Em cartaz desde janeiro no Teatro Multitabaris COMAFI, em Buenos Aires, a nova produção de Made in Lanús, espetáculo teatral criado há quase 40 anos, é dirigido por Luis Brandoni e continua mais atual do que nunca.
Falemos hoje de arte cênica no Bonas Histórias. E saibam, senhoras e senhores, que não vamos comentar qualquer produção da dramaturgia. O foco deste novo post da coluna Teatro é um clássico argentino e uma das melhores peças que vi nos últimos anos. Estou falando de “Made in Lanús”, a mais famosa criação de Nelly Fernández Tiscornia, uma das principais dramaturgas latino-americanas. Lançada em 1986, poucos anos depois de a Ditadura Militar argentina caducar, essa tragicomédia retrata com raro brilhantismo as amarguras de uma família dividida pela perseguição política e pelas constantes crises econômicas. Para quem foge para o exterior, a saudade e o saudosismo da terra natal parecem não terminar nunca. E para quem aceita ficar, a riqueza e o progresso do primeiro mundo soam tentadores.
O mais legal é que a nova produção de “Made in Lanús”, em cartaz desde janeiro no Teatro Multitabaris COMAFI, no centro de Buenos Aires, é dirigida por Luis Brandoni. Se você ainda não ligou o nome ao artista, Brandoni é o ator que interpreta o divertidíssimo crítico gastronômico Manuel, protagonista de “Nada” (2023), seriado de televisão que é um dos mais assistidos da Star+. Curiosamente, o agora diretor integrou o elenco do espetáculo original de Tiscornia, que se tornou um enorme sucesso de crítica e de público. Como consequência, a história melancólica e ácida ambientada no subúrbio bonaerense foi levada às telas de cinema já no ano seguinte com o nome “Made in Argentina” (1987). Estava criada uma trama emocionante que marcaria várias gerações de argentinos.
Assim, “Made in Lanús” vem sendo encenado periodicamente nos palcos dos teatros de Buenos Aires, o que o fez ser incorporado à programação cênica da cidade nos últimos 38 anos e o transformou em uma forte representação cultural dos dramas argentinos. Nessa tragicomédia com generosas pitadas de denúncia política, crítica de costumes e humor autodepreciativo (é, portanto, uma produção artístico-cultural com a cara da mais pura Argentina!), assistimos ao emocionante reencontro de El Negro e Mabel, um casal de irmãos nascido e criado em Lanús (daí o nome da peça!) depois de uma década de distanciamento.
Vivendo nos Estados Unidos, Mabel regressa à terra natal rica e aparentemente realizada ao lado do marido, Osvaldo, e das filhas. Eles vêm para rever os parentes e os amigos que permaneceram morando na cidade pobre da região metropolitana da Gran Buenos Aires. O principal programa da viagem é participar de um casamento de um familiar. Contudo, o evento mais marcante acaba sendo a visita ao lar de El Negro, um mecânico simples e alegre que se equilibra para dar uma vida minimamente digna à esposa La Yoli e à filha. O choque de realidade entre o casal bem-sucedido de imigrantes argentinos (Mabel-Osvaldo) e o casal pobre de argentinos que seguiu no país (El Negro-La Yoli) é o que compõe o mote desta trama e o que permite as surpresas do enredo.
Conferi “Made in Lanús” na última sexta-feira à noite no Teatro Multitabaris COMAFI. E até agora estou besta com a qualidade do texto de Nelly Fernández Tiscornia (que se mantém atualíssimo, mesmo quase quatro décadas depois de sua criação) e com a beleza da nova montagem de Luis Brandoni (que não é apenas um ótimo ator, mas também um diretor de enorme sensibilidade). Isso sem falar, por supuesto, da excelência dos atores no palco: Alberto Ajaka, Cecilia Dopazo, Esteban Meloni e Malena Solda. Eles foram tão bem, mas tão bem que, na sessão que estive presente, a peça foi interrompida algumas vezes por palmas da plateia à atuação do quarteto. Incrível!
