Publicado em outubro de 2016, o terceiro romance da escritora sul-coreana se tornou fenômeno da ficção internacional ao retratar o machismo em seu país.
No final de semana passado, li “Kim Jiyoug, Nascida em 1982” (Intrínseca), o romance mais famoso da escritora sul-coreana Cho Nam-Joo. Fenômeno recente da ficção mundial e da literatura feminista, essa obra retrata de maneira brilhante o drama de uma mulher de Seul oprimida desde a infância pela cultura e pelos valores sexistas de seus conterrâneos. Em um cenário extremamente machista, a protagonista acaba, ao ficar grávida pela primeira vez, aprisionada ao papel de mãe, esposa e dona de casa. O pior é descobrir que esse caminho não é um acidente pessoal em que ela foi vítima ou uma escolha consciente de certo estilo de vida, mas uma convenção social imposta desde sempre a todas as mulheres da Coreia do Sul. Não à toa, a personagem principal do livro acaba meio que enlouquecendo. E para quem pensa que estou contando o final da trama (não se preocupe, não damos o spoiler nas análises feitas no Bonas Histórias!), a loucura da figura central desse título de Cho Nam-Joo ocorre já nas primeiras páginas. Portanto, a brincadeira aqui é parecida à dinâmica narrativa de “Bonsai” (Cosac Naify), premiada novela de Alejandro Zambra. A graça dessas leituras não está em descobrir o que acontece e sim o porquê os fatos relatados tragicamente acontecem. Incrível, né?
O que torna “Kim Jiyoug, Nascida em 1982” uma publicação tão interessante e saborosa aos olhos dos leitores internacionais é que o romance retrata uma faceta pouco visível (ao menos para o público estrangeiro) e nada elogiável (para os padrões ocidentais e contemporâneos) da sociedade sul-coreana: o machismo. Afinal, como um país tão desenvolvido (a Coreia do Sul é um dos Tigres Asiáticos), charmoso (com um soft power cada vez mais influente em vários campos artístico-culturais) e tecnológico (Seul, por exemplo, é uma das metrópoles mais modernas do planeta) pode tratar as mulheres como as sociedades mais retrógradas e desumanas do Oriente Médio (para ficarmos em uma comparação em nível continental), hein?! A resposta para tal questionamento está justamente nas páginas da obra de Cho Nam-Joo: “O mundo tinha mudado bastante, mas não pequenas regras, contratos e costumes (impostos às mulheres), o que significava que na verdade o mundo não tinha mudado nada”.
Curiosamente, a autora sul-coreana produziu a história de “Kim Jiyoug, Nascida em 1982” a partir da própria experiência de vida de quem precisou largar o trabalho e a profissão quando a maternidade bateu à porta. Ou seja, esse é um livro ficcional com muitos elementos autobiográficos. Nascida em Seul em 1978, Cho Nam-Joo se formou em Sociologia e trabalhou por quase uma década como roteirista de televisão. Quando teve a primeira filha, ela precisou largar a carreira que adorava para cuidar exclusivamente da casa, da família e da bebê. O pior é que essa decisão foi mais uma imposição social e menos uma escolha pessoal. Inquieta, criativa, inteligente e com muita vontade de voltar a trabalhar, a sul-coreana encontrou na produção literária uma nova profissão. Surgia, dessa forma, a escritora e romancista que faria sucesso, primeiramente, em âmbito nacional e, depois, nos quatro cantos do planeta.
Best-seller internacional com mais de um milhão de unidades vendidas, “Kim Jiyoug, Nascida em 1982” é o terceiro romance de Cho Nam-Joo e seu livro mais celebrado até aqui. Publicada na Coreia do Sul em outubro de 2016, a obra rapidamente se tornou um grande sucesso editorial no país asiático. O que ajudou na divulgação de “Kim Jiyoug, Nascida em 1982” entre os sul-coreanos foi o aparecimento de políticos, jornalistas, influenciadores digitais e personalidades do K-Pop comentando e discutindo (por vezes acaloradamente) a trama. Vale a pena dizer que a mera menção ao machismo da sociedade local e à necessidade de combater a desigualdade e a discriminação de gênero no país costuma gerar polêmicas e brigas em público. Nesse ambiente para lá de tóxico, muita gente achou exagerado e injusto o conteúdo do romance de Cho Nam-Joo. O grande número de pessoas que atacam a mensageira por causa da mensagem amarga já evidencia por si só o quão machista é a Coreia do Sul, né?
