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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural – literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura, gastronomia, turismo etc. –, o Blog Bonas Histórias analisa de maneira profunda e completa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 44 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

Livros: O Menino que Vivia no Mundo de...Marte! – A quarta obra infantil de Cíntia Ertel

  • Foto do escritor: Ricardo Bonacorci
    Ricardo Bonacorci
  • 12 de mai.
  • 36 min de leitura

Lançado em setembro de 2024 pela EV Publicações, o romance da escritora, terapeuta e educadora brasileira que vive há anos em Luxemburgo foi traduzido para vários idiomas e apresenta uma trama sobre o bullying escolar, o vício nas telas e os equívocos na educação dos filhos.

O Menino que Vivia no Mundo de...Marte! é a quarta publicação infantil de Cíntia Ertel, escritora brasileira radicada há muitos anos na Europa

No feriado de 1º de maio (a data mais contraditória do calendário mundial, pois a maioria das pessoas insiste em NÃO trabalhar no Dia do Trabalho!), aproveitei a tarde preguiçosa (não seria justamente eu que iria trabalhar, né?) e bastante fria no pequenino apê da Zona Norte de Buenos Aires para ler um livro infantil que se revelou encantador. Estou me referindo, conforme o título e o subtítulo do post anteciparam, a “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!” (EV Publicações), a nova obra ficcional de Cíntia Ertel.


Esta publicação da escritora catarinense radicada na Europa há quase uma década e meia é a mais recente descoberta que fiz no campo da literatura brasileira contemporânea. Já que falei bastante na segunda-feira passada de “Flow” (Straume: 2024), a animação infantojuvenil da Letônia que ganhou o Oscar, nada mais natural do que permanecer no universo da molecadinha. Assim, o(a) convido a mergulhar comigo no mundo sempre fascinante e lúdico da literatura infantil. Até podemos ter migrado da coluna Cinema para a coluna Livros – Crítica Literária, senhoras e senhores, mas não perdemos a essência da temática que vem sendo debatida há uma semana. Que viva a beleza e a intensidade da infância!


Para ser sincero com quem me lê neste momento, tirei “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!” da estante da minha biblioteca doméstica na tarde mais antitrabalho de maio de um jeito beeem despretensioso. Até pensava em usá-lo como matéria-prima de alguma coluna do Bonas Histórias se ele se provasse realmente tão bom quanto me disseram. Contudo, esse não era o motivo principal de minha escolha. Em pleno feriadão, queria mesmo era me entreter com um título leve, divertido e interessante. Acredite se quiser: os críticos literários se alegram lendo literatura no tempo livre – o que embaralha um pouco a linha por vezes tênue entre trabalho e lazer. Afinal, trabalhamos com o que gostamos ou gostamos do que fazemos? Sei lá!


O que posso garantir com alguma certeza é que, depois de uma caminhada matinal de quase três horas pela Costanera de Vicente López (meu programa portenho favorito aos domingos e feriados) y un riquísimo choripan con fritas de almuerzo (meu sanduíche argentino predileto), tudo o que desejava para encerrar a primeira quinta-feira do mês era me jogar no sofá da sala e curtir boas páginas ficcionais. De preferência, embaixo de um cobertor quentinho. Enquanto os pés descansariam e o estômago processaria a refeição pra lá de calórica, minha mente viajaria em direção ao universo cativante criado por Cíntia Ertel.  


Adquiri “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!” em minha última viagem à São Paulo, em setembro de 2024. Aproveito os poucos dias que fico em meu país natal, geralmente entre 48 e 72 horas anualmente, para adquirir o máximo possível de livros (além de visitar o médico, o dentista, o Poupatempo, a justiça eleitoral e esses programas burocráticos de migrantes que não pensam em viver novamente no Brasil). Não queira imaginar o peso da minha mala no retorno para casa! Cada louco com sua mania, não é? Posso até não me lembrar de visitar a família, mas não me esqueço de bater ponto nas maiores livrarias paulistanas e selecionar as obras recém-lançadas que prometem encantar o público leitor de Norte a Sul do cálido Brasil.    


Quem me indicou essa leitura foi Eduardo Villela, meu amigo de infância e diretor-proprietário da EV Publicações. No almoço que tivemos em Pinheiros – na companhia do divertidíssimo Paulo Sousa, autor de “A Peste das Batatas” (Pomelo) e “Acinte 2020” (Publicação Independente) –, perguntei se ele sabia de alguma boa novidade que estava chegando às livrarias nacionais. Na lata, Dudu respondeu com a empolgação que lhe é característica: “O novo livro da Cíntia! Acabamos de lançá-lo e ele está incrível. Você que curte ficção certamente adorará essa história. Aposto que vai até querer fazer uma resenha dele no seu blog!”.


Senti tanta firmeza em suas palavras que comprei “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!” no dia seguinte, mesmo sabendo se tratar de um exemplar da literatura infantil. Você lê livro para criança, Ricardinho?! Eu leio TUDO, querido(a) leitor(a) imaginário(a) do Bonas Histórias que sempre conversa comigo enquanto escrevo meus textos. TUDO É TUDO MESMO! No caso, tudo de ficção. Porque minha paixão é a ficção literária. Aí vale suspense, terror, romantismo, policial, fantasia, erotismo, infantojuvenil, infantil... Se a obra tiver qualidade narrativa, eu a abraço com empolgação.

Escritora ficcional, terapeuta e educadora nascida no interior de Santa Catarina, Cíntia Ertel é autora de O Menino que Vivia no Mundo de...Marte!, livro infantil sobre o bullying escolar

Lançado em português na versão física justamente em setembro de 2024 (sua versão digital chegou um mês antes à Loja Kindle), “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!” é a quarta publicação de Cíntia Ertel. Além de ótima autora, ela parece ser uma fofura de pessoa. Admito que gosto de perguntar para os editores e os diretores das casas editoriais que tenho mais proximidade sobre o lado humano dos escritores com quem trabalham. E fico muito satisfeito em saber que por trás de ótimos profissionais também existem excelentes pessoas. Sabendo que o artista das letras é gente boa, eu ganho uma motivação extra para conhecer sua produção literária. No caso de Cíntia, os elogios que lhe foram distribuídos pareceram sinceros, além de extensos.


A especialidade da escritora catarinense é a confecção de tramas inteligentes e surpreendentes para a garotada (e, por consequência, para adultos preocupados com a educação da meninada). Se você ainda não conhece o trabalho dessa jovem autora nacional, recomendo se inteirar do que ela vem desenvolvendo nos últimos quatro anos. Suas narrativas são de excelente qualidade e merecem ser apreciadas pelo grande público tanto no Brasil quanto no exterior.


Gostei de “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!” ao ponto que sabia que não sossegaria enquanto não o analisasse de maneira profunda na coluna Livros – Crítica Literária. Tenho essa mania, senhoras e senhores. Uma vez identificado um título que mexe com minhas emoções de um jeito especial, sinto-me na obrigação de compartilhar minhas impressões com o mundo.


Por essa perspectiva, os esforços dos críticos literários se parecem muitas vezes às atividades dos garimpeiros: buscamos no meio da livraria/rio a nova obra-prima/joia que irá encantar as plateias mais exigentes e de bom gosto a milhares de quilômetros. O problema é que para cada pepita reluzente que surge diante dos nossos olhos no garimpo da literatura, foram necessários dias e dias de busca pela correnteza quase sempre decepcionante das páginas do rio ficcional.