Além de ter ficado embasbacado com a experiência dentro da sala do teatro, confesso que fiquei ainda mais encantado ao constatar o vigor e o primor do panorama teatral portenho, sem dúvida nenhuma o mais dinâmico do nosso continente. Não por acaso, essa foi a maior surpresa do cenário artístico-cultural de Buenos Aires que tive até agora. Antes de me mudar em definitivo para a capital argentina no ano passado, já conhecia obviamente a força do cinema local, como comprovam os posts de “Cidadão Ilustre” (El Ciudadano Ilustre: 2016), “A Odisseia dos Tontos” (La Odisea de Los Giles: 2019) e “Minha Obra-Prima” (Mi Obra Maestra: 2018). Também já era fã da música – Kevin Johansen é prova cabal disso! – e da literatura – Julio Cortázar, Selva Almada, de “Não é um Rio” (Todavia), e Pedro Mairal, de “A Uruguaia” (Todavia), estão aí para validar minhas palavras – do lado mais tumultuado do Rio da Prata. Contudo, não fazia ideia de como era o teatro daqui.
Foi caminhando à noite pela Avenida Corrientes (Gardel já cantava: “La ciudad dormía majestuosamente/ En la quietud de la noche/ Como una agonía, como un reproche/ Un alma en pena te cantaba así/ Corrientes, calle nocturna/ De milongas, calavera y gente bien/ Y en tu calle de vicios y de orgia/ Maté mis alegrías, mi único Edén”) que fiquei hipnotizado pelas luzes, pela movimentação do público e pelo charme dos teatros daquele pedacinho de Buenos Aires.
Inclusive, muita gente considera a Av. Corrientes a Broadway argentina. No começo, achava essa associação um tanto exagerada. Para ser sincero, considerava-a até mesmo estapafúrdia. Onde já se viu uma Broadway em plena CABA (Ciudad Autónoma de Buenos Aires)?!! Certamente, seria mais um exagero da típica megalomania e arrogância portenha. Talvez quem tenha inventado essa lenda teatral urbana seja o mesmíssimo chamuyero que propagou que a “9 de Julio es la avenida mas ancha del mundo”. Porém, aos poucos, comecei a suspeitar que talvez no caso da Corrientes quem estivesse equivocado fosse eu (em relação à 9 de Julio, ainda estou convicto que se trata de um engodo).
Quanto mais visitava a região, mais intrigado ficava com a enorme quantidade de teatros e, o que era mais incrível, de pessoas os frequentando. Na visita ao Cine Lorca numa quarta-feira fria, na saída tardia do curso de espanhol na UBA do Centrão numa quinta-feira quente, na passadinha à Librería Hernández na sexta-feira chuvosa, na comilança no El Palacio de la Papa Frita no sábado animado ou no regresso do Centro Cultural Kirchner aos domingos, fui constatando o quão gigantesco era o mercado cênico portenho.
Até o dia em que falei para mim mesmo: quero ir a uma peça num teatro da Corrientes para conhecer direito essa parada. E qual foi minha surpresa ao me deparar com mais de 200 salas de teatro só naquele pedacinho da cidade. Você leu direito o que eu escrevi neste post da coluna Teatro, querido(a) leitor(a). Eu disse/escrevi que há duas centenas de palcos em uma única avenida!!! Só no trecho que costumo frequentar, entre a Av. Callao e a Av. 9 de Julio (ou, dependendo do ponto de vista, entre o La Opera Bar e Restaurante e o Obelisco), eu contei (em uma caminhada despretensiosa, tá?) 10 teatros. Nessa conta, obviamente, excluí as casas artísticas que ficavam nas ruas laterais. Só valeram os pontos comerciais que tinham a entrada/saída diretamente na Corrientes. Como muitos deles são complexos teatrais enormes, com duas, três ou quatro salas, multiplique você mesmo o número de palcos disponíveis ali. É, para dizer o mínimo, algo impressionante!
Diante de tanta variedade, escolher uma produção do circuito comercial para ver exigiu uma pesquisa mais demorada do que supunha. Depois de ler algumas matérias da crítica teatral local, selecionei quatro alvos na Broadway, digo na Corrientes: o moderno e divertido “Escape Room”, no Teatro Multitabaris COMAFI; a comédia romântica com cheirinho de clichê “La Novia de Mi Mejor Amigo”, no Teatro Multiescena; o clássico francês “Cyrano”, no Teatro San Martín; e, como não poderia ser diferente, a comédia dramática (que na verdade, fui descobrir depois ser mais um drama cômico) “Made in Lanús”, no Teatro Multitabaris COMAFI. Voltei-me à última das opções porque ela me pareceu a mais segura. Por se tratar de um clássico teatral argentino com um time de atores de primeira linha e com um diretor famoso, o investimento de 18 mil pesos para a aquisição da entrada (85 reais no último câmbio que fiz) me pareceu menos arriscado.
