Publicada em 1996, a narrativa de memórias da escritora norte-americana renovou a literatura de viagens, culinária e estilo de vida.
Quem nunca pensou em morar no exterior, hein? De preferência em uma cidadezinha tranquila e charmosa da Europa, né? Quem não cogitou ter um estilo de vida mais tranquilo em que as pequenas sutilezas do cotidiano fossem resgatadas? Quem não gosta de se lançar em viagens rumo a cenários que exalam cultura, arte e história? Quem nunca quis aprender um novo idioma só pelo prazer de interagir com as pessoas dos lugares que mais admira? Quem não aprecia uma boa experiência gastronômico ou uma bela degustação de vinhos? Quem nunca sonhou em comprar uma casa em uma região rural e transformá-la em um santuário integrado à natureza? Quem não deseja envelhecer com paz de espírito, saúde e um dia a dia harmonioso?
Não se assuste se você tiver ticado sim em todas as questões do parágrafo anterior. Prova maior que esses temas estão em nossas mentes (quase disse que eles estão na moda – e quando não estiveram?!) é a profusão de lançamentos de livros, filmes, documentários, reportagens de revistas e jornais, programas de televisão, blogs, vlogs e canais no Youtube. Nos últimos anos, ficou evidente o grande interesse do público por temas como viagem, mudança de estilo de vida, migração para o exterior, aprendizado de culinária, vinho, decoração e jardinagem, dicas para reformar a casa, incentivo à prática do faça-você-mesmo(a), importância de ter novos hobbies, benefício de se manter em contato permanente com o meio ambiente e preocupação com a saúde física e mental. Invariavelmente, quando uma produção artístico-cultural aborda um desses assuntos, ela se torna um grande sucesso.
São tantas obras inspiradoras ou títulos best-sellers nessas linhas editoriais que é até difícil de listar apenas algumas. De cabeça, lembro de “Comer, Rezar e Amar” (Objetiva), grande sucesso de Elisabeth Gilbert, “Por Uma Vida Mais Simples” (Cultrix), ensaio de André Cauduro D´Angelo, “Minha Mãe Fazia” (Biblioteca Amarela), coletânea com as experiências culinárias de Ana Holanda, e “Andante das Gerais” (Páginas Editora), coleção com as crônicas de viagens de Roberto Marcio. Isso para não falar de clássicos como “On The Road – Pé na Estrada” (L&PM Pocket), obra máxima de Jack Kerouac, “Na Pior em Paris e Londres” (Companhia das Letras), relato não ficcional de George Orwell e “Diário de Um Mago” (Rocco), maluquices espirituais de Paulo Coelho pelo Caminho de Santiago de Compostela.
Repare que a lista acima foi construída apenas com livros. Se fosse avançar para outras manifestações artísticas, acho que passaria um dia inteiro citando exemplos. Só no cinema, temos uma avalanche deles: “Meu Verão na Provença” (Avis de Mistral: 2014), “Julie & Julia” (2012), “O Ciclo da Vida” (Fei Yue Lao Ren Yuan: 2012), “Antes do Amanhecer” (Before Sunrise: 1995) e “Um Banho de Vida” (Le Grand Bain: 2018). Se eu fosse falar de blogs, vlogs e canais no Youtube com essas temáticas, aí então acho que nunca mais pararia com as citações.
Antes que alguém grite comigo sobre meus longos devaneios que não chegam a lugar nenhum, preciso explicar a relação disso tudo com a obra que vou comentar no post de hoje da coluna Livros – Crítica Literária. Calma: há sim uma lógica entre meu texto introdutório e o título a ser analisado. Acredite em mim! “Sob o Sol da Toscana” (L&PM Editores), a publicação mais famosa da escritora e poetisa norte-americana Frances Mayes, é aquele tipo de sucesso editorial que, há exatos 25 anos, ajudou a catapultar o tipo de literatura que descrevemos há pouco – uma mistura bem azeitada de viagens, culinária, estilo de vida, mudança para o exterior, reforma da casa e busca por uma rotina mais alegre, holística e saudável. Se você preferir, pode colocar também uma pitadinha de autoajuda no receituário.
Best-seller mundial na segunda metade da década de 1990, “Sob o Sol da Toscana” é a narrativa não ficcional de Mayes que mostrou o potencial de uma história real como mola inspiradora para os leitores. A obra trata da radical mudança da autora dos Estados Unidos para a Europa. Buscando um estilo de vida mais tranquilo (de preferência em uma cidadezinha pacata e bonita perto do Mediterrâneo), o prazer da vida simples (em meio à natureza) e o mergulho em experiências gastronômicas, culturais e turísticas (vita la dolce vita!), Frances Mayes comprou uma propriedade na Toscana para passar os meses de Verão (daí o nome de sua publicação). Se pensarmos bem, esse livro de memórias continua sendo um título extremamente atual, apesar de suas duas décadas e meia de vida. Além disso, ele teve o poder de influenciar direta ou indiretamente os escritores, os artistas e os produtores de conteúdo contemporâneos que embarcaram por essa linha editorial.