Foi o que se passou, por exemplo, em fevereiro, março e abril. As melhores leituras que fiz nesses meses foram, respectivamente, “Nós Que Vivemos” (Minotauro), drama histórico de Ayn Rand, “1+1=2 2-1=0” (CEPE Editora), premiado romance de Fernanda Caleffi Barbetta, e “O Construtor de Pontes” (Intrínseca), saga de mistério de Markus Zusak. Essas três obras ficcionais são maravilhosas e mereceram siiiiiiiim avaliações pormenorizadas no Bonas Histórias. Por isso, não resisti e tasquei textões sobre elas. Na verdade, quem chama minhas análises de textões são alguns leitores inconformados com as extensões das matérias (beijo, Marieta!). Eu os considero textinhos, pois sei que tinha muito mais do que falar sobre cada título nesses espaços.


A nova publicação de Cíntia Ertel se encaixa como uma luva nesse nível de excelência narrativa. Uma vez que o julguei o melhor livro apreciado nos últimos 30 dias, seu destino era ganhar uma análise literária gigante (ou minúscula, fica a seu critério decidir). Confesso que mesmo que minhas críticas não sejam lidas por uma multidão (estamos falando de literatura para o público brasileiro, né?), fico honrado por conseguir apresentar as preciosidades da ficção (e do universo artístico) para meus conterrâneos. Quem manda ter um blog de literatura, cultura e entretenimento, não é mesmo?! Portanto, aí está a produção do post que prometi para mim mesmo que faria e divulgaria!


Sem receios de tropeçar nas pernas do exagero, digo em alto e bom tom que essa história de Cíntia Ertel é leitura obrigatória para crianças, adolescentes, pais e educadores. “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!” trata de questões delicadíssimas e atuais: o bullying escolar, o vício nas telas e a aridez dos relacionamentos entre pais e filhos. Como consequência, a molecadinha cresce insegura, deprimida, solitária e ansiosa (quando não violenta). Mesmo não tendo criança em casa (ainda não concluí a fase do jogo da vida de encontrar/selecionar/convencer a mãe dos meus futuros filhos), vejo que esse trio de temas afeta grande parte de meus parentes, amigos, colegas, conhecidos e vizinhos.

Publicado em setembro de 2024 pela EV Publicações, O Menino que Vivia no Mundo de...Marte! é o novo livro infantil de Cíntia Ertel, e o primeiro título dela para os pré-adolescentes

Os leitores mais assíduos do Bonas Histórias devem saber (ou intuitivamente já perceberam) que minha especialidade não é a literatura infantil nem a literatura infantojuvenil. Para ser bem franco, diria que sou apenas um amador nessas duas áreas. Dentro da ficção literária, meu campo de trabalho e estudo está nas narrativas para o público adulto – tenho medo de falar/escrever ficção adulta porque parece algo do segmento erótico. Quando o debate vai para os romances, as novelas e as coletâneas de contos e crônicas para a galera mais velha, aí sim fico à vontade para debater e analisar as obras que caem em minhas mãos. Todavia, como a proposta do blog é ser plural, me sinto na obrigação de vira e mexe comentar alguns títulos para os pequenos. Daí o motivo de, mesmo sabendo que não sou a pessoa mais indicada para comentá-lo, trazer “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!” para a discussão na coluna Livros – Crítica Literária.


Cíntia Ertel nasceu no interior de Santa Catarina e morou em vários lugares no Brasil antes de se fixar na Europa. Além de Florianópolis, viveu na infância e na adolescência em São Paulo e Minas Gerais. De volta à capital catarinense, se formou em Psicologia e trabalhou em sua própria clínica e como terapeuta de usuários de drogas. Nessa época, começou a namorar um alemão que já estava há anos no Brasil. O namoro foi ficando cada vez mais sério, assim como foi crescendo a vontade do gringo de retornar para a Europa. Com essa ideia fixa na cabeça, o alemão convenceu a namorada a se mudar com ele para Luxemburgo, país no centro do Velho Continente que fala francês, alemão e luxemburguês. Assim, em 2012, eles partiram para o exterior em busca de mais qualidade de vida e novos voos profissionais.


Em Luxemburgo, Cíntia passou a atuar como pesquisadora e educadora infantil. Ou seja, mergulhou para valer no universo infantojuvenil como até então não tinha feito. De repente, incontáveis histórias de crianças, adolescentes, pais e professores entraram em sua rotina e exibiram novos tipos de dramas. Na esfera pessoal, o namoro virou união estável e o casal germano-brasileiro teve dois filhos: um menino e uma menina. Com crianças em casa, a jovem catarinense se viu ainda mais cercada pelos desafios da criação dos pequenos e pela beleza da infância. Surgia, dessa maneira, a matéria-prima da futura escritora.


É legal contar que Cíntia Ertel sempre gostou de escrever. Se na infância arriscava algumas linhas, na adolescência já produzia contos por pura diversão. Na época em que cursava faculdade de Psicologia em Floripa, adorava contribuir com o jornal universitário. Contudo, depois que se formou, as obrigações profissionais a afastaram do processo da escrita. Somente na quarentena da pandemia da Covid-19 (que, convenhamos, foi muito mais rigorosa na Europa do que no Brasil), a vontade de narrar histórias foi retomada.


A maior proximidade com os filhos pequenos em casa também ajudou nesse despertar de sua veia criativa. Vendo as coisas divertidas que a meninada fazia dentro do lar e analisando os problemas dos alunos nas escolas de Luxemburgo em que trabalhava, Cíntia voltou a escrever depois de quase duas décadas. O foco de seus textos era, claro, o universo infantil. A partir da experiência materna e da vivência como educadora, a escritora passou a relatar histórias ficcionais do que acontecia ao seu redor.


Sua primeira publicação foi “O Papagaio Imigrante/Der Einwandererpapagei” (Flamingo Edições), obra infantil bilíngue (português e alemão) direcionada às crianças de 6 a 12 anos. Lançado em setembro de 2021, o livro é comercializado teoricamente tanto no Brasil quanto em Portugal. Escrevi teoricamente porque não consegui comprá-lo. Com boa dose de autobiografia, a trama de “O Papagaio Imigrante” gira em torno de uma ave que morava na Amazônia e se mudou com a namorada para Luxemburgo, um país distante e frio. A mudança exigiu grande esforço de adaptação do casal. As ilustrações foram feitas por Agnes Antonello.


Em maio de 2022, Cíntia publicou seu segundo título, “The Comparison/La Comparaison” (KIWI E.L.G.). Este é outro título bilíngue, só que está em francês e em inglês. Não há por enquanto versão em português e a obra só está disponível para compra na Europa. Voltada para meninos e meninas de 5 a 8 anos, a narrativa aborda o lado negativo de se comparar as crianças entre si na escola e em casa, um equívoco que muitos adultos e educadores cometem. Os desenhos foram produzidos por Andries van Wyk, ilustrador sul-africano que mora em Luxemburgo.  

Romance sobre uma dupla de amigos que é alvo de bullying na escola, O Menino que Vivia no Mundo de...Marte! é o quarto livro infantil de Cíntia Ertel

Em outubro de 2023, foi lançado “O Dia em que Voamos” (Publicação Independente), a terceira ficção infantil de Cíntia. Dessa vez, as ilustrações foram feitas por Sara Monteiro. O tema dessa publicação era a capoeira, uma das paixões da autora. Na trama um pouco mais volumosa do que as dos títulos anteriores, dois meninos de realidades opostas fazem amizade tendo a capoeira como elo de união. Além do português, essa obra está disponível em inglês, francês e alemão.


“O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!” é, como já informei, o quarto título ficcional da autora catarinense. Retomando a parceria de “O Papagaio Imigrante”, Agnes Antonello ficou encarregada de produzir as ilustrações da nova obra de Cíntia Ertel. Diferentemente dos outros títulos da autora, seu mais recente lançamento abrange um público um pouco mais velho: os pré-adolescentes. Ou seja, essa história tem um texto mais parrudo e é ideal para as crianças de 7 a 12 anos. Dessa maneira, não sei se devo considerá-la como um exemplar da literatura infantil ou da literatura infantojuvenil. Está vendo a dificuldade de não ser especialista nessa área! Publicado originalmente em português, “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!” já foi traduzido para o inglês, o francês, o espanhol e o alemão.