Com a propaganda espontânea, ora positiva, ora negativa, o livro foi parar na lista dos mais vendidos do mercado editorial sul-coreano com números na casa dos seis dígitos. Assim como ocorre em quase todas as partes do mundo, uma boa polêmica pode ser um excelente afrodisíaco para estimular o interesse dos leitores pela ficção literária. A repercussão em âmbito doméstico foi tão surpreendente (e satisfatória!) que chamou a atenção das editoras estrangeiras para o trabalho literário de Cho Nam-Joo.
Hoje, seis anos mais tarde, “Kim Jiyoug, Nascida em 1982” já foi traduzido para quase duas dezenas de idiomas. No Brasil, a obra foi lançada em março de 2022 pela Editora Intrínseca. A tradução (indireta feita a partir do título em inglês: “Kim Jiyoug, Born 1982”) foi realizada por Alessandra Esteche, tradutora e preparadora de texto em língua portuguesa e em língua inglesa e que é especialista em materiais didáticos e em literatura infantojuvenil. Em nosso país, esse é, por enquanto, o único livro de Cho Nam-Joo que foi publicado em português. Contudo, o sucesso internacional de “Kim Jiyoug, Nascida em 1982” fez com que editoras norte-americanas e europeias traduzissem e lançassem os demais romances da sul-coreana em seus mercados. Por isso, não se surpreenda se nos próximos anos chegarem por aqui as versões nacionais dos outros títulos de Cho Nam-Joo.
Por falar em desdobramentos do best-seller, a história dramática de Kim Jiyoug saiu, em 2019, das páginas do livro e ganhou as telas de cinema. A partir da adaptação do romance, a atriz e (agora) diretora Kim Do-young lançou o filme homônimo nos cinemas da Coreia do Sul. Esse foi seu título de estreia na direção cinematográfica. E mais uma vez, o interesse do público pela trama da jovem mãe de Seul oprimida pelo machismo resultou em números bombásticos. O filme “Kim Jiyoug, Nascida em 1982” (82 Nyeonsaeng Gim Jiyeong: 2019) conquistou mais de 3,6 milhões de espectadores e bilheteria superior a U$ 27 milhões nas salas de cinema, o que o colocou nas primeiras posições da temporada sul-coreana de cinema de 2019.
O enredo do livro “Kim Jiyoug, Nascida em 1982” (afinal, este post é da coluna Livros – Crítica Literária e não da coluna Cinema) começa no outono de 2015. Aos 33 anos, Kim Jiyoug levava uma vida aparentemente normal em um pequeno apartamento alugado em Seul. Casada desde 2012 com Jung Daehyun, rapaz de 36 anos que trabalhava em uma empresa de TI, e com uma filha de um ano, Jung Jiwon, a protagonista do romance era uma pacata dona de casa. Ela largara o emprego em uma agência de Marketing quando engravidou. Como os pais dela eram proprietários de restaurante na capital sul-coreana (o que exigia dedicação integral ao estabelecimento comercial) e os sogros moravam em outra cidade, Busan, a jovem mãe não tinha ninguém com quem deixar Jiwon após o parto. Assim, a rotina de Kim Jiyoug se limitava aos afazeres domésticos e ao cuidado da bebezinha tão logo a menina veio ao mundo.
Tudo parecia caminhar tranquilamente até 8 de setembro. Nessa data, Kim Jiyoug teve pela primeira vez o que podemos chamar de comportamento incomum. O casal tomava café da manhã em casa quando a esposa começou a falar como se fosse uma mulher mais velha. Logo de cara, o marido achou que Kim Jiyoug estivesse apenas brincando. Afinal, ela estava imitando perfeitamente a mãe dela. Ou quem sabe, cogitou Jung Daehyun, a mulher estaria estressada com o cuidado em tempo integral da filha pequena e estava tendo pequenos lapsos de memória.