Lançado em setembro de 1996, “Sob o Sol da Toscana” narra a jornada real de Frances Mayes pela Toscana, uma das regiões mais charmosas da Itália e de todo o Mediterrâneo. Professora universitária em São Francisco, Frances, então com 50 anos, decidiu comprar uma velha propriedade rural em Cortona, pequena cidade da província de Arezzo, região central da Itália. Ainda abalada com a separação do primeiro casamento e com a filha já crescida, a escritora queria mudar radicalmente de vida. Ao lado do novo parceiro, também professor universitário, Frances Mayes adquiriu uma casa italiana (quase um sítio) que estava desabitada há trinta anos. E durante os Verões e as festas de final de ano (períodos em que estava de férias na universidade), ela reformou o novo lar e tratou de dar vida à terra – plantou oliveiras, parreiras e batatas. Para completar, mergulhou na cultura, no idioma, na culinária e nos hábitos locais.
Frances Mayes registrou essa sua experiência multicultural em texto. “Sob o Sol da Toscana” descreve justamente os desafios de se comprar uma casa no exterior, a reforma da propriedade, a busca por novos ingredientes culinários, a descoberta de receitas italianas, a beleza natural das cidadezinhas da Toscana, os novos amigos feitos na Itália, os encontros familiares no novo lar, os passeios realizados pela região e as alegrias e os dissabores do novo estilo de vida. O relato se estende do Verão de 1990, quando Bramasole (esse é o nome da propriedade!) foi adquirida, até o Verão de 1995, quando Bramasole já havia se tornado o lar que sua dona tanto ansiava em ter.
O sucesso de “Sob o Sol da Toscana” foi tamanho que ele permaneceu por mais de dois anos e meio na lista dos livros mais vendidos do New York Times. Em 1997, ele foi eleito a obra não ficcional do ano pelo jornal nova-iorquino. Quem tem mais de 40 anos na certa já ouviu falar desse título. O relato de Frances Mayes foi traduzido para mais de 50 idiomas e rendeu milhões de unidades nos quatro cantos do planeta. Empolgado com o sucesso editorial de Mayes, o diretor Audrey Wells levou para as telonas essa história. Entre 2003 e 2004, estreava nos cinemas internacionais a versão cinematográfica de “Sob o Sol da Toscana” (Under The Tuscan Sun: 2003). O longa-metragem foi protagonizado por Kate Walsh, Lindsay Duncan e Raoul Bova. É importante dizer que o filme é diferente do livro. Por exemplo: enquanto na versão literária Frances Mayes já viajou casada para a Itália (não oficialmente, mas morava junto com o novo companheiro – para mim isso é estar casada), na versão audiovisual ela conhece em terras italianas seu novo amor. Coisas de Hollywood, né?
A partir da excelente recepção do público, “Sob o Sol da Toscana” ganhou, nos anos seguintes, derivações em que a autora continuou detalhando suas experiências em terras europeias. Mayes lançou “Quatro Mulheres Sob o Sol da Toscana” (Rocco), “Bella Toscana – A Doce Vida na Itália” (L&PM Pocket), “Todos os Dias na Toscana – As Quatro Estações de uma Vida Italiana” (Rocco), “Bringing Tuscany Home: Sensuous Style from the Heart of Italy (sem tradução para o português) e “The Tuscan Sun Cookbook: Recipes from My Italian Kitchen” (também sem lançamento no Brasil). Coisas do mercado editorial, né?
Nascida no estado norte-americano da Geórgia, em 1940, Frances Mayes se mudou já adulta para São Francisco, onde fez mestrado em Escrita Criativa. Na mesma universidade californiana em que se formou, trabalhou por muitos anos como professora. Ela foi também coordenadora do curso de Redação Criativa e diretora do Centro de Poesia nessa instituição. Antes do sucesso de “Sob o Sol da Toscana”, Frances publicou vários livros de poesia entre 1977 e 1995, mas nenhum obteve grande repercussão de público ou de crítica.