Esse título é o primeiro de Cíntia com a EV Publicações, editora paulistana comandada por Eduardo Villela, um dos principais book advisors e publishers do Brasil. Sei que sou suspeito para falar da EV e do Eduardo – ele é um dos meus melhores amigos e, para completar, eu atuo há três anos como editor e escritor em sua empresa. Mesmo sabendo dos possíveis riscos de minhas análises parecerem babação de ovo ou mesmo chapa branca, sigo fazendo comentários sobre as obras ficcionais dessa editora que me parecem mais interessantes (além de SEMPRE explicitar minha relação pessoal e profissional com a companhia).  


Foi o que aconteceu, por exemplo, com “Maria e o Mundo Mágico” (EV Publicações), estreia literária da também catarinense e expatriada Dayana Rampinelli, e “Refém da Memória” (Publicação Independente”), thriller psicológico do cineasta Helio Martins Jr. Gostei tanto do conteúdo dos dois títulos que os discuti, respectivamente, em janeiro do ano passado e em fevereiro de 2022 no blog.


Por mais que a ficção não seja a principal linha editorial da EV Publicações (95% de suas obras são de livros de negócios, livros de famílias e livros de não ficção), é bom dizer que a editora paulistana lançou recentemente excelentes novelas e romances. Além do próprio “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!” e do já mencionado “Maria e o Mundo Mágico”, posso citar “Pássaro de Folhas” (EV Publicações), a narrativa histórica de Celso Bicudo que navega pelo universo fantástico, e “A Contra-escuridão” (EV Publicações), o quarto thriller de Uranio Bonoldi da série literária “A Contrapartida”. Ambos os livros são espetaculares. Enquanto a novela de Bicudo foi lançada no final do ano passado, conforme relatei no post dos lançamentos de novembro e dezembro de 2024 da coluna Mercado Editorial, o romance de Uranio chegou às livrarias brasileiras em abril do ano passado, conforme apresentado no post dos lançamentos do segundo bimestre de 2024.   


Só não analiso “Pássaro de Folhas” e “A Contra-escuridão” na coluna Livros – Crítica Literária porque participei de alguma forma de seus desenvolvimentos. Juro que tenho essa preocupação, senhoras e senhores. As avaliações do blog são independentes, totalmente imparciais e sem qualquer vínculo com minha atuação como editor. Para tal, não considero ético ter participado da confecção do livro pela EV e, mais tarde, discuti-lo com os leitores do Bonas Histórias. Garanto que isso nunca ocorreu (e nunca ocorrerá!).  


No caso de “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!”, é importante esclarecer que não trabalhei em nenhuma etapa de sua produção. Por isso, me senti bastante à vontade para comentá-lo em detalhes no Bonas Histórias. É bom dizer que sequer conheço pessoalmente a Cíntia e nunca troquei mensagens com ela. Só lembrei de sua nova publicação quando bisbilhotava a biblioteca de casa atrás de uma nova leitura para o 1º de maio. 

O Menino que Vivia no Mundo de...Marte! é o recente lançamento de Cíntia Ertel, escritora brasileira que vem se destacando na literatura infantil

Já que comecei a explicar o contexto dessa leitura, acho legal contar a maior curiosidade sobre minha experiência como leitor de “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!”. Não gostei desse livro logo de cara. É ou não é uma bomba, hein? Calma, calma! Eu explico. Tenho o hábito de ler até o final todas as obras que começo. Se passei da primeira para a segunda página, tenha a certeza de que chegarei à última. Sou daqueles que não abandona a história no meio. Por mais que não goste de imediato da narrativa ou da trama em minhas mãos, sigo inabalável até as páginas finais. Qual o motivo desse comportamento? Não sei. Talvez tenha a esperança de ser positivamente surpreendido até o último momento. Muitas vezes, o desfecho é tão espetacular que compensa o caminhar arrastado. O exemplo mais vivo é “Grande Sertão: Veredas” (Companhia das Letras), clássico de João Guimarães Rosa. Seu desfecho sublime compensou a vontade que tive de esganar o autor durante as desesperadoras 559 páginas anteriores.


Voltando ao debate do livro de hoje... Quando já tinha percorrido um terço da nova história de Cíntia Ertel, pensei com meus botões: “esse título não é bom o suficiente para analisá-lo na coluna Livros – Crítica Literária”. Não sei se todos os leitores do Bonas Histórias sabem, mas só comento obras que mexem bastante comigo e que eu fiquei realmente encantado. Em outras palavras, não faço críticas prioritariamente negativas por essas bandas. Se leio algo que não gosto (e acredite: a maioria das leituras que faço não me agrada), simplesmente guardo para mim a avaliação negativa. No blog, só aparece o que apreciei bastante. Por isso, o tom frequentemente empolgado dos meus textos analíticos.


Mesmo com a certeza de que teria que encontrar outro título para comentar neste mês, segui a leitura de “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!” até o fim. Aí no meio da publicação, surgiu um conflito extremamente interessante e, enfim, entendi a proposta da autora. Pronto! Fui conquistado pela história ao ponto de querer comentá-la em profundidade. Quando fechei as páginas deste romance infantil, minha reflexão foi tripla: “essa trama é importante demais para pais, filhos e educadores!”; “viu só como é bom não abandonar precocemente as leituras!”; e “Eduardo não errou na indicação!”.


Também é importante ressaltar logo de cara que, por mais méritos que “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!” tenha, ainda assim trata-se de uma publicação com vários problemas de ordem narrativa. Ou seja, temos em mãos um título ótimo, mas não perfeito. Como toda análise crítica imparcial que faço, apresento tantos os aspectos positivos quanto os aspectos a melhorar da leitura realizada. Espero que o Eduardo e a Cíntia não fiquem bravos comigo por esse sincericídio. A proposta aqui não é desmerecer o trabalho de ninguém, apenas apontar os aspectos da ficção que podem ser aprimorados. Antes de mergulharmos na análise propriamente dita da nova publicação da EV Publicações, deixe-me apresentar seu enredo.


“O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!” é protagonizado por uma dupla de crianças entre 9 e 10 anos de idade: Benjamin e Sofia. Eles estão na mesma classe na escola. Benjamin é ruivo, usa óculos e é tímido. Sua grande paixão é o planeta Marte. O garoto, que é meio nerd, lê tudo a respeito das viagens interplanetárias e adora saber as características do nosso vizinho vermelho do Sistema Solar. Por outro lado, Sofia é morena, extrovertida e adora praticar esportes. Sua relação com os pais é ótima e ela adora alimentação saudável. Seu hobby é construir casas de brinquedo.


Recém-chegada ao colégio, Sofia faz amizade quase que instantaneamente com Benjamin. É o famoso lance dos “opostos se atraem”. A partir do primeiro dia de aula da menina, a dupla se torna inseparável. Eles estão sempre juntos na escola e fora dela. O menino adora visitar a casa da nova amiguinha. Lá, eles jogam futebol e compartilham suas paixões: leitura sobre Marte e construção de casas de brinquedo. A maior proximidade permite que cada um exponha seus maiores medos e frustrações. Enquanto Benjamin se lamenta pela separação dos pais, Sofia sonha em ganhar um irmãozinho. Ambas as crianças são filhos únicos e sentem a falta de companhia de alguém de sua idade para partilhar as descobertas e as brincadeiras da infância.