Dias depois, Kim Jiyoug agiu como se fosse Cha Seungyeon, uma amiga do casal dos tempos de faculdade e que havia falecido por problemas no parto há alguns anos. Conversando como se fosse Cha Seungyeon, Kim Jiyoug aconselhou Jung Daehyun a valorizar a esposa e a não sobrecarregar com tantas tarefas domésticas. O que estaria acontecendo com sua mulher? A única resposta que ele chegou é que talvez Kim Jiyoug estivesse ligeiramente bêbada, apesar de ter ingerido apenas uma latinha de cerveja.
Mesmo com os indícios que havia algo de errado com a protagonista do livro, nada foi feito. Aí chegou o feriado de Chuseok, uma das celebrações mais importantes da Coreia do Sul. Aproveitando a folga prolongada, Kim Jiyoug, Jung Daehyun e Jung Jiwon viajaram para Busan. A ideia era passar alguns dias com os pais e a família dele. E para a perplexidade de todos, Kim Jiyoug criticou, como se fosse sua mãe, o excesso de trabalho doméstico que os parentes de Jung Daehyun estavam impondo a filha/esposa dele por causa do feriado. A sinceridade nas palavras da moça gerou uma forte crise familiar. Por mais que tivesse que concordar com Kim Jiyoug, Jung Daehyun não podia ficar contra os pais em plena casa deles. A única alternativa encontrada pelo marido foi sair correndo de Busan com a esposa e a filha.
A partir daí, temos um longo flashback da infância, adolescência, início da vida adulta, casamento e maternidade de Kim Jiyoug. Esse mergulho no passado fornece subsídios para descobrirmos o que levou a personagem a ter aquele comportamento tão incomum, quase amalucado. Paralelamente, também conhecemos um pouco da história dos pais e dos irmãos de Kim Jiyoug e da trajetória da família de Jung Daehyun. Afinal de contas, o que teria acontecido com a jovem esposa e recente mãe para ela agir de um jeito tão assustador, hein?!
A versão literária de “Kim Jiyoug, Nascida em 1982” possui 176 páginas e está dividida em seis capítulos (“Outono de 2015”, “Infância, 1982-1994”, “Adolescência, 1995-2000”, “Início da Vida Adulta, 2001-2011”, “Casamento, 2012-2015” e “2016”). Precisei de pouco mais de duas horas e meia para concluir a leitura do romance de Cho Nam-Joo no último sábado. Por causa do tamanho reduzido de páginas, se você preferir chamar esse livro de novela também pode. Confesso que fiquei com essa dúvida quando comecei a preparar este post para a coluna Livros – Crítica Literária. Afinal, tanto em extensão quanto em complexidade narrativa, “Kim Jiyoug, Nascida em 1982” está bem no limiar entre uma novela (narrativa de tamanho e complexidade mediana) e um romance (narrativa de tamanho e complexidade longa).
Independentemente das classificações do gênero narrativo, o que não muda é a qualidade do texto da publicação. Essa obra de Cho Nam-Joo é espetacular!!! Não tenho receios de dizer que “Kim Jiyoug, Nascida em 1982” é um dos mais impactantes títulos literários que li nos últimos três anos e que comentei com vocês no Bonas Histórias em 2022. Para completar, esse livro tem talvez a história ficcional mais contundente sobre o machismo em uma sociedade (pretensamente) desenvolvida. Se você ficou impressionado com os romances feministas de Chimamanda Ngozi Adichie, como “Hibisco Roxo” (Companhia das Letras), “Meio Sol Amarelo” (Companhia das Letras) e “Americanah” (Companhia das Letras), então você precisa conhecer “Kim Jiyoug, Nascida em 1982”.
Nessa publicação de Cho Nam-Joo, assistimos a uma série interminável de preconceitos e violências que as mulheres passam rotineiramente na Coreia do Sul da infância à velhice. E não estamos falando de eventos antigos, do século passado ou de décadas atrás. Não!!! Boa parte da trama de “Kim Jiyoug, Nascida em 1982” acontece nos dias atuais e é protagonizada por uma jovem cosmopolita de um dos países mais desenvolvidos do capitalismo. Aí está justamente a questão mais assustadora do livro. O sexismo que ataca e oprime a personagem principal do romance (prefiro chamá-lo de romance à novela, tá?) está em todos os lugares da sociedade sul-coreana: dentro de casa, nos encontros familiares, na escola, na faculdade, no casamento, no trabalho, perante as instituições públicas, nas políticas governamentais, nos valores sociais, no transporte, no passeio despretensioso ao parque etc. Até dentro da barriga materna as meninas são vítimas da cultura machista e misógina (o número de abortos delas é infinitamente maior do que o realizado com os meninos). É ou não é assustador, hein?!
