimo de 1929, e “Flush – Memórias de Um Cão” (L&PM Pocket), charmoso romance de 1933.


Mas confesso (abestalhado/que eu estou decepcionado/porque foi tão fácil conseguir/e agora eu me pergunto/e daí?) que fiquei, desde aquela época, com muita vontade de conhecer “Cenas Londrinas”. Minha curiosidade recaía principalmente na narrativa de “Retrato de Uma Londrina”, o único conto entre as cinco crônicas da publicação. A protagonista dessa narrativa, Mrs. Crowe, é uma das grandes criações literárias de Virginia Woolf. A autora cita essa personagem especificamente e o título da obra no geral algumas vezes em sua autobiografia. Assim, se não deu para incluir essa coletânea nas análises da coluna Desafio Literário do ano retrasado, consegui pelo menos colocá-la agora em um post da coluna Livros – Crítica Literária.

Virginia Woolf, escritora inglesa

“Cenas Londrinas” foi publicado pela primeira vez na Good Housekeeping, tradicional revista feminina norte-americana fundada em 1885. Escritas entre 1931 e 1932, as cinco crônicas originais do livro foram veiculadas bimestralmente nas páginas da Good Housekeeping entre dezembro de 1931 e agosto de 1932. Em livro, esses textos de Virginia Woolf só foram reunidos e lançados em 1975 nos Estados Unidos e em 1982 na Inglaterra.


No Brasil, a primeira tradução dessa obra é de 2006. Curiosamente, em nosso país, “Cenas Londrinas” ganhou um acréscimo – o conto “Retrato de Uma Londrina”. Ou seja, além das cinco narrativas não ficcionais originais, por aqui a publicação ganhou um texto ficcional. É legal mencionar que “Retrato de Uma Londrina” tinha sido descoberto, em 2005, na Biblioteca da Universidade de Sussex. Aí a Editora José Olympio, dona dos direitos autorais de “Cenas Londrinas” em território brasileiro, aproveitou-se do clamor pela recém-descoberta para incluí-la em sua nova publicação. A estratégia, obviamente, era promover comercial e mercadologicamente o título que seria lançado.


Pode parecer, em um primeiro momento, estranha (e até mesmo apelativa) a incorporação de um conto a uma coletânea de crônicas. Porém, não é que a nova versão de “Cenas Londrinas” ficou muito boa. A impressão que temos durante a leitura do livro é que “Retrato de Uma Londrina” é na verdade uma crônica (mas não é – não sejamos enganados pelas aparências). Além disso, essa narrativa caiu como uma luva, integrando-se perfeitamente à coleção textual de Virginia Woolf. É até difícil, hoje em dia, pensarmos em “Cenas Londrinas” sem “Retrato de Uma Londrina”. Não por acaso, essa é a melhor parte da publicação. No meu caso, vale lembrar, só li essa obra por causa da presença do conto. Sem ele, não sei se minha curiosidade seria suficiente para adquirir e depois ler o título.


As seis narrativas de “Cenas Londrinas” são: (1) “As Docas de Londres”; (2) “Maré da Oxford Street”; (3) “Casas de Grandes Homens”; (4) “Abadias e Catedrais”; (5) “Esta é a Câmara dos Comuns”; e (6) “Retrato de Uma Londrina”. Nesses textos, acompanhamos a paixão de Virginia Woolf por sua cidade natal. As páginas do livro descrevem o dia a dia da capital inglesa e a dinâmica nas ruas mais movimentadas, nas construções mais simbólicas, nas instituições mais importantes, nos bairros mais marcantes e nas residências de figurões locais. Ler “Cenas Londrinas” é fazer uma visita à metrópole britânica dos anos 1930 ao lado de uma das principais intelectuais da primeira metade do século XX. Londres, naquela época, ainda figurava na posição de centro político-comercial do planeta, algo que mudaria após a Segunda Grande Guerra. Em uma comparação mais contemporânea e cinematográfica, é como se visitássemos Nova York antes de 11 de setembro de 2001 ao lado de Woody Allen.