Daniel, o pai de Benjamin, é um engenheiro civil que entrou em depressão após Fernanda, a esposa, pedir divórcio e se mudar para Paris. Ela é executiva em uma multinacional e migrou para a Europa tão logo pintou uma boa oportunidade na empresa em que trabalhava. Assim, Fernanda teve que abrir mão do contato diário com o filho, que permaneceu vivendo no Brasil com o pai. Quem passa mais tempo com Benjamin é Olga, a avó materna. O menino sente que, após a separação, Daniel está cada vez mais fechado, distante e frio. Os dois não conversam como antigamente.

O Menino que Vivia no Mundo de...Marte! é o quarto livro infantil de Cíntia Ertel, escritora ficcional, terapeuta e educadora catarinense que vive há muitos anos em Luxemburgo

Por sua vez, os pais de Sofia são Leandro, um personal trainer que atua como influenciador digital na área de saúde e bem-estar, e Letícia, empreendedora que comanda os negócios da família. Como trabalha em casa, Leandro é quem cuida mais da filha. A relação de pai e filha é ótima. Eles compartilham seus gostos e preferências: prática esportiva, alimentação saudável e conversas sobre todos os temas. Além disso, os pais da garota são muito carinhosos e estão sempre se abraçando e se beijando. Por mais que Sofia se sinta acolhida e especial no seio familiar, ainda assim ela quer alguém para partilhar das brincadeiras domésticas. Daí o desejo de ter um irmão.


A amizade de Benjamin e Sofia sofre um sério abalo com a postura rancorosa e ciumenta de Pascoal. Esse é o tal conflito que citei e que aparece no meio da trama. Coleguinha de classe dos protagonistas do livro, Pascoal é um gordinho viciado em jogos eletrônicos. Ele passa o dia com a cara nas telas: celular, tablet e videogame. Na escola, ele adora praticar bullying e vive atazanando as crianças a sua volta. Seu comportamento é reflexo de problemas de âmbito doméstico e da imaturidade para lidar com alguns sentimentos.


Pascoal tem inveja da amizade de Benjamin e Sofia. Assim, ele não perde oportunidade para importunar o quanto pode a dupla de colegas. O bullying praticado só cresce à medida que as semanas vão passando. Quando Akira, um dos poucos amigos que Pascoal tem na escola, se cansa da postura tóxica do gordinho folgado e mal-educado e passa a conviver mais intensamente com Benjamin e Sofia, o vilão da trama surta. A partir daí, ele não sossegará nas agressões físicas, psicológicas e morais ao trio de estudantes.  A situação fica tão feia que é preciso uma intervenção da professora Martina e da diretora Lílian. O que elas farão com Pascoal? Esse é o mistério que move a leitura.


Considerando que é um exemplar da literatura infantil, “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!” tem um tamanho generoso. Suas 176 páginas estão divididas em 27 capítulos. Levei pouco mais de duas horas para percorrer seu conteúdo de ponta a ponta na semana retrasada. Praticamente fiz duas sessões de leitura de uma hora cada uma – o intervalo foi de trinta minutos para um cafezinho brasileiro. Acredito que a criançada levará mais tempo (entre cinco e seis horas), dividirá a experiência literária em mais sessões (quatro ou cinco) e não conseguirá concluir esta obra em um único dia (talvez leve dois ou três dias).


São vários os pontos que tenho que enaltecer neste livro de Cíntia Ertel: configuração das personagens é realista; dupla de protagonista carismática; vilão pouco maniqueísta; força do conflito central da narrativa é empolgante; variedade e riqueza dos temas discutidos; enredo segmentado em blocos rígidos; ilustrações impecáveis; e texto convidativo que explora muito bem o espaço narrativo e a ambientação. Dessa maneira, inauguro a seção do post que chamo de “Rasgação de Seda”. Preparem-se para ser atingidos por muitos confetes, senhoras e senhores. E sentem-se numa poltrona confortável que lá vem os elogios!


O primeiro aspecto a ser destacado é a construção das personagens. Elas são carismáticas e fidedignas. Tanto as crianças quanto os adultos de “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!” são figuras charmosas e bastante realistas. A sensação é que foram baseadas em personalidades concretas do dia a dia de Cíntia. Aposto que a autora vivenciou experiências parecidas nas escolas de Luxemburgo em que trabalhou/trabalha como educadora e que conheceu estudantes e pais de alunos com as características descritas na obra. É o famoso caso da ficção que bebe da fonte da vida real. Em outras palavras, creio que a escritora trouxe elementos do dia a dia para dentro da história ficcional. Contudo, reforço que isso é só um palpite meu, tá?


E por que fiz essa suposição? Porque à medida que percorria o livro, fui automaticamente me recordando de conhecidos que possuíam/possuem o perfil apresentado no enredo: estudante nerd e tímido; aluna extrovertida recém-chegada à escola; gordinho folgado e arruaceiro; garoto gente boa que anda em más companhias; pai depressivo com a separação da esposa que amava; mãe que precisa aprender a viver longe do filho; adulto presente, carinhoso e atuante na criação da prole; profissional workaholic que não tem espaço na agenda para os familiares; marido tóxico; mulher infeliz com o casamento que se torna uma mãe condescendente; professora carinhosa; diretora escolar com personalidade forte etc. Gostei bastante de acompanhar as rotinas, os dramas e os conflitos desse povo com características tão diferentes e, ao mesmo tempo, tão complementares.

Novo trabalho de Cíntia Ertel na literatura infantil, O Menino que Vivia no Mundo de...Marte! apresenta uma comovente história sobre bullying escolar, vício nas telas e equívocos na educação dos filhos

Até o fato de as personagens serem essencialmente planas – algo que normalmente prejudica a qualidade da trama ficcional – não me incomodou tanto quanto de costume. Sei que produzir literatura infantil e literatura infantojuvenil com figuras redondas é difícil (se achasse fácil eu seria escritor e não crítico literário, né?). Por isso, entendi o tom predominantemente maniqueísta da trama.


Mesmo assim, é bom dizer que a autora não caiu nos velhos clichês literários. Isso fica mais evidente no retrato do “vilão” da publicação. Coloquei a palavra “vilão” entre aspas porque, com a sabedoria de uma educadora com o olhar atento e humano sobre a realidade, Cíntia Ertel entende que as crianças com problemas de comportamento na escola são vítimas das atitudes e crenças de pais e familiares em casa. Ou seja, Pascoal não é alguém que deva receber a condenação pesada das autoridades do colégio, por maior que seja a pressão dos pais da turma para que ele receba uma punição exemplar.


Ao perceber a complexidade e a pluralidade do cenário, juro que fiquei fãnzaço de Martina e Lílian, respectivamente a professora e a diretora da escola. Apesar de suas aparições serem pontuais em “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!”, elas são decisivas para ditar o rumo da história e o impacto da experiência literária! Confesso que fiquei motivado para conhecer mais das vidas, dos pensamentos e dos métodos de trabalho dessa dupla. Entretanto, entendo que esse tipo de curiosidade é de um adulto que fez licenciatura e que é apaixonado pela dinâmica da educação. A meninada, público-alvo principal desta publicação, certamente se concentrará nas histórias dos alunos. E os pais da garotada, público-alvo secundário, devem focar a atenção no que os adultos fazem nas casas de Benjamin, Sofia e Pascoal. Mesmo sabendo disso tudo, reafirmo: para mim, as personagens mais incríveis deste livro são a professora e a diretora!