É verdade que tudo isso não é uma grande novidade para as almas feministas e para aqueles mais atentos e engajados socialmente. Entretanto, quando olhamos o quadro completo do que acontece ao longo da vida de Kim Jiyoug, que está longe de ser exceção entre as sul-coreanas, o cenário se torna tão horripilante, tal qual uma história de terror. A impressão é que a protagonista vive literalmente presa em uma cultura de violência à mulher, de opressão masculina e de guerra entre os sexos. Exatamente por isso, adorei a intertextualidade do nome do livro, que faz uma clara referência ao romance “Nascido em 4 de Julho” (Publicações Europa-América) de Ron Kovic, que inspirou o filme homônimo de Oliver Stone. Em ambos os enredos, os cenários das tramas são os conflitos bélicos, atrozes, inexplicáveis e enlouquecedores. Se os soldados norte-americanos padeceram física e mentalmente com a rotina no Vietnã, as sul-coreanas passam pela mesma situação diariamente em seu país (elas são enviadas para a guerra tão logo entram na barriga da mãe).
Repare que não estamos falando no que acontece com as mulheres na China, como os principais títulos de Xinran – “Mensagem de Uma Mãe Chinesa Desconhecida” (Companhia das Letras), “As Filhas Sem Nome” (Companhia das Letras) e “As Boas Mulheres da China” (Companhia de Bolso) – nos mostram. Não estamos tratando da situação feminina no Afeganistão, como as obras de Khaled Hosseini – “O Caçador de Pipas” (Nova Fronteira), “A Cidade do Sol” (Nova Fronteira) e “O Silêncio das Montanhas” (Globo Livros) – retratam. Também não estou me referindo à Índia de Thrity Umrigar – como visto em “A Distância Entre Nós” (Nova Fronteira). O contexto narrativo é a Coreia do Sul, o que torna tudo mais emblemático.
E o que tem afinal de tão especial nesse país asiático, hein? Aí está a questão chave que trago para esse post da coluna Livros – Crítica Literária. A Coreia do Sul ganhou grande evidência nos últimos anos. Sua importância agora não é apenas econômica, mas sobretudo cultural. A arte, o esporte, o entretenimento e a cultura sul-coreanas parecem ter conquistado forte dimensão no Ocidente nos últimos vinte anos. Na música e na dança, posso citar o K-Pop como um gênero que caiu no gosto dos jovens de várias partes do mundo. No cinema, o melhor exemplo é “Parasita” (Gisaengchung: 2019), filme de Bong Joon Ho que recebeu o Oscar. Na televisão, os k-dramas angariaram fãs ao redor do planeta. Até a gastronomia tem lá suas preciosidades (confesso que sou apaixonado pelo corn dog coreano) e o futebol tem mostrado grande evolução (a Seleção da Coreia do Sul ia muito bem na Copa até enfrentar a Seleção Brasileira nas oitavas de finais). E um país com tantos aspectos positivos para mostrar aos estrangeiros é aquele mesmo que oprime, mata, violenta, menospreza, diminui, assedia e humilha as mulheres cotidianamente. É ou não é uma contradição absurda, né?!!
Assim sendo, o primeiro elemento narrativo que chama a atenção do leitor em “Kim Jiyoug, Nascida em 1982” é a ambientação. O clima, o tom e a atmosfera dessa história são pesados e angustiantes. O terror que as mulheres vivenciam rotineiramente na Coreia do Sul acontece em todas as classes sociais, em todos os lugares e em todas as épocas. O machismo se faz presente nos privilégios e na atenção maior que as famílias dão para os bebês e para as crianças do sexo masculino. Na overdose de trabalho doméstico que as mulheres são obrigadas a ter normalmente. Na imposição que elas devam ir para a cozinha nos feriados mais importantes da nação. Na cultura do aborto quando o feto é do sexo feminino. Na imposição ao subemprego para as mulheres casadas, de meia-idade ou com filhos pequenos que insistem em trabalhar (independentemente de suas formações e competências). No bullying sofrido pelas alunas na escola e praticado tanto pelos alunos masculinos quanto pelos professores dos dois sexos. No assédio sexual e moral disseminado na escola, no transporte público, na rua, no trabalho e em casa. Na impossibilidade da mulher casada e, principalmente, da grávida ou mãe recente de seguir com sua profissão. Na pressão social da jovem esposa em ter um filho (e de preferência homem!). Entendeu agora como a ambientação é de terror para as personagens femininas do romance?!