Foi aí que tive o segundo grande susto da minha iniciação ao universo cênico de Buenos Aires. As sessões de “Made in Lanús” (e de boa parte das grandes produções da cidade) vão da quarta-feira ao domingo. De quarta à sexta é só uma apresentação por noite (às 20h30). Ao domingo também é uma exibição solo (às 20h). E ao sábado são duas apresentações (às 20h e às 22h). Vamos ser sinceros: nem mesmo São Paulo, que sempre se apresentou como a cidade que nunca dorme (será?!) e que dizia ter uma programação teatral dinâmica (o quê?!), passa perto dessa pujança de programação.
Assim, pensei com os meus ingênuos botões: “com tantas opções, será facilzinho adquirir meu ingresso”. Mal sabia eu que Compadre Washington iria surgir por detrás do meu notebook e gritar: sabe de nada inocente!!! Para a semana seguinte à minha pesquisa, havia pouquíssimos ingressos disponíveis. Por mais gigantesca que fosse a sala e mesmo com as várias datas disponíveis, ainda assim restavam à venda apenas 3 ou 4 ingressos por espetáculo. E olhando as entradas disponíveis na plataforma de compra digital do Teatro Multitabaris COMAFI, foi fácil descobrir o motivo para as sobras. Só tinham restado lugares solitários na sala, sem assento livre ao lado. Como a maioria do público vai acompanhada ao teatro e, obviamente, quer ficar perto das pessoas conhecidas, as poltronas isoladas seguiram sendo ignoradas pelos novos compradores.
Ou seja, a demanda por esse tipo de programa cultural é absurda em Buenos Aires. Juro que às vezes tenho dificuldade para entender que vivo em um país que está empobrecendo rapidamente e que passa por uma das mais graves crises econômicas da sua história. Se os portenhos lotam os teatros (com ingressos a quase 100 reais!) nessa situação, o que fariam se a economia estivesse bombando e se não houvesse nenhuma dificuldade financeira, hein? É ou não é surreal?!
Ciente dessa particularidade local, se você quiser ir ao teatro com alguém em CABA, é bom se programar com no mínimo duas semanas de antecedência. Do contrário, vai se frustrar ou terá que se sentar longe do mozão. Como sou um crítico cultural (acostumado às visitas artísticas sem ninguém ao lado) e estou solteiro desde o século XVII (favor não comentar dessa vez, Gabi!), não tive problemas de conseguir meu lugarzinho no Teatro Multitabaris COMAFI.
Nelly Fernández Tiscornia lançou “Made in Lanús” quase que simultaneamente nas livrarias portenhas e no circuito teatral de Buenos Aires. O livro saiu pela Cántaro Editores, que o continua publicando até hoje. Achei uma edição de 2014 dessa obra por aproximadamente 7 mil pesos (mais ou menos 33 reais) num sebo da Corrientes. Trata-se de uma pechincha considerando os preços estratosféricos dos livros na Argentina, que facilmente ultrapassam o valor de 120 reais. Não me pergunte o porquê isso acontece.
Respondo mais ou menos como Chicó: não sei; só sei que é assim!
A primeira versão da peça foi aos palcos com Leonor Manso, Patricio Contreras, Luis Brandoni (olha ele aí, gente!) e Martha Bianchi. Curiosamente, que vê Brandoni em ação em “Nada” pensa que ele interpretou El Negro em “Made in Lanús”. Pelo menos foi essa a suposição que fiz. Afinal, a personagem masculina do popular seriado de TV tem o lado cômico muito mais aflorado e representa a essência do argentino comum (como o irmão de Mabel). Porém, Luis Brandoni viveu Osvaldo tanto nos palcos quanto na telona. Na telona? Sim. O quarteto que encenou no teatro essa história de Tiscornia foi chamado para interpretar os mesmos papéis no cinema.