Livro Cenas Londrinas de Virginia Woolf

Interessante notar que “Cenas Londrinas” não é apenas uma fotografia da capital inglesa antes da mudança definitiva do eixo geopolítico mundial para o outro lado do Oceano Atlântico – do Reino Unido/Europa para os Estados Unidos/América do Norte. Como não poderia ser diferente em se tratando de textos de Virginia Woolf, a escritora britânica utiliza-se de cenários e de personalidades que tão bem conhece para promover reflexões sobre as dinâmicas sociais, econômicas, políticas e culturais da Inglaterra do seu tempo. Dessa forma, ao mesmo tempo em que apresenta, como uma ótima anfitriã, a paisagem londrina para os turistas (ou melhor, para os leitores), ela discorre sobre a arquitetura, a história, o comércio, a desigualdade social, os hábitos culturais, o poder local, a supremacia naval, a religiosidade, os hábitos sociais, as particularidades da Inglaterra e o estilo de vida dos ingleses no período do Entre Guerras.


“As Docas de Londres”, a primeira crônica do livro, apresenta a paisagem e a rotina na região portuária da capital inglesa. Segundo Virginia Woolf, dificilmente havia um navio nos mares do planeta que não aportaria alguma vez na cidade. As docas londrinas eram a base do comércio mundial. Se por um lado as embarcações trazem riqueza, progresso e muitas mercadorias ao Reino Unido no início do século XX, por outro lado elas tornam a região do porto feia, suja e decrépita. Em “Maré da Oxford Street”, o olhar da escritora inglesa volta-se agora para o popular centro de compras de Londres. Apesar de não reunir os estabelecimentos comerciais mais refinados da cidade, Oxford Street é lindíssimo perto das docas. O fascínio que esse lugar desperta na autora é produzido pelo colorido e pelo barulho de uma multidão de vendedores e de compradores que se encontram diariamente.


“Casas de Grandes Homens”, o terceiro capítulo de “Cenas Londrinas”, mostra os casarões bem conservados e imponentes das famílias mais renomadas da cidade. As residências de escritores como Charles Dickens, Samuel Johnson, Thomas Carlyle e John Keats exemplificam muito bem esse tipo de construção que foi erguido ao longo das últimas décadas pela elite local. Os contrastes com o cenário portuário e do comércio de rua se intensificam. Porém, por trás da fachada glamurosa e tranquila dessas casas, ocultam-se rotinas domésticas por vezes cruéis, injustas e estafantes. “Abadias e Catedrais” apresenta aos leitores as diferenças e as semelhanças entre os principais estabelecimentos religiosos de Londres. Enquanto a Catedral de St. Paul é magnânima, imponente e silenciosa, a Abadia de Westminster é pequena, apertada e barulhenta. Por sua vez, a igreja de St. Clement Danes é o local dos principais casamentos londrinos. Em comum, as três construções religiosas guardam objetos, estátuas e esculturas que contam a História da Inglaterra.

Livro Cenas Londrinas de Virginia Woolf

Em “Esta é a Câmara dos Comuns”, Virginia Woolf percorre as galerias do parlamento britânico e mostra a arquitetura, a dinâmica, os rituais e as personalidades que frequentam a sede do poder legislativo. Ela discute desde as estátuas do prédio até a aparência dos parlamentares. “Retrato de Uma Londrina” é o último texto da coletânea. Nesse conto, conhecemos Mrs. Crowe, uma senhorinha tipicamente londrina. Por seis décadas, ela recebe diariamente na sala de sua casa os visitantes. Eles chegam para tomar uma xícara de chá e, principalmente, para fofocar. Não há acontecimento relevante em Londres que passe imune aos ouvidos e às bocas de Mrs. Crowe e de suas visitas. Pelo nível de mexerico na sala daquela residência, a capital inglesa se parece muitas vezes com os pequenos povoados interioranos, onde todos bisbilhotam a vida alheia.