Quando escrevi três parágrafos acima que “entendi o tom maniqueísta da trama”, talvez o mais correto teria sido grafar o termo “tom maniqueísta” entre aspas. Ao mesmo tempo que há forte oposição entre certinhos/bonzinhos (a amizade de Benjamin e Sofia é pura e saudável) e erradinhos/mauzinhos (Pascoal faz bullying com os colegas), não é totalmente culpa do gordinho viciado em jogos eletrônicos o que acontece na escola. Nesse sentido, o verdadeiro vilão (ou “vilão” – as aspas ou a ausência delas vão depender da interpretação dos leitores) é outro, que nem sabe dos efeitos negativos de seus comportamentos na própria família e nas demais famílias.


Já que estamos falando de personagens, achei que o pai de Benjamin (Ciro) merecia um acompanhamento mais próxima e cuidadoso por parte do narrador. O ideal é que recebesse um tratamento similar aquele dedicado aos pais de Benjamin (Daniel) e de Sofia (Leandro). Note que não vamos com ele ao trabalho e não ficamos a sós para entender exatamente seus pensamentos, suas crenças e suas atitudes. O que sabemos do advogado workaholic que não tem tempo para a família vem das opiniões da esposa (Rosa) e do julgamento do narrador. Se Ciro fosse uma figura um pouco mais redonda (como eram Fernanda e Letícia, as mães de Benjamin e Sofia, por exemplo), acho que o livro ganharia em dimensão dramática. Senti falta de entendê-lo melhor.


Por outro lado, algumas decisões que Cíntia Ertel tomou me pareceram acertadíssimas. Ao invés de estabelecer apenas um protagonista para o romance, ela trouxe uma dupla de personagens ao primeiro plano da narrativa. Por mais que “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!” tenha um título que faça menção apenas ao garoto (um equívoco do meu ponto de vista), não podemos negar o peso da menina na formulação e no desencadeamento do enredo. Como dupla ficcional, Benjamin e Sofia são figuras mais interessantes e charmosas do que individualmente. É claro que olhados isoladamente, eles também têm lá seus atrativos e valores. Porém, é quando integrados que suas características e carismas são potencializados.


Saindo da análise das personagens, outra decisão ESPETACULAR da autora foi a escolha dos temas debatidos pelo romance. Esse livro aborda essencialmente o bullying escolar (um eterno problema do sistema educacional, que só piorou com a disseminação das redes sociais), os desafios de ser pai e mãe no século XXI (em um mundo em que os adultos têm tantas frentes de atuação, quando sobra tempo para cuidar dos filhos, hein?) e os vícios nas telas (somos uma sociedade com a fuça grudada em celulares, tablets, notebooks e televisores!). Impossível não concordarmos com a urgência dos debates propostos pelo livro.

Traduzido para vários idiomas, O Menino que Vivia no Mundo de...Marte é a obra de Cíntia Ertel voltada para o público pré-adolescente

É legal notar que os assuntos tratados por “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!” vão além do trio de grandes temáticas que apresentei no parágrafo anterior. As histórias de Benjamin, Sofia, Akira e Pascoal e de seus pais também abordam de maneira direta ou indireta uma avalanche de questões relevantes e atuais: solidão dos filhos únicos (cada vez mais comuns nos arranjos familiares com só uma criança em casa – isso é, quando os casais decidem ter filhos, pois muitos nem isso querem); alimentação saudável versus junk food; oposição entre prática das atividades físicas e sedentarismo; socialização (ou falta de socialização) em tempos de prevalência da interação digital; e acompanhamento próximo, atento, atuante e empático dos adultos em relação ao desenvolvimento das crianças.


Você acha que os temas tratados por Cíntia terminam aqui? Nananinanão. Aí vão mais alguns que ela explora: terceirização da educação dos filhos (muitos pais atiram no colo das escolas a responsabilidade pela formação ética e moral da meninada); impacto da separação do casal na psicologia das crianças; equilíbrio entre vida profissional e vida pessoal; importância de se ter hobbies; depressão e doenças mentais em todas as fases da vida; vantagens de se fazer terapia; relevância da atuação dos profissionais escolares com visão completa e abrangente do processo educacional; e aprendizado dos jovens em como lidar com a ebulição de sentimentos (ciúmes, inveja, raiva, medo, amizade, amor, confiança, inconformismo, injustiça, empatia etc.). Vai me dizer que essas não são discussões relevantes para adultos e crianças, hein?


A união de excelentes personagens com temas sensíveis é complementada com o aparecimento de um conflito forte e impactante. A postura negativa de Pascoal quebra a harmonia estabelecida pela amizade de Benjamin e Sofia (e mais tarde pela união da dupla com Akira). Como os protagonistas farão para conviver com uma figura tóxica, violenta e de “má índole” na classe? Esse é o mistério que ronda a mente dos leitores. É inegável que uma vez que nos deparamos com o drama central da narrativa ficcional, não queremos mais largar a leitura de “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!”.


O único aspecto negativo que posso comentar sobre a linha ficcional é que o conflito principal do romance só surge no meio do livro. Achei que demorou demais para Pascoal e sua postura transgressora serem inseridos na narrativa. Enquanto ele não pintou na história, o livro girava em torno de conflitos menores: timidez e introspecção de Benjamim; e solidão de Sofia sem outra criança em casa. Precisamos combinar que esses são dramas menores e que não esquentavam a narrativa.


O livro tem uma divisão estrutural nítida: a primeira metade da obra é para apresentar os protagonistas (e seus familiares) e para expor micro conflitos (Benjamin sente falta da presença mais carinhosa do pai e Sofia quer um irmãozinho); e a segunda seção serve para inserir o “vilão” (e sua família) à história e exibir o relato pormenorizado do conflito central (a amizade de Benjamin, Sofia e Akira provoca sentimentos de raiva e reações negativas em Pascoal).


Entendi o tom didático da formulação da trama de “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!” em blocos fixos. A parte 1 e parte 2 possuem características narrativas bem definidas. Com essa dinâmica, acabamos nos aproximando muito mais dos protagonistas e curtindo a amizade da dupla de crianças na primeira metade da publicação. Como disse, Benjamin e Sofia são personagens carismáticas, que nos encantam desde as primeiras páginas. E a segunda metade é dedicada exclusivamente aos perrengues. Além disso, a segmentação rígida da narrativa é didática para os leitores. Não podemos nos esquecer que o público-alvo é constituído por crianças e pré-adolescentes. Porém, imagino que o romance poderia ser menos quadradão na forma.


Como estamos falando de um narrador em terceira pessoa onipresente e onisciente, dava muito bem para a escritora ter, pelo menos, antecipado o surgimento de Pascoal e Akira na trama. Achei que, por suas importâncias para a obra, essas personagens tardaram demais para aparecer em cena. Como consequência, o conflito demorou para surgir e a tensão dramática foi postergada excessivamente por algumas dezenas de páginas. Um pouco de dinamismo narrativo não seria uma má ideia para a parte 1 – ainda mais em tempos de leitores tão ansiosos.

Publicado em setembro de 2024 pela EV Publicações, O Menino que Vivia no Mundo de...Marte! é o novo livro infantil de Cíntia Ertel, e o primeiro título dela para os pré-adolescentes

O que me pareceu acertadíssimo (e é um dos pontos positivos do livro que mais chama a atenção) é mostrar o comportamento das crianças como reflexo da postura dos pais. Por mais que esse seja um recurso óbvio e lógico do ponto de vista da psicologia infantil e da educação da meninada, vamos combinar que nos esquecemos de tal correlação no dia a dia. Assistimos às ações dos pequenos como fruto exclusivamente de seus temperamentos e demoramos para vinculá-las às responsabilidades da família. Esse esquecimento ocorre principalmente no âmbito escolar.