“Made in Argentina” foi dirigido e roteirizado por Juan José Jusid. Nelly Fernández Tiscornia participou ativamente da confecção do roteiro do longa-metragem ao lado de Jusid. Para quem possa estranhar, a dramaturga nascida nos Estados Unidos e naturalizada argentina também atuou muitos anos como escritora e roteirista de televisão. Essa produção cinematográfica enfileirou vários prêmios na América do Sul, na América Central, na América do Norte e na Europa. Hoje, é vista como um clássico do cinema argentino.
O que dá para dizermos em uma rápida comparação entre “Made in Lanús” e “Made in Argentina”? Enquanto o livro e a peça não apresentam qualquer distinção em suas histórias, o longa tem sensíveis diferenças na trama. Além de ampliar a quantidade de personagens (no livro/peça são apenas quatro figuras em cena/páginas e no filme são mais de 20, com vários coadjuvantes), o enredo cinematográfico mudou a essência da narrativa. Sei que não estamos na coluna Cinema e sim na coluna Teatro. Mesmo assim, acho que seja legal apontar algumas distinções entre as diferentes plataformas artísticas.
Em “Made in Argentina”, o casal que vive nos Estados Unidos mora em Nova York e não na Filadélfia. As filhas das personagens principais ganharam em dimensão e participação, mesmo que mínima (as adolescentes seguem sendo coadjuvantes). Outra diferença é a chegada da carta informando da vinda de Mabel-Osvaldo ao lar de El Negro-La Yoli. Se na peça/livro cabe ao mecânico avisar a esposa (aos 49 minutos do segundo tempo) da chegada dos parentes, no filme é a dona de casa que assista à aproximação dos visitantes pela oficina mecânica do marido.
Também fiquei com o sentimento que Mabel perdeu um pouco (perceba o uso do termo “um pouco” na minha frase!) da prepotência e do orgulho no longa-metragem (justamente suas características mais marcantes). A delimitação temporal do drama também é completamente outro na tela. No palco e no livro, o encontro dos casais dura apenas algumas horas. Já na versão audiovisual, a história é distribuída ao longo de vários dias e, quizá, semanas.
Contudo, duas alterações do longa-metragem eu não gostei NADINHA, NADINHA. A primeira foi o deslocamento do protagonismo da tragicomédia. Se em “Made in Lanús” fiquei com a sensação de que os verdadeiros protagonistas eram El Negro-La Yoli (os donos da casa), em “Made in Argentina” tive a sensação de que o foco maior da produção recaiu sobre Mabel-Osvaldo (os visitantes). Ai, ai, ai. Outro aspecto delicadíssimo é que Lanús sumiu completamente do filme. A história é agora ambientada em Buenos Aires. Por isso, a alteração do nome do longa. Afinal, o título “Made in Lanús” perde totalmente o sentido quando a cidade do subúrbio desaparece do enredo.
Confesso que detestei essas duas mudanças. Vale a pena dizer que eu conheci muitíssimo bem Lanús na época que vivi pela primeira vez em Buenos Aires. E foi justamente a vontade de rememorar esse período que me levou a assistir à peça de teatro (e depois ao filme). Entre 2004 e 2005, eu era trainee comercial da Coca-Cola e fiz meu treinamento justamente em CABA. Como estava me preparando para ser executivo de vendas (cargo que ocuparia mais tarde no Brasil), passava o dia visitando os comércios portenhos e bonaerenses junto com os vendedores argentinos. E curiosamente, a região em que atuei mais tempo na Coca-Cola Argentina foi a que englobava Lanús, Castelar, Morón, San Justo, Isidro Casanova, Rafael Castillo e Ciudad Evita. Para os desavisados da geografia local, é suburbão da Grande Buenos Aires, área que meus colegas de companhia não se cansavam de dizer que era perigoso e que exigia atenção redobrada.
Com a irresponsabilidade dos meus 20 e pouquinhos anos e tendo vindo do bairro de Pirituba em São Paulo, me sentia à vontade em Lanús e nos arredores. Nunca tive nenhum problema para passar o dia perambulando por suas ruas e visitando seu comércio. E nesse bate-pé conheci muita gente boa e trabalhadora, exatamente como o casal El Negro e La Yoli, os protagonistas da peça de Nelly Fernández Tiscornia. Agora você entendeu o porquê escolhi essa produção teatral para assistir, né? E o motivo por ter ficado tão puto com a retirada da cidade do longa-metragem!