“Cenas Londrinas” é uma obra curtinha. Ela tem apenas 96 páginas. Precisei de aproximadamente uma hora para concluir sua leitura no primeiro final de semana do ano. Além das cinco crônicas e do único conto (os seis capítulos centrais da publicação), o livro traz três partes complementares: “Prefácio de Ivo Barroso”, “História sobre esse Livro” e “Índice de Pessoas e Lugares”. Se o prefácio e a contextualização a respeito do título estão impecáveis, o índice de citações me pareceu completamente desnecessário (até porque ele não explica nada, apenas mostra as pessoas e os lugares que Virginia Woolf mencionou).


A edição que li foi a terceira da José Olympio, publicada em abril de 2017. A tradutora encarregada de adaptar o texto do inglês para o português foi Myriam Campello, carioca que também é romancista – “Cerimônia da Noite” (José Olympio) e “Como Esquecer” (Escrituras) – e contista – “Sons e Outros Frutos” (Record) e “Palavras são para Comer” (Oito e Meio). Além de Virginia Woolf, Campelo já traduziu obras de Stephen King, John Steinbeck, Alexandre Dumas e Georges Simenon, entre outros figurões da literatura universal.


A característica mais marcante de “Cenas Londrinas” é o caráter descritivo de seus textos. Essa questão pode incomodar os leitores mais ansiosos. Virginia Woolf relata, nas páginas dessa obra, o trabalho na região portuária, o comércio popular nas ruas, a intimidade nas mansões das famílias abastadas, as diferenças da arquitetura nas igrejas, os pormenores da rotina no parlamento e a rede de fofocas das socialites na cidade. Por isso, o livro é quase uma fotografia urbana de uma das principais metrópoles do início do século XX. Algo que pode potencializar a sensação de chatice do texto é que as crônicas falam de uma paisagem que já não existe mais. Afinal, a Londres da década de 1930 é um cenário de quase um século e que foi destruído pela Segunda Guerra. Não sei se a maioria dos leitores brasileiros irá se interessar por essa pegada histórica de uma localidade que foge tanto de nossa realidade.

Livro Cenas Londrinas de Virginia Woolf

Ao mesmo tempo em que apresenta a descrição dos diferentes cenários londrinos, Virginia Woolf aproveita para fazer reflexões sobre o dia a dia e as particularidades de sua terra natal. Aí o livro ganha em qualidade e relevância. É muito interessante acompanharmos o olhar da escritora inglesa sobre temas como: a engrenagem da economia mundial, a importância do transporte naval, a posição de soberania do Império britânico, a vitalidade do comércio de rua em uma metrópole, a beleza da arquitetura urbana, a tecnologia residencial, a destruição do meio ambiente, o contato cada vez menor com a natureza nos grandes centros, a força democrática advinda das eleições, o uso desmedido dos trabalhadores mais humildes pelas famílias endinheiradas etc.


Os leitores mais desatentos podem não reparar na qualidade das discussões promovidas pela autora. Afinal, as reflexões de Woolf são expostas bem sutilmente. Elas estão quase que escondidas no meio do texto descritivo. É preciso, portanto, atenção e certo esforço por parte dos leitores para se degustar a parte reflexiva das narrativas. Quem tiver esse cuidado, na certa ficará maravilhado com o conteúdo deixado por uma das mais brilhantes escritoras da língua inglesa e uma das intelectuais mais sagazes de seu tempo.