Admito que, durante a leitura de “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!”, algumas fichas caíram em mim. De repente, fui transportado para o tempo do meu colégio e rememorei as atitudes de muitos coleguinhas considerados problemáticos. Poderia descrevê-los como sendo as antigas e reais versões de Pascoal. Será que a culpa pelo comportamento tóxico que tinham era mesmo deles? Só agora consegui fazer esse questionamento e enxergar o quão delicado é o tema. Brincar de procurar respostas mais completas é uma atividade desafiante e, ao mesmo tempo, reveladora.    


Estudei de fevereiro de 1987 (pré-primário) a novembro de 1998 (terceiro colegial) no Colégio Rio Branco, na cidade de São Paulo. Da primeira série do primário até o último ano do colegial, convivi com um garoto com um olhar extremamente triste. O nome dele era/é Fábio. Não tenho certeza do tempo verbal a ser utilizado na frase anterior porque nunca mais o vi e não soube do seu paradeiro. Não tenho redes sociais nem paciência para ficar caçando pessoas do passado pela Internet. Porém, minha memória segue afiada. Até hoje, não conheci ninguém com a expressão facial mais tristonha do que a daquele menino que se sentava na carteira ao meu lado.


Fábio não era uma má pessoa (isso eu já sabia naquela época), mas parecia envolto por uma nuvem eterna de infelicidade e depressão. Como estudei com ele diariamente por onze anos (não é pouca coisa!), me acostumei com seu jeito melancólico e negativo de encarar a realidade. Eu e todos os demais colegas de turma nos habituamos.


Mesmo não tendo má índole, como disse, ele acabava sempre metido em confusões e recebendo punições dos professores e do diretor, que quase sempre se mostravam pouco pacientes às suas atitudes rebeldes ou indiferentes às obrigações escolares. Às vezes, Fábio se envolvia com brigas e praticava bullying com os amigos mais próximos (tal qual Paschoal fazia com Akira). O que era mais triste era constatar que o garoto de olhos tristes só ficava feliz e só conseguia se divertir realmente quando via os colegas e os professores se dando mal. Diante dos apuros dos outros, ele abria o sorrisão enorme e lançava uma gargalhada sincera e estridente. Essa era a única situação que o deixava genuinamente satisfeito. Triste, né?      


Sempre considerei o comportamento dele de flertar com a infelicidade e de apreciar a desgraça alheia como fruto de sua personalidade amarga. Afinal, há aqueles que nascem para ser felizes e aqueles que nascem para ser tristes. Na minha concepção de mundo, felicidade e tristeza são muitas vezes marcas da personalidade e não consequências dos caminhos ditados pela vida. Prova maior disso é que via nas empresas em que atuava funcionários da limpeza mal pagos chegando felizes para o trabalho pesado e diretores com salários altos iniciando de mal humor o expediente muito mais leve. Até fiz um conto, “O Estagiário”, sobre essa questão na série “Paranoias Modernas”, na coluna Contos & Crônicas.   


Qual a lógica dessa incongruência? A forma como cada um encara naturalmente a existência, independentemente das condições. Tire tudo (ou quase tudo) de um indivíduo e saiba que ele poderá permanecer com a postura altiva e radiante. E dê tudo (ou quase tudo) para outro indivíduo e não se surpreenda se sua maledicência e inconformismo permanecerem intactos. Daí minha conclusão.

Romance sobre uma dupla de amigos que é alvo de bullying na escola, O Menino que Vivia no Mundo de...Marte! é o quarto livro infantil de Cíntia Ertel

Ao ler “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!”, fiz uma retrospectiva reflexiva daquele meu colega triste no Colégio Rio Branco nas décadas de 1980 e 1990. E não é que a teoria de Cíntia Ertel, que é oposta à minha, faz muuuuuuito sentido! Fábio nunca conheceu o pai. Vire e mexe, ele falava disso com alguma agonia para seus colegas mais próximos. A mãe não dava muitas informações sobre o paradeiro do companheiro que a engravidou quando tinha pouco mais de 20 anos. Dizia que teve o filho ainda solteira e que o namorado nunca quis assumir a criança. Para criar o garoto, ela precisou trabalhar bastante.


Como consequência, Fábio passava várias horas do dia sozinho, trancado no apartamento confortável do bairro de Higienópolis. Quando não estava na escola de manhã, ficava à tarde inteira sem a presença de ninguém em casa. A mãe só retornava à noite. Para compensar sua ausência do lar, ela disponibilizava todo tipo de videogame para o filho (por isso, me recordei dele ao ler sobre Paschoal). Não deveríamos nos assustar com o fato de Fábio ter crescido com a tristeza tatuada no rosto e a amargura implantada na alma. E a ficha disso só caiu agora em mim ao ler o livro com o drama de um garoto com características tão parecidas ao do meu antigo coleguinha de classe. Tem algumas obviedades que não são tão óbvias, né?


Desculpe-me por abrir esses enormes parênteses. Senti que precisava compartilhar esse relato real do meu passado com vocês. Se isso acontecia lá atrás, imagino que siga ocorrendo até hoje. É a ficção bebendo da fonte inesgotável e dramática da realidade. Feito o desvio de rota, voltemos à análise propriamente do livro.


Outro elemento que precisa ser elogiado em “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!” é o conjunto de ilustrações de Agnes Antonello. Os desenhos da designer fluminense são cativantes. Lindos, lindos, lindos! O que mais apreciei foi brincar de procurar as características das personagens citadas no texto nos detalhes das imagens. Se eu aos meus quarenta e poucos anos curti o processo de materialização da narrativa ficcional no visual da obra, fico imaginando a meninada se deliciando com as ilustrações. A galerinha certamente irá adorar conferir cada nuance do visual das personagens do romance.  


O texto do livro também está muito bem escrito. Gosto da pegada narrativa da autora catarinense de revelar o espírito e o comportamento das personagens sem se esquecer da construção do espaço narrativo e da ambientação. Se tivesse que descrever esse tipo de literatura de um modo simples e objetivo diria que ela é sedutora e inteligente. Se um adulto ficou impactado com a força da história e a beleza do texto, imagine o efeito desse título nas crianças, hein?!  


Por mais aspectos positivos que “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!” tenha – e o livro possui SIM bastante aspectos para elogiarmos como fiz questão de relatar até agora! –, preciso relembrar que o romance de Cíntia Ertel apresenta também algumas falhas que prejudicam significativamente a experiência do leitor mais atento e exigente. Para ser bem franco com os visitantes da coluna Livros – Crítica Literária, não são muitos os elementos negativos desta publicação. Porém, eles são sensíveis e muito perceptíveis. Juro que fiquei muuuuuuuuito incomodado com duas características desta narrativa: a mudança constante de tempo verbal e a baixa qualidade dos diálogos.


O primeiro ponto a ser discutido na seção que chamo de “Atire a Pedra na Geni” (ou vocês pensaram que seria só rasgação de seda, hein?) é a confusão de tempo verbal. Não é errado apontar que temos uma enorme bagunça temporal em “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!”. Ora a trama é descrita no presente, ora é narrada no passado. Dependendo do capítulo e do trecho dentro do capítulo, o texto muda de configuração sem qualquer justificativa lógica. A história começa no presente. Veja:

O Menino que Vivia no Mundo de...Marte! é o recente lançamento de Cíntia Ertel, escritora brasileira que vem se destacando na literatura infantil

– Ombro para frente e coluna ereta, filho – disse Daniel.


Benjamim faz o possível para seus ombros pararem de apontar para o chão e sai do carro dizendo um tchau tímido para o pai.


O pai vai trabalhar e Benjamim entra na escola. Seus ombros frequentemente esquecem de olhar para frente. Benjamim é tímido, principalmente com crianças; entra na escola e logo vai para a sua sala de aula. Ele se senta, tira o material escolar e começa a ler o que a professora vai passar hoje de matéria (Página 14).