Dois componentes narrativos favorecem a constituição da ambientação soturna de “Kim Jiyoug, Nascida em 1982”. O primeiro é o texto seco e cortante da obra. Cho Nam-Joo não é poética nem usa meias palavras para retratar a violência sofrida por sua protagonista e por suas conterrâneas. A escritora é extremamente objetiva ao pontuar o que acontece em cena. O texto árido dá um aspecto ainda mais corrosivo à trama e à experiência literária. Como efeito estilístico à lá Graciliano Ramos, o resultado é encantador.
O segundo aspecto é o caráter meio híbrido da narrativa. Se notarmos bem, esse livro de Cho Nam-Joo tem vários elementos não ficcionais enxertados no meio do texto ficcional. No começo da leitura, esse expediente me pareceu meio esquisito. Confesso que pensei: por que as notas de rodapé com tantos dados estatísticos, notícias jornalísticas e pesquisas acadêmicas se estamos em um romance? Só na metade da leitura pude entender parcialmente o que estava acontecendo. Nesse momento, acreditei que a autora queria conferir um ar de crônica à narrativa. Por essa perspectiva, temos em “Kim Jiyoug, Nascida em 1982” uma mistura de romance com coletânea de crônicas feministas. A parte não ficcional é obviamente direcionada ao combate ao machismo e à misoginia na Coreia do Sul. Ao trazer elementos concretos, estatísticas reais e episódios verídicos do que as mulheres sul-coreanas vivenciam ainda hoje, entendemos que o sofrimento de Kim Jiyoug é regra e não exceção. E quando compreendemos isso, o texto ficcional ganha ainda mais em dimensão dramática e engajamento.
Entretanto, só no último capítulo (chamado de “2016”), entendemos exatamente o uso das notas de rodapés e a preocupação acadêmica de pontuar o drama de Kim Jiyoug com elementos bibliográficos. Obviamente, não irei revelar a descoberta que os leitores fazem na parte final do romance. O que posso dizer (sem estragar a experiência literária de ninguém) é que temos um narrador em primeira pessoa. Até o epílogo, parece que a narração da obra é em terceira pessoa. Mas ela não é, não. No desenlace descobrimos quem é que conta a história de “Kim Jiyoug, Nascida em 1982” e o porquê da sua preocupação com as citações, as referências e as bibliografias virem explícitas no texto. Essa é, justamente, uma das boas surpresas contidas na parte final do livro.
Por falar no narrador surpreendente do epílogo, gostei de descobrir que esse texto está em primeira pessoa e não em terceira pessoa. Essa escolha de Cho Nam-Joo tem duas qualidades mais evidentes. Logo de cara, essa característica confere um ar de maior qualidade à literatura ali praticada. Querendo ou não, é difícil valorizarmos as tramas da ficção contemporânea que tenham narradores em terceira pessoa onipresentes e oniscientes, né? Além disso, as revelações do narrador e o seu conhecimento sobre a vida inteira de Kim Jiyoug e de seus familiares (algo totalmente justificado nas páginas finais da obra) isentam a escritora de qualquer equívoco de Foco Narrativo (conforme cogitei durante a leitura, até chegar ao capítulo derradeiro e entender a dinâmica da narrativa).
Se o capítulo final é espetacular, como citei acima, o capítulo inicial não fica atrás. Ele também é maravilhoso. O que mais gostei é que Cho Nam-Joo consegue imprimir dinamismo e charme ao seu texto desde as primeiras linhas. Como disse logo no comecinho deste post do Bonas Histórias, o conflito do romance é exposto diretamente e sem rodeios – Kim Jiyoug parece ter enlouquecido, pois começa a emular comportamentos e frases de sua mãe. A partir daí, nos perguntamos: por que a protagonista está agindo dessa maneira? O que aconteceu de tão grave em sua trajetória para ela ter esse tipo de distúrbio psiquiátrico? Com essas dúvidas em mente, nos transvestimos de psiquiatra e mergulhamos no passado da personagem desde a infância.