Os argentinos que me desculpem, mas não gostei de “Made in Argentina”. Achei um filme com uma narrativa muito corrida, com pouca profundidade dramática e com falta de humor. Por mais que algumas cenas cômicas sejam idênticas as da peça/livro, não consegui rir ao vê-las na tela. Para quem ficou curioso, assisti à produção de Juan José Jusid no último sábado, justamente um dia depois de ter conferido a peça no Teatro Multitabaris COMAFI.
Para não haver qualquer confusão de entendimento, vamos discutir agora o enredo da peça de teatro (e não o enredo do filme). “Made in Lanús” se passa em novembro de 1985. Nesse momento histórico, a Argentina já tinha voltado a ser uma democracia. Inclusive, eleições livres para presidente foram realizadas em setembro de 1983. Ou seja, a censura, a repressão e a violência dos militares que se encastelaram no poder por muito tempo se tornaram apenas lembranças amargas da população. Como consequência, muitos dissidentes políticos que foram obrigados a deixar o país começavam a voltar. Alguns apenas para visitar os amigos e parentes e outros para retomar a antiga rotina na terra natal.
É esse o caso de Mabel (interpretada por Cecilia Dopazo) e Osvaldo (Estaban Meloni). Eles foram obrigados a deixar a Argentina em 1975 por perseguição dos milicos. Para não serem torturados ou mortos, fugiram para os Estados Unidos com as duas filhas pequenas e reconstruíram suas vidas na Filadélfia. Lá se tornaram ricos e passaram a ostentar um padrão de vida extremamente confortável. A prova maior de que estão totalmente integrados ao novo país é que as filhas, agora adolescentes, mal falam espanhol e absorveram todos os hábitos dos norte-americanos.
Depois de dez anos sem pisar na América do Sul, Mabel e Osvaldo regressam para participar do casamento de uns parentes. Como estariam as coisas em Lanús, cidade humilde em que o casal nasceu, cresceu, se conheceu e se casou? Ali ainda vive a maioria dos familiares e dos conhecidos do casal, inclusive El Negro (Alberto Ajaka) e La Yoli (Malena Solda). El Negro é irmão de Mabel e um dos melhores amigos de Osvaldo na juventude. Ele é um mecânico simples, alegre e pobre que está casado com La Yoli há muitos anos. Os dois tem uma filha de 15 anos.
Diferentemente dos parentes que vivem no exterior, El Negro e La Yoli precisam se rebolar para fechar as contas do mês. Ele trabalha bastante em sua mecânica e ela faz costura para fora. Mesmo com as dificuldades financeiras, nenhum dos dois se recusa a ajudar os parentes e os amigos que precisam de grana. El Negro conserta os veículos dos clientes mesmo quando eles não têm recursos para pagar. E La Yoli contribuiu enviando dinheiro quando Mabel e Osvaldo se mudaram para os Estados Unidos e passaram aperto. Apesar das carências materiais, o casal de Lanús é feliz e se diverte na sua cidade natal.
A peça se passa em uma única noite, durante a visita “inesperada” de Mabel e Osvaldo ao lar de El Negro e La Yoli. Como você percebeu, a palavra “inesperada” vem entre aspas. O mecânico simplesmente se esqueceu de avisar a esposa de ter combinado o encontro da irmã e do cunhado em sua residência. Por isso, a dona de casa é pega de surpresa com as visitas “repentinas”. Mesmo com o contratempo, o clima é de amizade e de alegria. Os dois casais se divertem no quintal da humilde casa do subúrbio bonaerense. Eles relembram passagens antigas e relatam como são suas rotinas atualmente. Enquanto tomam mate e comem friambres, comparam o quão distintas são suas realidades.
À medida que a noite avança, o encontro que começara festivo e descontraído vai se tornando cada vez mais tenso. As diferenças entre os dois casais e até mesmo dentro dos próprios matrimônios vem à tona, trazendo segredos do passado e sentimentos aparentemente reprimidos por muito tempo. E é aí que as surpresas (diria muitas surpresas!) aparecem. Se temos uma peça leve e divertida no início, do meio para o final ela se transforma em um denso drama psicológico. O que será que aconteceu para despertar uma tormenta sentimental nos protagonistas da peça, hein?! Esse é o mistério que cativa as plateias dos teatros argentinos até hoje.