Não há dúvida que os acontecimentos do romance transcorrem no presente, certo? Se bem que o complemento do discurso do pai, na primeira frase do livro, está no passado (“disse”). Porém, no restante da página, surge uma sucessão de verbos no presente. Isso até o momento em que a professora entra na sala de aula e chama o aluno que era apaixonado pelo planeta vermelho:


– Bom dia, Benjamim! Vejo que você já está estudando. Quais são as últimas novidades de Marte – perguntou a professora.


Benjamim começou a contar que no livro que ele está lendo diz que, antes de ir para Marte, os astronautas americanos vão construir uma base espacial na Lua. Que seria mais fácil ir da Lua para Marte do que da Terra para Marte. No meio da conversa, entra na sala Sofia, a nova aluna. Benjamin também era relativamente novo na escola, era o seu segundo ano nela, mas a menina tinha mesmo acabado de chegar. A professora aproveita para apresentar Sofia e Benjamim (Página 15).


Notou a confusão?! A história vai sem qualquer explicação para o passado e, ao final desse trecho, retorna novamente para o presente. O romance faz isso o tempo inteiro. Presente, passado, presente, passado, presente, passado... É uma confusão dos diabos. Do ponto de vista da Teoria Literária, a sensação é que a autora não definiu o tempo narrativo de sua história, um dos elementos centrais da narrativa ficcional


Acho importante dizer que esse é um erro de edição. Porque é muito comum o(a) escritor(a) fazer essa mistura durante o processo de produção textual. Até mesmo os(as) profissionais mais experientes cometem esse vacilo na primeira versão de suas histórias. A questão é que, antes de publicar a obra, é necessário cuidar da homogeneização da narrativa. Não dá para o leitor receber a trama confusa e contraditória. E esse é um dos papéis do(a) editor(a) – é ele(a) quem orienta o(a) romancista sobre a bagunça temporal e o(a) auxilia na padronização do texto.                                                                                 


Essa mistura caótica de tempo verbal se torna ainda mais crítica nos capítulos em que a autora utiliza o recurso do flashback. Nesse momento, a coisa só piora. Há partes do livro em que a história é contada no passado. Até aí tudo bem. O problema é quando a personagem se recorda de algo que aconteceu lá atras, na sua infância por exemplo. E, acredite se quiser, no instante em que o texto vai para o antigo acontecimento, os verbos são grafados no presente. Convenhamos que é um absurdo, né?! No presente, os verbos estão no passado. E no passado, eles vêm no presente. Não faz sentido nenhum, senhoras e senhores.  


Em muitas páginas, a narração está no presente enquanto o complemento do discurso está no passado. Em outros trechos, é o contrário: a narração está no passado e o complemento do discurso aparece no presente. Confesso que não me lembro de ter visto em outro título literário com essa qualidade tal descompasso. Aos meus olhos, esse expediente pareceu equivocado, muito equivocado. O tempo verbal da narrativa deve coincidir com o tempo verbal do complemento dos diálogos. Para quem não sabe (ou não se recorda) o que é o complemento do discurso, informo que é aquela frase que segue a fala direta das personagens: Benjamim falou; o pai de Sofia perguntou; a menina quis saber etc.

O Menino que Vivia no Mundo de...Marte! é o quarto livro infantil de Cíntia Ertel, escritora ficcional, terapeuta e educadora catarinense que vive há muitos anos em Luxemburgo

Por falar nos discursos (o segundo grande problema desta obra), achei que as falas das personagens de “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!” estão numa qualidade inferior à excelência de sua narrativa. Isso se deu, na minha visão, por alguns motivos.


Em primeiro lugar, temos uma overdose de complementos aos diálogos. Muitas vezes, eles são desnecessários. Como exemplificação, vou usar uma cena hipotética que acabei de criar na minha mente. Nela, só estão presentes Benjamim e Sofia. Aí alguém fala: “– Benjamim, o que você está fazendo?”. É óbvio que essa fala só pode ser de Sofia, né? Até mesmo o leitor mirim sabe disso. Mesmo assim, Cíntia vai lá e tasca o complemento: “– Benjamim, o que você está fazendo? – perguntou Sofia”. Na sequência, a resposta só pode ser do garoto: “– Estou pensando no meu pai”. Sem se preocupar com a redundância, a autora novamente insere o aditivo: “– Estou pensando no meu pai – respondeu Benjamim”. Repito: não é preciso colocar algo desnecessário no texto literário.  


Em algumas sequências de páginas, quando os diálogos são longos e importantes, admito que essas partes desnecessárias dos discursos me deixaram um tanto nervoso. É claro que a criançada, o público-alvo do livro, pode não se incomodar tanto com isso quanto a galera com um paladar literário mais apurado. De qualquer maneira, acho importante respeitar a inteligência dos jovens leitores. Devemos cuidar da estética de uma história ficcional independentemente para quem a obra é dirigida.


Não à toa, os grandes clássicos da literatura infantil e da literatura infantojuvenil são livros impecavelmente bem escritos e que instigam a imaginação da criançada. Basta analisarmos “O Gênio do Crime” (Global), de João Carlos Marinho Silva, “Meninos Sem Pátria” (Ática), de Luiz Puntel, “A Ilha Perdida” (Ática), de Maria José Dupré, “O Meu Pé de Laranja Lima” (Melhoramentos), de José Mauro de Vasconcelos, “A Turma da Rua Quinze” (Ática), de Marçal Aquino, e “Marcelo, Marmelo e Martelo” (Salamandra), de Ruth Rocha, para vermos boas histórias embaladas de um jeito impecável.


Selecionei um trecho de “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!” em que a problemática do complemento desnecessário do diálogo fica mais evidente. Ele está no comecinho do capítulo VI:


– Adoro jogar futebol no campo com você e o Benjamim, pai – Sofia diz ao pai na volta para casa.


– Também gosto muito, filha – responde o pai e a abraça.


– Pena que o Benjamim não pode jantar lá em casa – comenta Sofia.


– O Benjamim não pode passar o dia todo conosco. Ele tem que passar tempo com a família dele também – responde Leandro apertando a mão de Sofia.


– Eu sei. Como era com seus irmãos em casa, pai? A tia Leila conta que vocês brincavam muito juntos – Sofia adorava ouvir as histórias de infância do pai.


– Nós brincávamos e brigávamos muito! – ri Leandro.


– Mas, sim, era bom ter meus irmãos por perto. Sempre tinha algo acontecendo, alguém para brincar, para conversar ou aprontar – riu novamente.


– Por que hoje as pessoas têm menos filhos, pai? – pergunta Sofia.


Acho que essa parte do romance explicita muito bem o que quero dizer. Note que além dos complementos desnecessários, há outros problemas graves: (1) excesso de vocativos (eita, família mais chata que toda frase da filha tem um “pai” e toda frase do pai tem uma “filha”); (2) se eles já estão dentro de casa, a menina jamais diria: “Pena que o Benjamim não pode jantar lá em casa” – certamente diria: “Pena que o Benjamim não pode jantar aqui em casa” ou “Pena que o Benjamim não pode jantar aqui com a gente”; (3) há duas frases consecutivas de Leandro que foram expressas em diferentes parágrafos, algo que desconfigura o diálogo tradicional (elas teriam que ser agrupadas); e (4) a boa e velha mistura temporal que já debatemos. 

Novo trabalho de Cíntia Ertel na literatura infantil, O Menino que Vivia no Mundo de...Marte! apresenta uma comovente história sobre bullying escolar, vício nas telas e equívocos na educação dos filhos

Mas isso é tudo detalhe, Ricardo. Como você é chato! Pare de pegar no pé da pobrezinha da Cíntia!!! Calma lá! Não acho que se trata de meros detalhes, querido(a) e sempre participativo(a) leitor(a) do Bonas Histórias. Chamo essa preocupação de cuidado com a narrativa ficcional. Construir boas conversas é papel dos bons escritores – grupo em que enquadro Cíntia Ertel desde já. Não dá para desenvolvermos boas narrativas e largarmos mão das conversas convincentes e bem formuladas. Veja como poderia ficar esse trecho:


 – Adoro jogar futebol com você e o Benjamim!