Outra questão interessante de ser exaltada em “Kim Jiyoug, Nascida em 1982” é a ótima visão histórica da Coreia do Sul. A trama ficcional de Cho Nam-Joo percorre vários períodos importantes da formação social e cultural da nação asiática. Nas páginas do livro, acompanhamos: a mudança da economia agrária para a industrial; a vida típica no interior do país na primeira metade do século XX; o êxodo rural; o início do capitalismo em Seul; a dificuldade da população durante o período entre Guerras e do Pós-Segunda Guerra Mundial; o vertiginoso crescimento econômico no início da década de 1990; a crise financeira do Sul da Ásia em 1997; e tantas outras passagens históricas.
O que pode incomodar um pouco os leitores desacostumados aos nomes e aos termos orientais é que eles nos confundem às vezes. Isso aconteceu comigo. Mesmo lendo “Kim Jiyoug, Nascida em 1982” em uma batida só (o que normalmente minimiza problemas desse tipo), em alguns momentos me confundi com um nome sul-coreano aqui e outro acolá. Porém, esse detalhe não teve a dimensão de estragar a minha experiência de leitura. Até porque, dá para solucionar as possíveis confusões algumas linhas mais à frente.
O problema mais grave desse romance, na minha visão, foi o tipo de tradução escolhido: o indireto. Como ocorre com a maioria dos títulos da literatura asiática adaptados para nosso idioma, o texto de “Kim Jiyoug, Nascida em 1982” foi versado do inglês e não do sul-coreano. Mesmo com o trabalho impecável de Alessandra Esteche, percebe-se um certo enrosco quando feriados, datas comemorativas, pratos, hábitos, roupas e cômodos da Coreia do Sul são trazidos para o português de forma indireta. Novamente, essa questão não prejudica tanto a questão da experiência literária. Mesmo assim, pela qualidade e pela dimensão do livro de Cho Nam-Joo, acredito que valia a pena o investimento por parte da Editora Intrínseca em uma tradução direta.
Com certeza, “Kim Jiyoug, Nascida em 1982” estará na lista das melhores obras que debati na coluna Livros – Crítica Literária em 2022 (ranking que renderá um post para a coluna Recomendações em janeiro). Além disso, confesso que esse foi o romance feminista mais impactante que li nos últimos anos. Afinal, uma coisa é mostrar o drama social das mulheres em culturas muito diferentes e distantes da nossa (o termo distante usado aqui não tem a característica geográfica, tá?). A outra é retratar a agonia feminina em um país tão tecnológico, rico, capitalista, charmoso e próximo do nosso dia a dia. Por estarmos muito mais pertos culturalmente da Coreia do Sul (e do Japão, por exemplo) do que da Nigéria, China, Índia, Afeganistão, Irã, Iraque e Paquistão, as sensações de incômodo, revolta e inconformismo dos leitores ocidentais são potencializadas. Constatar por A mais B o machismo sistêmico no âmago de uma sociedade que integra a elite do capitalismo contemporâneo é realmente chocante. Durmamos com esse estrondo, amigos e amigas!
Por fim, gostei dessa leitura de Cho Nam-Joo porque há muito tempo acalentava a curiosidade de conhecer um título da literatura sul-coreana. Eu já tinha mergulhado na literatura chinesa (Xinran de maneira mais profunda e Murong de forma superficial) e na literatura japonesa (Haruki Murakami e Kenzaburo Oe de um jeito mais sistemático e Kazuo Ishiguro mais pontualmente). Porém, na literatura da Coreia do Sul eu estava zerado. Acho que consegui, em grande estilo, espantar essa mácula que tinha em minha biblioteca.
Gostou deste post e do conteúdo do Blog Bonas Histórias? Se você é fã de literatura, deixe seu comentário aqui. Para acessar as demais análises literárias, clique em Livros – Crítica Literária. E aproveite para nos acompanhar nas redes sociais – Facebook, Instagram, Twitter e LinkedIn.
Comments