“Made in Lanús” tem 90 minutos de duração. Já que falei de sua autora, do diretor e do elenco, me sinto na obrigação de descrever também sua equipe técnica. A nova versão desse clássico da dramaturgia sul-americana é formada por: Nachi Bredeston, Juan Manuel Caballé, Ricardo Gallo e José Luis Gallo (produção geral), Gabriela Barros (produção executiva), Nicolás Bianchi (assistente de direção), Alejandra Robotti, Luciano Huentecura e Paula Molina (figurino), Lula Rojo (cenografia e montagem), Miguel Cuartas (iluminação) e Brian Savino (operação de luz e som).
O primeiro elemento que chama a atenção do público é a excelente cenografia de “Made in Lanús”. Essa questão fica evidente tão logo chegamos à sala de teatro. Como não há cortina separando a plateia do palco, podemos ver os detalhes cenográfico assim que nos sentamos nas poltronas. A recriação dos anos 1980 é impecável. Porém, o que mais gostei foi o que chamo de “cenografia viva”. A sensação que temos ao assistir à peça é que tudo funciona no palco: a máquina de lavar roupa, o fogão, a máquina de costura, a geladeira, o rádio do vizinho, as tomadas... Ou seja, não se trata apenas de uma recriação cênica, como algumas produções teatrais gostam de fazer, mas sim de uma legítima reconstituição cenográfica. Achei incrível esse recurso!
O sentimento de estarmos efetivamente em um quintal de uma casa de classe média baixa é potencializado pela sonorização impecável da peça. O barulho da fritura na cozinha, o passarinho na gaiola cantando, as máquinas de lavar e de costurar funcionando, o barulho do rádio que parece vir de um dos lados onde está o vizinho barulhento e até a explosão de aparelhos elétricos (abraço, Paulo e Jéssica!) são extremamente verossímeis. No caso da ave engaiolada, acho que ela é o único elemento real em cena. O restante parece ter sido recriado de maneira extremamente convincente. Para se ter uma ideia do que estou dizendo, toda vez que La Yoli ia para o fogão, ouvíamos o chiado da fritura como se fosse de verdade. Aí a moça do meu lado perguntava curiosa para a amiga: “Es de verdad? Ella está cocinando?!”.
Já que estamos falando de sonorização, a trilha musical de “Made in Lanús” é impecável e totalmente pertinente ao enredo. Temos desde clássicos do pop-rock norte-americano (“Strangers in the Night” e “Bikini a Lunares Amarillo”) até tangos portenhos tradicionais. Isso sem contar as canções das torcidas futebolísticas e as músicas de protesto político que ganham um colorido todo especial na voz de El Negro.
O texto de Nelly Fernández Tiscornia também é brilhante. Acho que se fosse falar tudo o que achei dos diálogos desta peça, ficaria um dia inteiro escrevendo e me pareceria pouco. A riqueza de seu conteúdo está na mescla bem azeitada de referências históricas (a recém-terminada Ditadura e a interminável crise econômica, por exemplo), de aspectos do dia a dia argentino (da ida ao kiosco e da passadinha à carnicería até a reunião com os amigos à base de mate e os asados em família aos finais de semana), de fortes componentes culturais (futebol, alimentação, vestimenta e música) e das hilariantes gírias portenhas (que obviamente exigem um pouco mais de repertório linguístico da plateia gringa).
Por falar nisso, para se entender o que está se passando no palco é preciso de um mínimo de bagagem histórico-cultural da Argentina. Acredito que um brasileiro com conhecimento mediano do passado de la nación hermana conseguirá acompanhar a trama sem nenhum problema. Nesse sentido, talvez o maior obstáculo, já que estamos falando de brasileiros no teatro argentino, será a compreensão do espanhol rio-platense. Se você acredita que com o seu portunhol de alguns dias em Buenos Aires será suficiente para compreender o drama encenado passionalmente pelos atores no palco, algo que me diz que você poderá ficar boiando em várias partes. Contudo, para quem já está há algum tempo em CABA e consegue entender o peculiar jeito dos portenhos falarem, não haverá qualquer dificuldade.