– Também gosto muito, filha – Leandro abraça Sofia assim que entram em casa na volta do campinho.


– Pena que o Benjamim não pode jantar com a gente.


– Ele não pode passar o dia todo conosco. Ele tem a família dele.


– Eu sei, eu sei. Como era com seus irmãos lá na casa do vovô e da vovó? – Sofia adora ouvir as histórias de infância do pai – A tia Leila conta que vocês brincavam muito juntos. É verdade?


– Nós brincávamos e brigávamos muito! – Ri alto – Mas, sim, era bom ter meus irmãos por perto. Sempre tinha algo acontecendo, alguém para brincar, para conversar ou aprontar.


– Por que hoje as pessoas têm menos filhos, pai?


Perceba que uma mexida simples tornou o texto mais fluído e agradável para a leitura, sem perda de conteúdo. Como disse, esse é só um exemplo. Os problemas dos diálogos não são pontuais e sim gerais. Há muita coisa que poderia ser excluída. A professora apresenta Sofia para Benjamim nas primeiras páginas:


 – Benjamim, esta é Sofia. Sofia, você pode se sentar ao lado de Benjamim.


Aí a garota fala com o menino:


 – Oi, Benjamim. Sou a Sofia. Nossa, você é ruivo!


Será mesmo que ela repetiria seu nome (“sou a Sofia”), nesse diálogo? Tenho minhas dúvidas. Pelo jeito extrovertido dela, imagino que já chegaria falando:


– Oi, Benjamim. Nossa, você é ruivo! Que legal.


A baixa qualidade dos diálogos tem outros componentes. Há coincidências que afetam a veracidade da história. Será mesmo que as duas crianças seriam chamadas no mesmo dia de “pipoco” por seus pais e avós em casas distantes?! Acho difícil. Há citações que colocadas no meio da conversa se tornam inverossímeis. Por exemplo, Daniel fala para o filho: “porque meu pai, seu avô...”. Não! Nenhum pai que se preze falaria desse jeito com a criança. Certamente, ele diria: “porque seu avô...”.

Traduzido para vários idiomas, O Menino que Vivia no Mundo de...Marte é a obra de Cíntia Ertel voltada para o público pré-adolescente

Esses são os problemas mais sérios de “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!”. Os demais são coisas pequenas que não atrapalham de maneira nenhuma a experiência literária. Dá para citar como tropeços mínimos a overdose de pronomes possessivos (seu/sua/seus/suas e meu/minha/meus/minhas), o equívoco de uma palavra ou outra (algumas de ordem narrativa e outras politicamente incorretas) e alguns trechos não tão bem trabalhados quando pensamos na estética textual.


No quesito palavras mal colocadas, no começo do livro é dito que “Benjamin era bem alto para a idade e bem magrinho, de cabelo ruivo e óculos azuis” (página 15). Contudo, fiquei com a impressão de que o correto seria dizer que seus olhos eram azuis e não os óculos. Por quê? Porque as ilustrações não mostram os tais óculos azuis. E para um garoto ruivo, as chances de ter olhos azuis crescem substancialmente. Ou não?!


Mais à frente, a descrição é da outra protagonista: “Sofia é mulata, de cabelos cacheados e olhos verdes” (página 16). Além do problema que já comentamos do tempo verbal (enquanto a parte de Benjamin está no passado, a da menina está no presente), usar a palavra “mulata” pode suscitar algumas polêmicas. Sinceramente, eu usaria o termo “morena” para evitar qualquer tipo de melindre dos leitores que procuram racismo em determinadas expressões.


Quanto as passagens mal formuladas, leia o trecho a seguir:


Depois que os pais de Benjamin se separaram, Daniel passava mais tempo ainda envolvido com seu hobby de conhecer o espaço. Benjamin, como o pai, também passou a se aprofundar mais no seu hobby que tinha desde pequeno. O hobby do pai era um espelho para o Benjamin (Página 55).


Pela qualidade da escrita de Cíntia, tenho a certeza de que ela conseguiria evitar as palavras repetidas (pai, hobby e Benjamim – cada uma delas expressa três vezes em três frases consecutivas) e a construção de frases mais dinâmicas (para evitar a sensação de uniformidade da construção verbal e dos verbos empregados).


Talvez o meu detalhamento do que poderia ser melhorado neste romance passe a impressão de que ele não é uma ótima publicação. Por favor, se você ficou com essa sensação, querido(a) leitor(a) do Bonas Histórias, tire imediatamente o cavalinho da chuva. Porque “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!” é sim um livrão. E falo isso com alguma propriedade de causa. Apesar de não ser especialista em literatura infantil e literatura infantojuvenil, como expliquei no início deste post, tenho lido bastante obras desse gênero nos últimos três anos. O motivo é a produção das temporadas finais do Talk Show Literário. Daí meu mergulho no universo ficcional da criançada.


Acho realmente que Cíntia Ertel é uma excelente escritora e vem produzindo um portfólio bem interessante. Saiba que não é fácil lançar um novo título anualmente, seu ritmo atual de publicação. Por isso, a excelência de “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!” não me pareceu fruto do acaso.


Inegavelmente, “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!” é o trabalho literário mais ambicioso de Cíntia. Escrever algumas centenas de páginas para o público infantojuvenil é muito diferente de escrever dezenas de páginas para o público infantil. Assim como migrar da literatura infantojuvenil para a literatura adulta exige novas configurações de escrita. Além do(a) autor(a) precisar de mais fôlego narrativo em cada mudança, ele(a) utiliza um maior número de ferramentas ficcionais. Nem sempre é fácil fazer essa transição.


Curiosamente, Cíntia Ertel fez o mais difícil: apresentou excelentes personagens, trouxe um conflito forte e impactante, demonstrou fôlego narrativo e construiu um drama cativante. No meu ponto de vista, os problemas de “O Menino que Vivia no Mundo de... Marte!” foram meramente de edição e de acabamento textual.

Escritora brasileira que mora em Luxemburgo, Cíntia Ertel lançou livros infantis como O Menino que Vivia no Mundo de...Marte!, O Dia em que Voamos e O Papagaio Imigrante

Adorei tanto essa história que quando fechei o livro fiquei pensando nas possibilidades de transformá-la numa série literária. Afinal, há elementos de sobra para isso. Gostaria de saber mais sobre: o destino de Gonçalo e Felipe, os amigos encrenqueiros de Pascoal; a vida e o passado de Akira, o novo amigão de Benjamin e Sofia; e, principalmente, os futuros trabalhos de Martina e Lílian, as educadoras sensíveis e competentes da escola. Como já disse e repeti um milhão de vezes, fiquei fã das duas.


O retrato mais evidente de quando gostamos de uma história é a sensação de tristeza quando ela acaba. Talvez essa constatação explique minha vontade de ter o livro transformado em série. Não sei se Cíntia Ertel irá por esse caminho. Até acho que não. Certamente, ela já está pensando em outras narrativas e em novas possibilidades dentro da escrita ficcional. E isso é ótimo! Feliz dos leitores que possuem autores que estão sempre buscando novidades temáticas e a diversificação do portfólio literário.


O que eu posso fazer no papel de crítico literário é seguir acompanhando atentamente o trabalho dessa ótima revelação da ficção do nosso país. Que venham mais narrativas saborosas e inteligentes, senhoras e senhores! A literatura brasileira agradece.


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