Depois da separação do primeiro casamento no final dos anos 1980 e com uma filha já crescida (Ashley, que morava em Nova York), a escritora se casou pela segunda vez. O novo marido era Edward Kleinschmidt Mayes, também poeta e professor da Universidade de São Francisco. Após uma viagem de férias pela Europa em 1989, o casal decidiu viver parte do ano na Itália. Afinal, eles tinham três meses de férias na universidade. Para isso, rasparam as economias da vida inteira e compraram Bramasole, a tal propriedade conforme narrado em “Sob o Sol da Toscana”.
Atualmente, Frances Mayes tem 81 anos e já deixou as aulas na Universidade de São Francisco há um bom tempinho. Ela se dedica agora apenas à literatura. Sua última publicação saiu no ano passado nos Estados Unidos. Trata-se de “Always Italy” (ainda sem edição em português), obra escrita em conjunto com Ondine Cohane. Para quem tem curiosidade, Frances continua vivendo na famosa casa na Itália (que a consagrou como escritora) ao lado de Ed (como Edward ficou mais conhecido pelos leitores da esposa). O casal continua passando parte do ano na Carolina do Norte e parte na Toscana. Nada mal, hein?
“Sob o Sol da Toscana” possui 304 páginas. O livro tem uma introdução e 18 capítulos. Levei cerca de dez horas, nesse meio de semana, para percorrer seu conteúdo integralmente. Precisei de duas noites para isso – terça e quarta-feira. Praticamente li metade em um dia/noite e a outra metade no(a) dia/noite seguinte. A obra que tenho em mãos é a de agosto de 2008. Acho que essa é a edição mais recente que foi lançada no Brasil. Ela ganhou as livrarias nacionais pelo selo da L&PM Editores, marca da Editora Rocco. Há uma outra edição, mais antiga, de abril de 1999. Nesse caso, a publicação foi a primeira em português, saiu pela própria Rocco e tem 324 páginas (o conteúdo é o mesmo; essa versão tem um pouco mais de páginas por causa do projeto gráfico). Nas duas edições brasileiras, a tradutora foi a mesma: Waldéa Barcellos.
Na introdução de “Sob o Sol da Toscana”, Frances Mayes explica o caráter de memória do seu texto. Ela também detalha como surgiu a ideia de comprar Bramasole e o que a levou a tomar a decisão de viver uma parte do ano nos Estados Unidos e outra parte na Europa. Nos 18 capítulos seguintes, a autora relata passo a passo os desafios encontrados em terras italianas. Informalmente, a obra está dividida em nove partes: (1) escolha da casa e negociação; (2) reforma/revitalização do jardim e da terra ao redor da residência – plantação de flores, batatas, parreiras e oliveiras; (3) interesse pelos ingredientes e pela culinária local; (4) formação de novas amizades e integração à sociedade cortonense; (5) reforma/revitalizações da casa em si; (6) descrição de receitas de pratos tipicamente italianos; (7) panorama da cidade de Cortona e da região da Toscana; (8) colheita das azeitonas e produção do azeite próprio; e (9) recordação da infância e da juventude da autora nos Estados Unidos. Usei o termo “informalmente” no começo da frase anterior porque essa divisão é mais conceitual do que prática (os temas se embaralham ao longo dos capítulos).
Admito que gostei muito da leitura de “Sob o Sol da Toscana”. A primeira questão que chamou minha atenção foi a fluidez do texto de Frances Mayes. Ela escreve maravilhosamente bem. Se pensarmos bem, não é fácil produzir uma narrativa sem um conflito aparente (algo que pode acontecer nas tramas não ficcionais) e que trata de questões aparentemente banais (a aquisição do imóvel, a reforma da casa, o dia a dia doméstico, os perrengues com os pedreiros, a produção de receitas caseiras, os passeios turísticos, os encontros familiares etc.). E Frances Mayes faz isso muitíssimo bem (pelo menos na maior parte do tempo).
Nota-se que a norte-americana tem total domínio da técnica da escrita e que escreve com genuína paixão. Sua empolgação pelas descobertas, desafios e prazeres da nova rotina na Itália é contagiante. A união de técnica refinada com passionalidade na descrição é o que dá um colorido especial a “Sob o Sol da Toscana”. Seu texto é muito atrativo e gostoso, principalmente na primeira metade, o que torna a leitura do livro rápida e prazerosa. Essa obra é daquele tipo que você começa a ler e em um piscar de olhos já terminou (parece que tem bem menos do que 300 páginas).
É interessante notar as diferenças culturais (Estados Unidos versus Europa) e geracionais (realidade nos anos 1990 versus realidade atual) presentes no conteúdo dessa publicação. Os choques culturais e temporais em “Sob o Sol da Toscana” são incontáveis e praticamente surgem página a página. Chega a ser engraçado (tragicómico) ver o desespero da norte-americana com o jeito displicente dos pedreiros, com a burocracia, com a dinâmica nas feiras de rua, com a maluquice do trânsito e com a quantidade de feriados católicos na Itália (algo que não é muito diferente no Brasil).