O conflito de “Made in Lanús” gira em torno da idealização da vida do outro, algo que no Brasil chamamos popularmente de “ficar reparando na grama do vizinho”. O casal que permanece em Lanús olha com admiração e certa inveja aos “argentinos de luxo”, aqueles que se mudaram para os Estados Unidos. Só nos países do primeiro mundo é que as pessoas podem ter rotinas de conforto, bem-estar e riqueza, pensam. Ao mesmo tempo, os imigrantes que estão há uma década longe da terra natal olham com saudosismo e alguma admiração o dia a dia dos familiares e dos amigos que ficaram na América do Sul. Eles parecem mais alegres, integrados à sociedade e plenamente satisfeitos com a vida, pensam os “gringos”. É essa a dualidade que faz a roda da peça girar. Afinal, quem é realmente feliz nessa história, hein?!
Ainda falando do texto da peça, reparei que ele foi levemente modificado. Essa sensação se intensificou quando El Negro critica os movimentos fascistas, a violência estatal e as crises econômicas, elementos tipicamente argentinos, mas que ganharam intensidade no último ano com a ascensão da extrema-direita. A impressão que tive é que as personagens estavam falando da realidade do seu povo em 2024 e não apenas das angústias de 1985. Achei incrível essa intertextualidade temporal. Ou o texto de Nelly Fernández Tiscornia é tão rico e sagaz que permite essa releitura contemporânea (algo que não duvido) ou Luis Brandoni soube mexer sutilmente nas falas do quarteto de protagonistas para gerar esse efeito interpretativo (outro aspecto que também não me surpreenderia). Seja qual for o segredo por trás da mágica, ela funcionou maravilhosamente bem.
O ritmo da peça é impecável. Ficamos uma hora e meia no teatro e parece que se passaram somente 40 minutos. O que auxilia nessa velocidade da trama é a sua estrutura dramática. Ela está muito bem dividida e apresenta diferentes facetas. A parte introdutória é constituída de um divertido bate-papo de El Negro e La Yoli. Os donos da casa estão só e expõem suas preocupações mais íntimas. Mesmo diante da dificuldade rotineira, nota-se que são felizes e companheiros. Prova disso é o tom hilariante dessa parte do texto. “Strangers in the night/ Exchanging glances/Wondering in the night/What were the chances/ We'd be sharing love/ Before the night was through”.
Quando Mabel e Osvaldo chegam à residência de Lanús, há uma mudança de contexto dramático. A pegada de tragicomédia se acentua ainda mais. É nesse momento que conhecemos as diferenças abissais de realidade dos dois casais. Por mais que o quarteto se goste bastante e nutra uma boa amizade, é evidente que existam ali questões mal resolvidas como inveja, críticas veladas e mistérios do passado. Entre a vontade de agradar os visitantes ou os anfitriões, é possível constatar a tensão e o desconforto do ambiente permeando o encontro.
Pouco a pouco, o clima vai se tornando mais e mais tenso. A explosão dramática acontece quando Mabel e El Negro revelam para os cônjuges a grande surpresa da noite. A partir daí, temos as melhores cenas de “Made in Lanús”. O lado cômico desaparece quase que completamente e temos um intenso drama psicológico capaz de enervar até mesmo as almas mais tranquilas. E essa pegada de adrenalina e de aflição irá até o final do espetáculo. Haja emoção, amigos!
Notamos a riqueza das personagens de Nelly Fernández Tiscornia justamente na fase final da peça. É curioso dizer isso, mas tive a sensação de que cada um dos integrantes do quarteto teve o seu momento de desabafo e de crise existencial. Aí notamos que eles passam longe, muito longe de serem personagens planas (caso isso tenha passado pela cabeça de alguém na plateia!). A complexidade de El Negro, La Yoli, Mabel e Osvaldo vem à tona com mais clareza na meia hora final do espetáculo, no clímax. Nesse instante, ninguém pisca no teatro e todos prendem a respiração.
Para funcionar bem, “Made in Lanús” precisa de um elenco que dê vazão à força dramática do roteiro na parte final da sessão. Sabendo disso, Luis Brandoni escolheu muito bem os atores da peça. Alberto Ajaka, Cecilia Dopazo, Esteban Meloni e Malena Solda são artistas talentosos e experientes, com ótima rodagem no teatro, na televisão e no cinema argentino. Eles não apenas seguram a bronca como dão show de interpretação. Não à toa, o espetáculo foi interrompido, como já disse, algumas vezes pelas entusiasmadas salvas de palmas que vieram da plateia.