Em certo sentido, “Cenas Londrinas” me lembrou muito “Brás, Bexiga e Barra Funda” (Melhoramentos), coletânea de contos mais famosa de Antônio de Alcântara Machado. A diferença é que Woolf mostra, em sua publicação, a Londres da década de 1930 enquanto o escritor brasileiro apresenta a São Paulo dos primeiros anos do século XX. Outra distinção é que a inglesa optou pelas crônicas descritivas e Alcântara Machado escolheu a construção ficcional. Por falar em comparações literárias, não temos nessa coletânea de crônicas de Virginia Woolf o tom dialógico, como encontrado, por exemplo, em “Um Teto Todo Seu”. Também não temos a exposição de passagens autobiográficas, expediente narrativo usado brilhantemente por Orhan Pamuk em “Istambul – Memória e Cidade” (Companhia das Letras). Não por acaso, preferi a leitura de “Brás, Bexiga e Barra Funda”, “Um Teto Todo Seu” e “Istambul – Memória e Cidade” a “Cenas Londrinas”. Pelo menos os textos daqueles três livros se mostraram menos perecíveis – um problema habitual do gênero crônica.


Talvez o grande mérito de “Cenas Londrinas” tenha sido mostrar o último suspiro do predomínio político-econômico inglês. Queiramos ou não, há quase um século Londres não é mais a capital cultural do mundo. Boa parte do texto de Woolf mostra o orgulho, a soberba e o esnobismo britânico, elementos típicos de quem era o grande império comercial e geopolítico daqueles tempos. Hoje, sabemos que a Segunda Guerra Mundial veio para destruir essa posição – o Pós-Guerra representou a tomada de poder pelos Estados Unidos. Desde então, o Reino Unido tem perdido década a década relevância – ao ponto de nem mais estar na União Europeia.

Virginia Woolf, escritora inglesa

Outra questão que notei é que “Retrato de Uma Londrina” não estragou o conteúdo de “Cenas Londrinas”, algo que imaginei que pudesse acontecer. Afinal, estamos falando de um conto que foi injetado artificialmente pela editora brasileira em uma coletânea de crônicas. Curiosamente, a nova narrativa não apenas não atrapalhou a leitura como elevou a sua qualidade textual – ponto para os editores responsáveis por esse projeto editorial! Não por acaso, esse é disparado o melhor trecho/capítulo/narrativa do livro. Além disso, é até difícil de acreditar que “Retrato de Uma Londrina” não tenha sido concebido por sua autora para integrar “Cenas Londrinas”, tamanha é a compatibilidade estética, literária e conceitual entre as partes. É incrível isso, né? Esse casamento perfeito chega até a confundir o leitor. Se eu não soubesse previamente que “Retrato de Uma Londrina” é um conto, diria tranquilamente após a leitura de “Cenas Londrinas” que ele é uma crônica, assim como “As Docas de Londres”, “Maré da Oxford Street”, “Casas de Grandes Homens”, “Abadias e Catedrais” e “Esta é a Câmara dos Comuns”.


Se a inserção de um conto brilhante e compatível com a linha editorial do livro foi um gol de placa da Editora José Olympio, por outro lado não gostei da capa nacional de “Cenas Londrinas”. A imagem mostra uma fotografia evidentemente antiga, provavelmente do início do século XX ou mesmo dos anos 1930. Até aí beleza. Contudo, ela não dialoga nem um pouco com o conteúdo das crônicas/contos da publicação. Pelo que me lembre, não há menção de nenhum banho de sol entre os textos de Virginia Woolf. A impressão que tive é que quem desenvolveu (e quem aprovou) essa arte não leu a obra. Não gosto dessa incompatibilidade entre o projeto visual e o conteúdo textual. Nesse sentido, as capas das versões norte-americana e inglesa de “Cenas Londrinas” são muito mais pertinentes (trazem fotos antigas do centro da cidade em branco e preto).


Agora que concluí as leituras dos títulos de Virginia Woolf que tenho na biblioteca de casa, começo a refletir se não seria o momento de adquirir outras publicações da inglesa. “As Ondas” (Autêntica), romance de 1931, “O Quarto de Jacob” (Autêntica), romance de 1922”, e “O Leitor Comum” (Graphia), ensaio de 1925, são ótimas pedidas para quem deseja se aprofundar ainda mais na literatura da autora. Dessa forma, não estranhe se em breve eu produzir novos posts sobre as obras de Woolf aqui na coluna Livros – Crítica Literária.


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