Ao mesmo tempo, chega a ser kafkiana a experiência de negociar, comprar e empreender no exterior em plena década de 1990. Vale lembrar que não havia comunicação, sistema bancário nem meio de informação tão desenvolvidos como temos atualmente. Uma simples ligação telefônica para o outro lado do Oceano Atlântico, uma transação bancária internacional ou a solicitação de uma folha de cheque (cheque!) em um banco italiano eram atividades que demandavam paciência, força de vontade, dinheiro e sorte.
Ainda pela perspectiva cultural, fiquei intrigado com a citação do problema da imigração na Europa e com a dificuldade da aceitação dos estrangeiros pelos habitantes do Velho Continente. Esse tema é extremamente contemporâneo, mas surge também em um texto não ficcional do início dos anos 1990. Ou seja, essa polêmica que parece tão atual é algo que vem se arrastando há algumas décadas. “Em Sob o Sol da Toscana”, Frances Mayes mostra o quanto os italianos estavam, há trinta anos, incomodados com os poloneses e os demais cidadãos do Leste europeu que se mudavam para as terras mediterrâneas.
Ainda falando em citações, a intertextualidade literária é outra questão que precisa ser elogiada no texto de Mayes. Como professora de literatura, escritora, poeta e leitora inveterada, ela faz referência em seu texto a vários autores e obras, principalmente os clássicos. Percebe-se que esse expediente é algo profundamente natural – faz parte do pensamento e do cotidiano de Frances Mayes. Quem gosta de literatura, na certa se identificará com as comparações e as analogias feitas pela norte-americana em seu relato.
A única questão negativa de “Sob o Sol da Toscana” é que na segunda metade do livro (nove capítulos finais) a narrativa perde força. Uma vez passado os maiores desafios para a compra e a reforma da casa italiana, o texto de Mayes se torna meio repetitivo e um tanto chatinho. Prova disso é que ao invés de falar da propriedade em si e das melhorias promovidas na residência (o conflito que deu origem ao relato não ficcional!), a escritora passa a descrever os encontros familiares, as viagens pela Itália e as lembranças da infância e juventude nos Estados Unidos. Curiosamente, mesmo com a perda de força, a narrativa ainda assim continua charmosa e convidativa. O que ajuda em muito nisso é a excelente ambientação. A Toscana é realmente um cenário perfeito para um livro.
Outra questão que precisa ser debatida é o quão datado é esse título. Aos olhos dos leitores contemporâneos pode parecer estranho a descrição da rotina doméstica, dos cenários, das situações familiares, das viagens, da culinária, dos perrengues com os pedreiros e do mergulho na cultura italiana. Contudo, é preciso lembrar que “Sob o Sol da Toscana” é uma obra produzida entre 1990 e 1995 e lançada em 1996. Naquela época, não existia Internet (não com a pegada comercial que temos atualmente) e a televisão a cabo não era tão desenvolvida em boa parte do mundo (no Brasil, por exemplo, era artigo raro). Ou seja, era mais difícil para as pessoas conhecerem a realidade dos lugares no outro lado do mundo. Por isso, o caráter tão descritivo do livro de Frances Meyes (e seu poder de encantar os leitores daquele período). Nos dias de hoje, na certa Frances não teria escrito uma obra como essa. Provavelmente, ela teria, se tivesse comprado agora uma casa na Itália, criado um canal no Youtube descrevendo os passos da reforma na residência, as receitas culinárias e as dicas de viagem.
Compreendido esse aspecto temporal, considerei “Sob o Sol da Toscana” uma obra exemplar. É verdade que ele não foi o primeiro do gênero. “Um Ano na Provence” (Sextante), best-seller de Peter Mayle, foi lançado em 1989 e tem a mesma proposta do livro de Frances Mayes (narra a mudança do autor britânico para a França). Se recuarmos um pouco mais no tempo, iremos nos lembrar de M. F. K. Fischer e seu emblemático “Um Alfabeto para Gourmets” (Companhia das Letras), relato não ficcional da escritora norte-americana apaixonada pela culinária. Portanto, não é errado enxergarmos “Sob o Sol da Toscana” como uma junção de “Um Ano na Provence” e “Um Alfabeto para Gourmets”. Ao mesmo tempo, podemos encarar o recente “Comer, Rezar e Amar”, da excelente Elisabeth Gilbert, como um filhote direto de “Sob o Sol da Toscana”.
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