Por falar na sessão em que compareci, tive a sorte de Brandoni estar presente no teatro. Me falaram que não é sempre que isso ocorre. Porém, sempre que pode, o diretor vai prestigiar o espetáculo. Não é preciso dizer que o público foi ao delírio quando ele subiu ao palco no final da peça.
Já que estou trazendo os pontos positivos da produção cênica, me sinto na obrigação de elogiar o Teatro Multitabaris COMAFI. Localizado na Avenida Corrientes 831, ele funciona em um edifício centenário que abrigou o Ta-Ba-Ris (daí seu nome), mítica casa de teatro do início do século passado. Pertencente ao Multiteatro, grupo considerado o maior do país e que possui outros nove complexos teatrais em Buenos Aires, o Teatro Multitabaris COMAFI tem três salas: Sala Subsuelo, Sala Planta Baja e Sala Primer Piso. “Made in Lanús” é apresentado na sala do primeiro piso, que deve comportar em torno de 250 pessoas. Achei o local ideal para a prática da arte cênica. Os assentos são confortáveis e a visão do palco é perfeita. Creio que não poderia ter escolhido um lugar melhor para iniciar minha imersão no teatro portenho.
Como toda boa crítica do Bonas Histórias, preciso também apontar o que não saiu tão bem na experiência teatral. Contudo, é difícil encontrar o que melhorar em “Made in Lanús”. Na estrutura narrativa, na direção, na atuação do elenco e na cenografia, admito que não tenho um “A” para reclamar. Esses aspectos estão perfeitos. Na sessão que estive presente na semana passada, o único componente que apresentou algumas falhas foi a operação de som. Uma música animada foi lançada no momento errado, quando o ator preparava um discurso tenso. Sabemos do equívoco porque alguns segundos depois de ter sido colocada, a canção foi retirada.
Outra questão sonora delicada foi a atuação exagerada do passarinho que estava na gaiola. Ele começou calmo a peça, quase como um coadjuvante. Contudo, quando a história atingiu o clímax, com as personagens proferindo discursos passionais e fazendo silêncios dramáticos, a ave resolveu cantar a plenos pulmões. Querendo se tornar protagonista de “Made in Lanús”, às vezes ela atrapalhou a fala dos atores, principalmente nos instantes mais calorosos. São coisas que acontecem quando a cenografia é literalmente viva.
Em relação ao Teatro Multitabaris COMAFI, é preciso dizer que ele não fica na parte mais animada e charmosa da Avenida Corrientes, aquele pedaço que gosto de frequentar entre a Avenida Callao e a Avenida 9 de Julio. Não! Ele está localizado no outro lado da Avenida 9 de Julio, mais no Centrão, entre a Calle Suipacha e Calle Esmeralda. Convenhamos que essa não é parte mais interessante de Buenos Aires para ficar batendo perna à noite. Mesmo assim, está longe de ser uma região indesejada ou perigosa.
Quanto ao funcionamento do complexo teatral, não gostei de sua dinâmica de atendimento ao público. Ele é enorme, possui três salas de considerável porte e tem amplos halls e corredores internos. Além de grande, sua dependência é bonita e charmosa. Porém, o público é obrigado a esperar o início da sessão do lado de fora do teatro, tomando chuva e passando frio. Juro que não entendi. Não seria mais lógico formar a fila de espectadores dentro do edifício?! Ai, ai, ai.
Como deu para perceber, tive que procurar “pelo em ovo” para apontar o que melhorar na experiência de ter assistido a “Made in Lanús” no Multitabaris COMAFI. De maneira geral, achei espetaculares tanto a peça quanto o complexo teatral. Acho que Buenos Aires ganhou mais um assíduo frequentador de seus teatros. Se já estava visitando semanalmente os cinemas locais e mensalmente as canchas de fútbol, agora vou colocar na programação habitual uma visitinha quinzenal aos espetáculos cênicos.
E, assim, fecham-se por ora as cortinas dos palcos portenhos. Até a próxima análise da coluna Teatro, senhoras e senhores. Confesso que já estou pensando cá com meus botões qual será a próxima peça que vou assistir na Avenida Corrientes, a Broadway portenha.
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